Desembargadores chegando à Casa da Suplicação.
Desembargadores chegando à Casa da Suplicação.
(Gravura de Jean Baptiste Debret)
  Memória
da Justiça Brasileira - 2
Capítulo 7

A Justiça d’El Rei

Acima do poder municipal - e, como já vimos, permeando-o no seu próprio seio com a substituição, em alguns termos, dos juízes ordinários por juízes de fora - estava a magistratura nomeada pela Coroa. Ela representava a autoridade, a sabedoria e a clemência do Rei e devia estar revestida dos atributos internos e externos que lhe garantissem essa dignidade.

Diferenciava-se essa magistratura por ser letrada, formada inicialmente em Bolonha e em outras escolas centro-européias e depois em Coimbra, centro dos estudos jurídicos durante todo o período colonial. Mas nem sempre essa magistratura teve tal formação. Mesmo ainda imperfeita, a estrutura judiciária que o Brasil conheceu, já era muito mais complexa e especializada que a dos primeiros reinados.

Simples e improvisada, a corte de D. Afonso Henriques não parece ter contado nem mesmo com altos funcionários, exceção feita dos que estavam encarregados dos serviços do palácio, mais vinculados às necessidades pessoais do Rei que às complexas questões políticas e jurídicas da administração pública. Os documentos mais antigos nos falam, sob a denominação genérica de "ovençais d’El Rei", do "Escanção", que despejava o vinho nas taças do Rei e seus convidados, o "Çaquiteiro" que cuidava do pão para sua mesa, o "Pousador" ou "Pousadeiro" (depois chamado de "Aposentador"), encarregado de garantir uma adequada hospedagem nas constantes viagens, o "Estrabeiro", que tomava conta das cavalgaduras, etc.

O "Reposteiro" (uma espécie de tesoureiro) cuidava indistintamente das propriedades pessoais do monarca e do que hoje poderia ser chamado de "propriedade pública" (ao tornar-se a administração mais complexa, apareceu explicitamente o cargo de "Tesoureiro" e o "Reposteiro" passou a ocupar-se exclusivamente dos assuntos internos do palácio). Destacavam-se também, entre esses "ovençais", o "Mordomo" e o "Alferes", que tinham uma maior intervenção na administração pública. Na medida em que o reino crescia, cada um desses cargos passou a ser desempenhado por várias pessoas, enquanto aquela que ficava responsável pelo serviço era identificada como "Reposteiro Mor", "Mordomo Mor", "Alferes Mor" etc.

Não surpreende que a organização do reino estivesse tão ligada ao serviço pessoal do soberano. Lembre-se que, pouco antes, ele não era outra coisa que um senhor feudal, vassalo do Rei de Leão e demoraria ainda algum tempo em constituir uma corte de proporções consideráveis. Por outra parte, mesmo as monarquias ibéricas mais antigas, como o próprio reino de Leão, conservavam uma estrutura administrativa bastante simples. Por outra parte, as limitações do poder real, ainda incipiente e estreitamente vinculado à proteção dos interesses das diversas comunidades, obrigavam o Rei a deslocar-se constantemente para deixar, nos seus vassalos, a impressão de encontrar-se permanentemente vigiados e protegidos. Essa extrema mobilidade, que se prolongou durante todo o período de formação da monarquia portuguesa, não permitia a constituição de uma estrutura burocrática complexa e ajudava a concentrar mais ainda todas as decisões na pessoa do Rei.

Os Primeiros Magistrados

Numa administração tão personalizada, a simples custódia dos símbolos do Rei era função de grande importância. O "Signifer" ou "Alferes Mor", cuja função principal era a de carregar a bandeira real enquanto o monarca liderava suas tropas, começou a substituí-lo nas batalhas, transformando-se em comandante dos exércitos e máxima autoridade do reino, depois do próprio Rei. Junto a ele, o "Maiordomus Curiae", ou "Mordomo da Corte", cuidava tanto da organização do palácio como da administração civil do reino, mas outro custódio de símbolos, o "Cancelarius Curiae", ou "Chanceler da Corte", ia ganhando terreno.

Inicialmente, o Chanceler não era outra coisa que um guarda-selos encarregado de autenticar os documentos que saíam das mãos do Rei, mas, aos poucos, foi recebendo a incumbência de revisar o seu conteúdo, detectando falhas de redação e conflitos com outras disposições ou privilégios previamente concedidos, o que supunha, também, a obrigação de guardar e consultar freqüentemente à legislação já existente. Dessa função de revisor para a de conselheiro do Rei, a assessorá-lo na sua atividade legisferante, seria apenas um passo.

Não parece que, nos primeiros tempos, fosse exigida a formação jurídica. Longe das primeiras universidades, já em expansão na Europa Central, os monarcas portugueses buscavam seus assessores no clero, único setor da sociedade que conservava o saber e a capacidade de negociação necessários para lidar com as funções administrativas mais complexas. Já em tempos de D. Afonso Henriques, o título de "magister Albertus" dado ao chanceler parece indicar que esse funcionário, que ocupou o cargo desde 1142 até 1169, tinha formação universitária. O mesmo título foi dado a mestre Julião, que ocupou o cargo entre os reinados de Afonso I e Afonso II, mas não há indícios de que essa formação já constituísse uma exigência para ocupar o cargo.

Mais do que a formação jurídica, era habitualmente requerida a origem eclesiástica, a ponto de diversos funcionários que ocupavam altos cargos administrativos serem chamados genericamente de "os clérigos do Rei". Durante as primeiras décadas do reinado de D. Afonso Henriques, todas os pessoas que ocuparam a Chancelaria foram recrutadas entre o clero da Igreja de Braga, a começar pelo próprio arcebispo, D. Paio Mendes, nomeado Chanceler por diploma de 27 de maio de 1128. Embora sejam todas nomeações pessoais, não se tendo notícia de lei alguma que outorgasse a propriedade desse cargo à Mitra bracarense, esse direito - supostamente já adquirido - foi invocado em 1221 pelo papa Honório III, gerando uma controvérsia que durou até 1238.

Resolvida de forma política, mediante um acordo das partes, essa controvérsia deixou no escuro a real origem desse direito, não ficando claro, pela documentação até agora conhecida, se a nomeação recorrente de clérigos bracarenses foi simples coincidência - em cujo caso, mestre Alberto teria sido nomeado sem ferir nenhum privilégio previamente concedido - ou se tal privilégio realmente existiu e foi retirado pelo Rei, talvez em decorrência dos desentendimentos que teve com D. Paio, já então guindado à dignidade de Pontífice. Uma terceira hipótese, não necessariamente contraditória com as anteriores, seria que, existindo ou não esse privilégio, tenha pesado na decisão do Rei a já aludida formação universitária do "magister".

Também não deve ter sido imprescindível a formação jurídica dos primeiros juízes. Dos ordinários, sabe-se que, até épocas bem mais recentes, eram, em sua maioria, funcionários municipais; cargos políticos providos por eleição e sem qualquer exigência de capacitação profissional. Quanto aos de maior alçada, os documentos mais antigos falam em "superjudex" ou "sobrejuízes", sediados na Corte e encarregados de julgar, em primeira instância, as causas originadas dentro dela ou que envolvessem nobres, prelados e outros privilegiados e, em segunda instância, as "suplicações" ou recursos interpostos às decisões dos juízes ordinários.

Tribunais e Juízes Itinerantes

Se esses sobrejuízes agiam em forma individual ou coletiva, não está ainda devidamente comprovado. Há provas documentais de que, mesmo antes da formação de Portugal, já aconteciam, na Corte de Leão, julgamentos colegiados, mas não está claro se esses tribunais tinham funcionamento permanente ou se eram constituídos ad hoc, apenas para julgar questões de extrema importância. Quanto à sua conformação, primavam, em forma aparentemente equilibrada, os nobres e os clérigos, não havendo menção específica a magistrados com formação universitária. Na Corte de D. Afonso Henriques e dos seus sucessores imediatos, parece ter havido apenas um sobrejuiz com as funções acima indicadas, ora denominado "superjudex totius regni", "superjudex domini regis", "superjudex Regni" ou "superjudex Curiae", mas já na Corte de D. Dinis há menção a um colegiado de sobrejuízes ou "ouvidores" encarregados de julgar os recursos supremos.

Já por essa época, a condição de letrado (originariamente, "aquele que conhece as letras e sabe leer e escrever") tornara-se desejável na administração pública e na magistratura, passando a identificar-se com a pessoa cuja formação universitária - habitualmente um misto de jurídica e religiosa - habilitava para desempenhar funções relativamente complexas. Foi D. Dinis o primeiro a envidar esforços para a criação da Universidade de Coimbra, e fontes diversas nos falam de quatro ou seis sobrejuízes atuando simultaneamente na sua Corte, sendo, provavelmente, todos, ou a maioria deles, formados em Leis ou Cânones.

A estrutura judiciária a serviço do Rei, até então restrita à sua própria Corte, começou a ramificar-se no reinado de D. Afonso IV, que instituiu um "Corregedor da Corte" e diversos "Corregedores de Comarca". Enquanto os sobrejuízes tinham poder, apenas, para revisar às sentenças dos juízes ordinários, os corregedores tinham como principal função a fiscalização permanente da atividade desses magistrados, podendo e devendo deslocar-se freqüentemente (em "correição") para verificar o estado de justiça em cada um dos termos submetidos à sua jurisdição. Essa instituição evidencia claramente que a monarquia portuguesa não mais dependia, para a sua sobrevivência, do apoio dos municípios e se considerava com direito de intervir neles, impondo suas próprias regras. Nesse mesmo período, por sinal, foram publicadas as Ordenações Afonsinas, impondo, pela primeira vez, uma estrutura legal unificada à atividade dos municípios.

A denominação de "Ouvidores", originalmente reservada aos sobrejuízes de maior hierarquia, encarregados de "ouvir" as suplicações interpostas às decisões do Sobrejuiz, foi posteriormente estendida a certos magistrados, com atribuições de corregedores mas com jurisdição em áreas especialmente conflitivas por serem protegidas por privilégios especiais. Era o caso das terras da Rainha, de certas casas nobres com direitos garantidos por forais, das ordens militares e, posteriormente, dos donatários das conquistas. Os ouvidores podiam ser designados pelos próprios privilegiados ou, em se tratando de terras das ordens, pelo Rei, na qualidade de Grão Mestre das mesmas. As suas funções, entretanto, eram assemelhadas às dos corregedores e, no que no estivesse contido nos seus regimentos específicos se regiam pela legislação a eles referida.

As Ordenações Afonsinas são responsáveis pela consolidação de uma estrutura mais complexa dos tribunais superiores. Entretanto, não é improvável que boa parte das inovações a elas atribuídas já existisse anteriormente na prática, embora a escassa documentação conservada não permita determiná-lo com certeza. Com base em estatutos por ele estimados como anteriores a 1337, Gama Barros registra a existência de um "Tribunal da Corte" composto por "dois sobrejuizes lettrados e entendidos, e dois ouvidores para os feitos crimes, e além d’estes mais dois ouvidores para as causas especialmente da coroa". As sentenças "haviam de ser dadas por dois juizes; e quando não existisse accordo entre ambos, juntar-se-hiam todos seis e prevaleceria a decisão adoptada pelo maior numero".

Já por essa época começava a definir-se o limite entre a "apelação cível" e a "suplicação" ou "apelação crime", em que o condenado se entregava à certa ciência e clemência do monarca. Promediando o século XIV, já a jurisdição real se separava em duas casas: a Casa da Suplicação e a Casa do Cível. Entretanto, existia ainda uma preponderância da primeira. Mesmo não sendo de caráter criminal, os recursos às sentenças da Casa do Cível - nos casos em que o montante do processo ou a qualidade das partes superassem a sua alçada final - podiam ser encaminhados à Casa da Suplicação.. Por outra parte, enquanto a Casa da Suplicação continuava acompanhando o Rei onde quer que ele fosse, a Casa do Cível já tinha sede mais ou menos permanente, evidenciando a menor importância que lhe era atribuída como complemento do poder real. É, também, indicativo dessa preponderância que a Casa da Suplicação tenha sido conhecida, em certas épocas, pelos títulos mais genéricos de "Casa de Justiça da Corte" ou "Tribunal da Corte".

É sob a denominação de "Casa da Justiça" que aparece nas Ordenações Afonsinas, concluídas em 1448. Estava constituída pelo Regedor, o Chanceler Mor, os Doutores, os Desembargadores do Paço, o Juiz dos Feitos d’El Rei, o Procurador da Justiça, o Corregedor da Corte e três Ouvidores. Esses magistrados trabalhavam em duas mesas que podiam ser reunidas para a apreciação de matérias especialmente graves.

As Ordenações Afonsinas deixam já em evidência a existência de magistrados especializados nas petições de graças e mercês, que, embora ainda integrassem o tribunal da suplicação, começavam a ser conhecidos como "Desembargadores do Paço". Já o Desembargo do Paço, entendido como órgão autônomo e superior à Casa da Suplicação, só viria ser regulamentado pelas Ordenações Manuelinas, em 1521. Era um conselho especial que assessorava o rei em todas as matérias de Justiça, constituindo-se mais num órgão administrativo que propriamente judicante, embora causas de especial transcendência pudessem ser levadas a ele como última instância revisional. Exercia um enorme poder sobre o reino e suas colônias e controlava, através da chamada "leitura dos bacharéis", o ingresso dos aspirantes à magistratura.

O estamento superior da Justiça portuguesa se completou em 1532, com o estabelecimento da Mesa da Consciência. Tratava-se, principalmente, de um órgão consultivo que assessorava o monarca nos atos que envolvessem questões de religião e moral, além de constituir-se em última instância judiciária para os recursos interpostos às decisões dos juízes dos cavalheiros. Não é casual que aparecesse justamente no reinado de D. João III, rei especialmente zeloso das relações políticas com a Santa Sé. Começava a etapa mais árdua das negociações para o estabelecimento da Inquisição e D. João precisava dar em troca um sinal de boa vontade e submissão às normas da Igreja. Esse gesto não foi suficiente para poupar-lhe uma década e meia de violentos confrontos diplomáticos com Roma, mas o novo tribunal vingou e foi legado às dinastias posteriores.

Por um curto período, durante o reinado de D. João I, houve - ao menos em teoria - uma divisão do reino em três jurisdições. Nas Cortes de Coimbra de 1385 - momento especialmente propício, porquanto o mestre de Avis acabava de ser elevado ao trono pela mobilização popular - os concelhos pediram o estabelecimento de três tribunais da suplicação, sediados em Lisboa, Évora e Coimbra. O Rei concedeu o pedido (ressalvando, entretanto, que o tribunal da sua corte estaria sempre sediado em Lisboa), mas não há constância de que essa decisão tenha sido implementada na prática.

A mesma petição foi elevada pelos representantes da nobreza em 1472, evidenciando que o sedentarismo adotado pela corte após a consolidação da monarquia já prejudicava tanto às regiões mais afastadas que até mesmo aqueles que mais facilidades tinham para deslocar-se, advogavam por uma solução. Os procuradores alegavam que, ficando as duas casas de agravos tão longe dos extremos do Reino, a pessoa que caísse em prisão languidecia nela dois, três ou quatro anos até o seu processo obter um julgamento definitivo e que, sendo concedida a instalação dos novos tribunais, as próprias custas processuais bastariam para sustentá-los.

Argumentos parecidos foram sustentados pelos concelhos, que novamente requisitaram essa criação em 1481. Em ambas as ocasiões, os soberanos - Afonso V e João II - limitaram-se a prometer que aumentariam o número de corregedores e determinariam à Casa da Suplicação viajar pelo reino julgando às apelações, tal como seus antecessores costumavam fazer pessoalmente, nos começos da monarquia. Porém, os tempos tinham mudado; a monarquia, prosperamente consolidada na expansão marítima, não mais dependia do apoio dos povos e, mesmo tratando-se de uma autoridade delegada e não do deslocamento pessoal dos reis, essa justiça itinerante não parece que tenha ido além das promessas.

Em verdade, o único tribunal estabelecido pela dinastia de Avis fora das regiões habitualmente transitadas pelos reis portugueses foi o de Goa, onde as dificuldades expostas pelos concelhos portugueses apareciam com especial intensidade. Se para um réu preso no Douro ou no Algarve o recurso se tornava penoso, imagine-se a situação daqueles que definhavam nas cadeias da Índia, China ou Japão. Instalado em 1544 com jurisdição mista, cível e criminal, o novo tribunal recebeu a denominação, extremamente genérica, de Casa da Relação, aludindo-se, evidentemente, à atividade principal que nele seria desenvolvida. Relação era a palavra utilizada para designar as reuniões dos magistrados ou, como se diria hoje, as sessões. Por extensão, passou a identificar os próprios tribunais e se transformaria num padrão para as cortes regionais a serem criadas posteriormente.

Fora esse isolado antecedente de regionalização, longe de Lisboa, a Justiça do Rei era representada apenas pelos corregedores das comarcas. Entretanto, às vezes, quando o caso o exigia, eram enviados magistrados especiais com a denominação de "Alçadas". Eram, geralmente, letrados de alta posição, mas podiam também ser clérigos ou fidalgos, desde que gozassem da plena confiança do rei e ele os apontasse para essa tarefa. Ao contrário dos corregedores, que eram nomeados para uma determinada comarca, por período determinado e com poder de decisão limitado pelas Ordenações, as alçadas eram missões especiais, em geral destinadas a controlar situações de emergência ou, pelo menos, que fugissem ao controle das autoridades regulares e, como enviados especiais do rei, possuíam plena jurisdição, sem apelação nem agravo, em qualquer lugar onde passassem e se fizesse necessária a sua intervenção. Às vezes, eram dotados apenas de jurisdição criminal, o que se explica pelo caráter emergencial das suas missões, mas não raro exerciam também jurisdição civil, concentrando em suas mãos toda a autoridade sobre os lugares visitados.

Parece que, às vezes, as alçadas provocavam mais problemas dos que resolviam. Nas Cortes, pedia-se com freqüência que o rei evitasse enviá-las. Não parece difícil entender que isso acontecesse, dada a extrema concentração de poder de que desfrutavam. Alegavam os procuradores que se, nos dois tribunais existentes, os desembargadores nem sempre concordavam e acabavam resolvendo as causas por votação, mal poderia um só magistrado julgar em última instância sem que pairasse sombra de dúvida sobre as suas decisões. Assim foi denunciado, por exemplo, em Montemor o Novo, em 1477, pelos procuradores do reino do Algarve. O rei não concordou completamente, mas prometeu que não enviaria mais alçadas para esse reino se não fosse por causas muito justas e necessárias.

Mesmo assim, o conceito de alçada permaneceu durante séculos na estrutura jurídica portuguesa. Foi uma alçada, presidida pelo Desembargador do Paço João Pacheco Pereira de Vasconcelos, que julgou os amotinados do Porto em 1757 e foi outra alçada, dessa vez apontada pelo vice-rei, mas provida em nome de D. Maria I, por carta régia de 16 de julho de 1790, que levou a Minas o Chanceler da Relação do Rio de Janeiro, Sebastião Xavier de Vasconcellos Coutinho, para conduzir a devassa da inconfidência de 1789.

Os Tribunais Filipinos

Embora o descobrimento e colonização inicial do Brasil tenham acontecido sob o reinado da dinastia de Avis, foi a dominação filipina que lhe deu a fisionomia definitiva, que iria subsistir por longo tempo após a Restauração. Empossado que foi o primeiro dos "Felipes" no trono português, mandou fazer um detalhado estudo da organização judiciária portuguesa, derivando dele, por lei de 27 de julho de 1582, os novos regimentos da Casa da Suplicação e do Desembargo do Paço, a extinção da Casa do Cível, a reforma da Relação de Goa e o estabelecimento de uma nova Casa da Relação, no cidade do Porto.

Consolidavam-se, assim, a tendência à unificação da Justiça em órgãos de competência mista e a regionalização dos tribunais. À instalação da Relação do Porto, primeira corte descentralizada em território continental português, se seguiria, em 1588, o alvará de regimento da Relação da Bahia, embora circunstâncias conjunturais impedissem, naquele momento, a sua instalação efetiva, que só viria a concretizar-se em 1609.

Simultaneamente com a reforma judiciária, foi encomendada a revisão das Ordenações, que foi concluída em 1595, mas só veio a ser publicada em 1603. É das Ordenações Filipinas que podemos extrair a definitiva organização dos tribunais que agiram sobre o Brasil nos dois séculos do apogeu colonial.

Sintomaticamente, o Título Primeiro do Primeiro Livro das Ordenações nos fala do Regedor da Casa da Suplicação. Não podia ser de outra maneira, considerando que esse cargo era representação direta da pessoa do rei na sua atribuição principal de zelar pela Justiça. O regedor deveria ser "Fidalgo, de limpo sangue, de sãa consciencia, prudente, e de muita auctoridade". Em contrapartida, não se exigia dele uma grande formação intelectual. "Letrado", somente "se for possível", mas precisava ser "sobre tudo tão inteiro, que sem respeito do amor, odio, ou perturbação outra do animo possa a todos guardar justiça igualmente".

Com essa finalidade, era imprescindível que fosse "abastado de bens temporaes, que sua particular necessidade não seja causa de em alguma cousa perverter a inteireza e constancia, com que nos deve servir". Recomendava-se-lhe, ainda, "temperar a severidade, que seu cargo pede, com paciencia e brandura no ouvir as partes, que os homens de baixo stado, e pessoas miseraveis achem nelle facil e gracioso acolhimento, com que sem pejo o vejão, e lhe requeirão sua justiça", ou seja, possuir e demonstrar as virtudes que idealmente deveriam ser encontradas no próprio rei, se ainda conduzisse os trabalhos do tribunal.

Abaixo do regedor mas, na prática, com um poder de decisão igual ou superior por ser quem efetivamente coordenava e orientava os trabalhos do ponto de vista jurídico, estava o Chanceler da Casa da Suplicação (que não deve ser confundido com o Chanceler Mor do Reino, que nas Ordenações é objeto de um título à parte). Do conceito original de chanceler conservava, essencialmente, a atribuição de "ver com boa diligencia todas as Cartas e sentenças, que passarem pelos Desembargadores da dita Casa, antes que as selle".

Caso entendesse que uma decisão ia "expressamente contra as Ordenações, ou direito", o chanceler não colocava o selo de validação, acrescentando, em compensação, a sua glosa e colocando-a de novo em debate perante o regedor. Entretanto, pelo fato de ser o autor da objeção e, portanto, parte interessada no debate, o chanceler era, nessa oportunidade, obrigado a retirar-se da discussão para que os desembargadores pudessem decidir livremente e em sã consciência. A decisão plenária tomada nessas condições considerava-se definitiva e só poderia ser revogada - caso a importância da causa justificasse esse recurso - pelo Desembargo do Paço.

Fora esses dois postos proeminentes, a Casa da Suplicação estava integrada por "dez Desembargadores dos Aggravos e Appellações, dous Corregedores do Crime da Corte, dous Corregedores das Causas civeis della, dous Juizes dos Feitos de nossa Coroa e Fazenda, quatro Ouvidores das Appellações de casos crimes, hum Procurador dos Feitos da nossa Coroa, hum Procurador dos Feitos da nossa Fazenda, hum Juiz da Chancellaria, hum Promotor da Justiça e quinze Desembargadores Extravagantes". Exigia-se deles que tivessem servido "algum tempo" na Relação do Porto, o que, além de evidenciar a superior transcendência desse órgão frente aos seus pares das colônias, o colocava como ante-sala obrigatória para o ingresso aos tribunais superiores e degrau insubstituível na carreira da magistratura.

Embora não apareça relacionado no trecho precedente, as Ordenações já mencionam o "Juiz dos feitos da Misericordia e Hospital de todos os Santos da Cidade de Lisboa", cargo que era também desempenhado por um membro da Casa da Suplicação. Quanto aos funcionários auxiliares, as Ordenações identificam: Escrivão da Chancelaria, Guarda Mor, Solicitador da Justiça, Distribuidores, Tesoureiro, Porteiros, Corredores da Folhas etc.

A organização e funcionamento desse tribunal reflete a que já estudamos sobre a Relação da Bahia e outras cortes inferiores, todas elas decalcadas na estrutura da Casa da Suplicação. As mesmas recomendações sobre pontualidade, isenção, precedências e ritos são especificadas em cada um dos regimentos. Diferem, apenas, conforme a localização e a hierarquia, o número de magistrados e, eventualmente, o agrupamento de cargos, sem que, por essa razão, as atribuições deixassem de ser claramente diferenciáveis.

A distribuição interna não tinha uma estrutura fixa, podendo o regedor repartir os desembargadores "per todas as mesas dos Officios ordenados, dando a cada mesa os que lhe bem parecer, segundo a qualidade e numero dos feitos". Entretanto, dos casos criminais em que a condenação pudesse chegar até à morte, deviam ser incumbidos, no mínimo, cinco desembargadores "para com o Juiz do feito serem seis, e não menos". Conformando-se, ao menos, quatro deles no mesmo parecer, poderiam proferir a decisão. Caso contrário, o número de julgadores seria aumentado para "que nunca se vença o condenar, ou absolver [...] senão per mais dous votos ao menos". A ordenação inclui, ainda, um princípio simultaneamente econômico e piedoso: caso os quatro desembargadores concordassem na culpabilidade, porém diferenciando-se no grau da pena a ser aplicada, não seria preciso mais dilação, podendo-se dar a causa por finda mas aplicando-se, dentre as penas propostas, a menor. Em definitivo... "in dubio pro reo".

Como tribunal regional, a Relação do Porto, distinguia-se por agir numa jurisdição específica, abrangendo as causas "que saírem das Comarcas de Tras-os-Montes, Entre Douro e Minho, e da Beira", bem como "das correições da cidade de Coimbra e Villa da Esgueira". Excetuavam-se dessa jurisdição os agravos originados na Comarca de Castel-Branco, "que por ficar mais perto da Casa da Supplicação, havemos por bem que vão a ella". Também estavam isentas da sua autoridade as decisões do Conservador da Universidade de Coimbra que, em virtude de privilégio previamente concedido a essa casa de estudos, só poderiam ser revisadas pela Casa da Supplicação.

Concebida à imagem e semelhança do tribunal superior, a Relação do Porto tinha uma organização similar, embora o número de cargos fosse mais modesto, por tratar-se de um tribunal de menor alçada. Fazia as vezes do regedor o Governador, que juntava às atribuições políticas, administrativas e militares a condução da Justiça na sua área de influência. Essa duplicidade de funções foi repetida sistematicamente em todos os tribunais regionais durante o período em estudo. Logicamente, considerando que o regedor não precisava, necessariamente, de formação jurídica e que, para os próprios governadores, a condução da Justiça era uma atividade secundária, esse requisito limitava-se a uma expressão de desejo ou preferência: "Letrado, se der podér". Em compensação, era imprescindível que fosse "natural destes Reinos, para que com mais amor e vigilância procure nosso serviço e o bem commum" e ainda, "em limpeza de sangue, fidalguia, inteireza de costumes e consciencia, [fosse] tão assinalado e de tanta auctoridade, quanto convem a pessoa, que tão grande Cargo sostem".

Tal como na Casa da Suplicação, o segundo cargo na hierarquia, mas o primeiro em formação jurídica e condução efetiva da atividade judicante, era o de Chanceler. Guardando as proporções, as atribuições eram similares. Entretanto, talvez por primar na Casa da Suplicação o caráter recursal, o seu chanceler limitava-se a conferir que as decisões não colidissem com "as Ordenações, ou direito", enquanto o da Relação do Porto, num terreno mais concreto, devia verificar que as sentenças não fossem, na prática, "contra nossos Direitos, ou contra o povo, ou contra a Cleresia, ou contra alguma pessoa, que lhe tolha, ou faça perder seu direito".

Fora esses cargos de condução, a Relação contava com "oito Desembargadores dos Aggravos, hum Corregedor dos feitos crimes, outro Corregedor dos feitos civeis, hum Juiz dos nossos feitos [da Coroa], tres Ouvidores do crime, hum Juiz da Chancellaria, hum Promotor da Justiça e seis Desembargadores extravagantes, e assi mais hum Procurador dos nossos feitos da Coroa, que usará do Regimento, que tem o da Casa da Suplicação".

Sendo a Relação do Porto a transição legalmente prevista para os tribunais superiores, era lógico exigir, dos candidatos a integrá-la, a formação profissional específica e um grau relativamente avançado de experiência na judicatura. Era imprescindível ter "studado na Universidade de Coimbra ao menos doze annos em Direito Canonico, ou Civil, ou oito annos em cada huma das ditas Faculdades". Quanto à experiência, se requeria, no mínimo, "quatro annos de serviço de Juiz de fóra, Ouvidor, Corregedor, ou Provedor, ou de Advogado na Casa da Supplicação".

Não se acha, nas Ordenações, menção a outros tribunais regionais. Exageradamente prolixas na regulamentação da Relação do Porto, omitem toda referência, não apenas à Relação da Bahia - ainda não instalada mas já regimentada em 1588 - como também à de Goa que, em 1603, estava em plena atividade. Aplicavam-se a elas, no que não estivesse definido nos seus próprios regimentos, as ordenações referentes à Casa da Suplicação e à Relação do Porto, entendidas como modelos a serem reproduzidos nos tribunais coloniais. No que diz respeito à da Bahia, o leitor poderá encontrar informação detalhada, além da transcrição integral dos regimentos de 1609 e 1652, no primeiro volume desta Memória da Justiça Brasileira.

Também não há referência ao tribunal da Mesa da Consciência e Ordens, embora ele constitua, inegavelmente, tribunal régio da mais alta hierarquia. Aliás, essa omissão parece ter sido constante na legislação portuguesa, sabendo-se, apenas, de um regimento, com data 24 de novembro de 1558, conservado no Arquivo Nacional da Torre do Tombo.

Já o Desembargo do Paço, sucintamente enunciado nas Ordenações - que apenas lhe dedicam um apertado resumo de atribuições restrito a quinze parágrafos - é mais conhecido pelo Regimento anexo a elas, datado de 27 de julho de 1582, que o Título III, § 15, manda cumprir e guardar "como em elle se contém". Ainda se fala pouco em "Desembargo do Paço". Todos os títulos e boa parte das menções no texto referem-se, apenas, a "Desembargadores do Paço", sendo o colegiado denominado de "Mesa" e não de "Casa", como deveria corresponder a um tribunal autônomo. Percebe-se que essa Mesa, originalmente integrante da Casa da Suplicação, foi, simplesmente, deslocada para o Palácio, a fim de aumentar a sua alçada e ficar mais próxima do rei.

Nem o Regimento nem o texto principal das Ordenações mencionam diferenciação ou especialização dos magistrados, que parecem apreciar, conjunta ou isoladamente, as questões a eles submetidas sem nenhuma delimitação de competência. Nem mesmo um cargo de condução aparece especificado, o que reforça a impressão de que se tratava, essencialmente, de um conselho de assessores da Coroa, presumivelmente presidido pelo próprio rei ou, na sua ausência, pelo desembargador mais antigo.

A despeito dessa escassa definição estrutural, os Desembargadores do Paço desfrutavam de um poder considerável, sendo a eles submetidos, em última instância, os problemas mais sérios de governo e justiça. Ouvidores, governadores e outras autoridades eram bem sucedidos nas suas funções na medida em que soubessem conservar boas relações com o Desembargo do Paço. Pelas suas mãos passavam, também, as petições de graças, perdões e fianças e a eles eram encaminhadas as consultas sobre conflitos de jurisdição entre a Casa da Suplicação e a Relação do Porto. As "residências" dos magistrados que concluíam seus períodos eram tomadas por desembargadores das Relações, mas, caso evidenciassem responsabilidade civil superior a certa quantia ou criminal que, se provada, merecesse pena corporal, os processos eram encaminhados ao Desembargo do Paço.

Rotinas e Procedimentos

A atividade desses tribunais está minuciosamente regulamentada nas Ordenações e nos seus respectivos regimentos. As sessões eram sempre precedidas por uma missa e deviam durar, no mínimo, quatro horas, exceto as do Desembargo do Paço, que podiam limitar-se a três. Os assuntos eram distribuídos por tipo ou por origem, em determinados dias da semana. Assim, a Casa da Suplicação dedicava as terças, quintas e sábados para as audiências dos agravos e apelações e as segundas, quartas e sextas às do Juizo dos Feitos da Coroa e Fazenda e dos Ouvidores do Crime. Em virtude da disposição expressa no Livro primeiro, Título XXXV, § 5, das Ordenações, essa programação, bem como boa parte das demais rotinas previstas para a Casa da Suplicação, aplicava-se, também, à Casa do Porto.

Já o Desembargo do Paço distribuía alguns feitos pela sua origem, despachando, às segundas feiras, "os negocios e papéis das Comarcas de Estremadura, Ilhas e Beira" e, aos sábados, "os das Comarcas de entre Tejo e Guadiana, e Reino de Algarve, e Entre-Douro e Minho, e Traz-os- Montes". Nota-se, mais uma vez, a omissão de toda referência às colônias ultramarinas, embora isto possa dever-se, simplesmente, à impossibilidade prática de "os Scrivães [das Câmaras] das ditas Comarcas", conforme previsto no regimento, se fazerem presente às sessões "com os papéis e negocios, que a ellas tocarem". Dentre os dias restantes, as quartas-feiras eram destinadas ao "despacho dos Letrados", as sextas aos perdões e as terças e quintas a "todas as mais petições e negocios".

O despacho era matutino, recomendando as Ordenações que começasse cedo para que pudesse, sem empecilhos, desenvolver-se durante as quatro horas previstas. Mais explícito, o Regimento dos Desembargadores do Paço estabelece que acontecerá "as manhãs de todos os dias, que não forem Domingos, ou Festas, que a Igreja manda guardar [...] do primeiro dia de Outubro até o derradeiro de Março ás oito horas, e do primeiro de Abril até o derradeiro de Setembro ás sete", donde se deduz que esse órgão não tinha um período de férias coletivas.

Já no caso da Casa da Suplicação, há menção explícita ao período de férias. O § 20 do Título I manda despachar "nos derradeiros dias antes do spaço todos os feitos, que stiverem em Relação, que per petição junta aos autos se mandassem a ella vir". O § 21 obriga o regedor a fazer um relatório "de todos os feitos, que na Casa da Supplicação no tal anno se despachárão finalmente, e de quantos lhe ficárão por despachar, para pelo dito rol sabermos os feitos, que cada hum Desembargador despachou, e os que ficão por despachar, e lhes mandarmos dar despacho no anno seguinte". Finalmente, o § 22 instrui a deixar um desembargador que, durante as férias "veja os feitos, e cartórios dos Scrivães do Crime, e faça executar todas as penas e condenações de dinheiro, que naquelle anno se aplicárão para as despesas da Relação, ou para outras obras pias".

A data das férias variava conforme as regiões, não sendo, em princípio, para o descanso dos magistrados, mas "para colhimento do pão e vinho", ou seja, para permitir que as partes atendessem suas culturas. Embora durassem sempre dois meses, deviam ser determinadas pelos julgadores "segundo a disposição e necessidade das terras, repartindo os tempos ás sazões, em que os taes fructos houverem de colher". A Casa da Suplicação e a Relação do Porto, cujas jurisdições estavam menos vinculadas à atividade rural, também gozavam de sessenta dias de férias, mas a data estava predeterminada pelas Ordenações, abrangendo sempre os meses de setembro e outubro.

Os feitos eram distribuídos aos membros do tribunal, sendo um magistrado, na condição de "juiz do feito", incumbido de relatar e escrever, enquanto outros dois - nos feitos cíveis - compunham com ele a mesa, deliberando e decidindo por maioria. Nos feitos criminais, conforme a gravidade do caso, esse número podia ser aumentado para garantir uma deliberação mais exaustiva. Lidas "as inquirições e scripturas", votava primeiro o juiz do feito, fazendo-o, à continuação, os outros membros da mesa. Todos os julgadores - mesmo aqueles que tiveram os seus votos vencidos - deviam assinar a decisão, sendo proibida a adição de ressalvas ou esclarecimentos que permitissem saber quais deles concordaram na decisão final.

As partes podiam ser representadas por advogados ou procuradores, que deviam possuir a mesma formação profissional que os desembargadores, embora deles se exigisse apenas oito anos de estudo. Na Casa da Suplicação atuavam quarenta procuradores, previamente examinados pelo chanceler e os desembargadores agravistas cuidando que "além das letras e sufficiencia, sejão homens de boa fama e consciencia". Havendo mais de um postulante, deviam debater entre si. Caso contrário, chamava-se os procuradores em exercício para que contra-argumentassem durante a avaliação do candidato.

Já na Casa do Porto e, em conseqüência, também nas outras Relações, bastava o reconhecimento dos estudos, não sendo requerido exame nem seleção. Os bacharéis também podiam "procurar nas correições, Cidades, Villas, e lugares de nossos Reinos e Senhorios, sem para ello terem necessidade de licença, mostrando aos Julgadores as Cartas de seus gráos, e certidão authentica dos cursos". Porém, nas alçadas ou correições onde fosse estabelecido um número certo de procuradores, era exigida licença da Coroa.

Procuradores não graduados estavam proibidos de advogar nos tribunais. Já nas correições, vilas e cidades podiam fazê-lo desde que fossem previamente examinados e encontrados aptos pelo Desembargo do Paço, que deveria passar-lhes cartas de habilitação. Em alguns lugares, por especial privilégio, podia procurar quem quisesse, mesmo sem provisão do Desembargo do Paço, desde que fosse "pessoa idonea" e não fosse impedida de advogar por causa da sua condição.

Fidalgo ou cavalheiro só podia procurar "por as pessoas, que com elle viverem, e por seus caseiros, que viverem e lavrarem em suas herdades, e por seus amos e mordomos". Os clérigos e religiosos podiam procurar, exclusivamente, "por si, ou polos seus, ou por aquelles, por quem de Direito o podem fazer, assi como por suas Igrejas, e por as pessoas miseraveis, e por seus pais, ou mãis, ou outros ascendentes, ou irmãos". Mesmo nesses casos especiais, exigia-se que defendessem seus direitos "honestamente, sem scandalo, nem arroido", falando "mansamente [...] ao Juiz e á parte contraria".

Tratava-se, evidentemente, de poupar a Justiça da prepotência dos poderosos, o que fica ainda mais evidente na proibição aos que o são "por razão do Officio", tais como "cada hum dos Julgadores das nossas Relações, ou nosso Vedor da Fazenda, ou qualquer outro nosso Oficial da Justiça, igual destes, ou maior", os que não apenas estavam impedidos de advogar como não podiam sequer aconselhar nem dizer sua opinião em causas que não estivessem a eles cometidas.

 

Suspeições, Suspensões, Devassas e Residências

Embora o poder conferido à magistratura já fosse considerável, uma leitura atenta das Ordenações revela uma grande variedade de mecanismos de controle. Inicialmente, qualquer julgador podia ser recusado por suspeição que, se provada, motivava o seu afastamento do processo. Suspeições contra juízes ordinários ou de fora eram apreciadas pelo ouvidor ou corregedor da comarca. Nos tribunais, as suspeições contra seus membros eram apreciadas em desembargo, com a presença do regedor ou governador. Qualquer julgador podia, espontaneamente, declarar-se "suspeito em sua consciencia [...] em feito, ou cousa, que a elle pertença, ou a cada um de seus parentes, ou cunhados dentro do quarto gráo". Também seria passível de suspeição - posta ou declarada - se o processo envolvesse os que "com elle vivem, ou o servem", bem como os oficiais e funcionários a ele subordinados.

A suspeição não representava prejuízo ao cargo ou à carreira do magistrado, nem se estendia a outros feitos a ele incumbidos. Já o descumprimento das Ordenações implicava, além da nulidade do ato questionado, em pagamento de vinte cruzados e suspensão no cargo "até nossa mercê". O magistrado também podia ser suspenso, preventivamente, "por erro, que se diga ter commettido por malicia em seu Officio, por que provado mereceria perdêl-o". Nesse caso, sem prejuízo da prisão ou de qualquer outra medida cautelar que se tornasse necessária, era afastado até o completo esclarecimento do caso e, conforme o resultado, destituído definitivamente ou restituído à sua função.

Necessário se faz considerar que, no que tange aos magistrados e outros ofícios providos pela Coroa, acima de qualquer consideração de capacidade, representatividade ou conservação de direitos adquiridos, pesava a confiança que neles o rei depositava. Quebrada essa confiança - mesmo sem causa comprovada - o cargo ou função podia ser retirado, o que está explicitamente estabelecido no Título XCIX do Livro Primeiro: "E postoque nas cousas, que assi dos sobreditos sabemos, e que á nossa noticia vem, ás vezes não há provas tão claras, porém há quanto basta para sermos certo, que somos delles mal servido, e elles errarem nos ditos Officios, de maneira que será mais serviço de Deos e nosso serem-lhes tirados, que deixal-os star nelles [...] determinamos, que quaesquer Officios, que dermos, assi da Justiça, como de nossa Fazenda [...] quando quer que Nós soubermos, e nos certificarmos em nossa consciencia, que alguns dos ditos Officiaes nos servem nelles mal, e fazem o que não devem, ou danificão e roubão nossa Fazenda, lhos possamos tirar e dar aos que nossa mercê for, sem por isso lhes sermos em obrigação alguma".

Mas se essa possibilidade inibia condutas inadequadas, muito mais fazia pela retidão dos magistrados a certeza de serem investigados exaustivamente quando abandonassem o seu posto. Escolhidos por um ano, a atuação dos juízes ordinários devia ser devassada por seus sucessores, começando a não mais de dez dias da data da posse e contando com um mês de prazo, durante o qual deveriam ser interrogadas não menos de trinta testemunhas, conforme um questionário explicitamente determinado. Na mesma oportunidade, os juízes deveriam devassar os "Alcaides e Meirinhos", os "Tabelliães" e "todos os outros Officiaes e Ministros de Justiça, assi Vereadores, Juizes dos Orfãos, Scrivães, Juizes das Sisas, Scrivães dellas, Procuradores, Almoxarifes, Recebedores, Almotacés, Alcaides das Sacas, Juizes dos Residuos, onde os houver". Mesmo os juízes de fora - escolhidos, como já se viu, pela Coroa e não empossados anualmente por pelouros - deviam efetuar todo ano similar devassa nos termos a eles cometidos.

Se essa providência existia nos municípios - constituindo, aliás, uma flagrante intromissão da Coroa em assuntos internos que, nos primeiros séculos, eram considerados privativos de cada comunidade - imagine-se o controle que seria exercido sobre seus próprios funcionários. Antes "hum mes, ou dous, que acabem os três annos de sua Correição, Ouvidoria ou Judicatura" o juiz de fora, ouvidor ou corregedor devia dar aviso por escrito "para mandarmos hum Desembargador, ou outra pessoa, que nos bem parecer, á dita Comarca, Correição, ou lugar, tomar-lhe residencia", sob pena de que, omitindo ou protelando o aviso, "seja privado do Officio, e nunca mais haja Officio de julgar".

Chegando à localidade em que o investigado residia, o magistrado enviava alvarás "a cinco, ou seis lugares da Comarca, para nelles se saber, e vir á noticia dos outros lugares della". Convocava neles a "toda a pessoa, que quiser demandar o dito Corregedor, ou Ouvidor [...] por qualquer caso que seja", acrescentando "que o Corregedor não ha mais de tornar á dita Correição". Assim, cada interessado podia exprimir-se sem medo de represálias.

O investigador permanecia um mês - ou mais, se diante dos fatos apurados o julgasse necessário -, durante o qual o magistrado sob investigação devia afastar-se da Comarca e hospedar-se em lugar certo e conhecido, enquanto o próprio devassante o substituía na prestação jurisdicional. Perante ele vinham os denunciantes, podendo ele prover às partes "quanto aos seus interesses, ou cousas, que lhe foram tomadas, ou levadas, até quantia de oito mil reis nos bens de raiz, e dez mil reis nos bens moveis". Sendo as demandas por maiores quantias ou por culpas que merecessem pena corporal, o investigador limitava-se a apurar os fatos e registrar tudo nos autos.

Simultaneamente à publicação e audiência dos denunciantes, o devassante interrogava, conforme um questionário predeterminado nas Ordenações, "os Officiaes da Correição, e os Juizes e Officiaes, que servirão no seu tempo, e Tabelliães, e alguns homens mais principaes, que tenham razão de o saber". Esse questionário abrangia os aspectos mais importantes da atuação do magistrado e procurava determinar a sua responsabilidade e a dos eventuais cúmplices nas irregularidades apuradas. Aos escrivães, mandava apresentar os registros de processos não apelados, objetivando verificar se fora negada a apelação sobre algum feito além da alçada final do investigado. Só depois de ter ouvido todos os testemunhos e visto todas as provas, o devassante chamava o magistrado investigado para ouvir a sua defesa e verificar as provas ou documentos que tivesse a apresentar. De todo o investigado, eram os autos conclusos ao Desembargo do Paço.

De nada valia o magistrado sob investigação tentar fugir à sua responsabilidade. O Título LX, § 3, determina que "se o Corregedor, ou Ouvidor, que houver de fazer a residencia, fugir, ou a não a vier fazer, havemos por bem, que todos os crimes e excessos, e causas, por que for demandado, ou accusado [...] sejão havidos por provados e confessados, como se fossem perfeitamente provados por legitimas provas, postoque a ellas não seja dado prova alguma".

Até que ponto esses rigorosos mecanismos de controle evitavam, efetivamente, os excessos e desmandos, é difícil comprovar. Como em muitos outros aspectos, a aplicação das leis feitas na península resultava problemática nas vastas e conflitivas jurisdições coloniais. Durante um século e meio, a Relação da Bahia - integrada, quando completa, por dez desembargadores - foi o único órgão capaz de realizar residências em todo o território brasileiro (exceto, é claro, nas comarcas do Maranhão e Grão Pará, subordinadas à Casa da Suplicação e, portanto, mais afastadas ainda da sua instância imediata de fiscalização e controle). As grandes distâncias, as dificuldades de comunicação e o poder, às vezes desmedido, das lideranças regionais tornavam uma tarefa ímproba a apuração exaustiva dos atos dos magistrados. Tal como acontecia na Espanha - dona, igualmente, de um império de proporções globais - não faltavam leis. Faltavam, sim, os meios para aplicá-las e garantir a sua observância, o que explica os não poucos desmandos e arbitrariedades de que a história guarda registro.



Capítulo Anterior próximo capítulo