Antiga Câmara Municipal da Cidade de São Paulo.
(Reconstituição de José Wasth Rodrigues) |
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Memória
da Justiça Brasileira - 2 |
Capítulo 6
A Justiça Municipal
e as Cortes do Reino
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Tal como acontecia na Espanha e suas colônias,
boa parte da Justiça portuguesa de 1ª instância residia no âmbito municipal.
Não que não existissem outros órgãos com essa jurisdição. Na verdade,
era ampla e até confusa a variedade de assuntos que só podiam ser julgados
por foros especiais: causas envolvendo interesses da Coroa, como as da
Fazenda, da Alfândega ou das minas; delitos cometidos por sacerdotes ou
membros das ordens militares-religiosas; feitos ocorridos dentro da área
de jurisdição direta de um ouvidor ou tribunal etc. No entanto, retirando
todas essas jurisdições de exceção, o que restasse - o que poderia ser
chamado de "justiça comum" - era de exclusiva competência dos municípios.
Também no caso de Portugal, a instituição
municipal estava baseada no direito romano que, por sua vez, inspirara-se
parcialmente na polis grega. Apesar de não exercer o rol soberano
de cidade-estado, o município português - submetido, de longas datas,
ao poder feudal - conservava, ainda, sua composição eletiva, representando,
assim, o único rasgo democrático no seio da monarquia.
O poder municipal residia, basicamente, no
Conselho, o conjunto dos "homens bons" do lugar, representados
pela Câmara ou Mesa da Vereação. Nas cidades principais,
essa Mesa assumia o título de Senado da Câmara.
Os municípios portugueses nasceram em forma
mais ou menos independente, durante o período feudal. Na ausência de uma
autoridade e uma legislação centralizadas, cresceram e se organizaram
com base nos costumes e forais das diversas regiões. A primeira tentativa
documentada de padronização encontra-se nas Ordenações Afonsinas
que, visando um maior controle e dependência da Coroa, determinaram que
as câmaras fossem constituídas por vereadores e presididas
por um Juiz Pedâneo, todos eles elegíveis entre os "homens bons"
de cada localidade. Logicamente, a Coroa poderia determinar os critérios
que caracterizassem um homem como "bom". Por outra parte, as Ordenações
submeteram toda postura, resolução, lei ou decreto das autoridades municipais
à confirmação dos provedores que, por serem funcionários da Coroa,
davam a ela a última palavra em qualquer questão a ser resolvida.
Essa organização foi mantida nas Ordenações
Manoelinas. D. Manoel I criara, previamente, a figura de Juiz
Avindor ou Consertador de Demandas, mas esse cargo não foi
incluído nas novas Ordenações.
A definitiva estrutura de governo para os
municípios foi estabelecida, em 1603, pelas Ordenações Filipinas,
que determinaram os procedimentos para a escolha de juízes, vereadores
e procuradores, bem como as atribuições e limitações dos Conselhos
quanto à administração, às rendas públicas, à regulamentação do comércio
e dos ofícios e à participação nas festas religiosas. Também estabeleceram
um sistema de controle mais rigoroso, exigindo-se a prestação anual de
contas aos provedores e a apresentação dos livros da receita e despesa
ao Desembargo do Paço.
Governo e Justiça nos Municípios
No Brasil, o poder municipal foi constituído,
inicialmente, na fundação de São Vicente, em 1532, mostrando, desde o
primeiro instante, uma estrutura quase definitiva, de longe a mais complexa
dessa recenada época da colônia. Enquanto as capitanias - ou mesmo o Governo
Geral, instalado em 1549 - resumiam-se a umas poucas funções regulamentadas
(conforme o caso: Capitão ou Governador, Ouvidor
ou Ouvidor Geral, Provedor ou Provedor Mor), deixando
boa parte das funções secundárias ao arbítrio dos donatários e governadores,
o município português foi transplantado ao Novo Mundo com todos os seus
quadros já definidos. Com pequenas alterações, essa estrutura subsistiria
durante todo o período colonial.
Conforme as dimensões do município, cada Mesa
da Vereação estava integrada por dois, três ou quatro Vereadores
e um ou dois Juízes Ordinários31. O juiz presidia
as sessões, mesmo em aspectos administrativos e políticos. Sendo dois,
alternavam-se mensalmente nas funções rotineiras, precedendo o mais antigo
nas ocasiões mais solenes. Serviam à Câmara um Procurador, um Tesoureiro,
um Distribuidor e vários Escrivães e Tabeliães. A
ela estavam ligadas, também, as funções de polícia, lideradas por um ou
mais Alcaides-pequenos e executadas por Quadrilheiros. Embora
fossem funcionários municipais, os alcaides pequenos respondiam ao Alcaide-mór,
funcionário do âmbito da Capitania. Também a cadeia era uma dependência
do município, existindo, para sua custódia, um ou mais carcereiros.
A estrutura judiciária começava - no controle
da obediência às disposições do município - por dois juízes almotacés,
escolhidos mensalmente pela Mesa da Vereação. Estavam incumbidos de fiscalizar
o abastecimento, a limpeza, as obras públicas, os pesos e medidas usados
no comércio etc. Eles podiam julgar informalmente, sem grandes processos
nem escrituras, mas todas as suas decisões podiam ser apeladas perante
os juízes ordinários.
Os Juízes Ordinários - também chamados
Juízes da Terra por serem, como os vereadores, moradores do município
- eram a representação mais clara da magistratura de 1ª instância. Podiam
conhecer ações novas - mesmo nos casos de infrações ou delitos alheios
ao âmbito municipal - ou revisar as decisões dos magistrados inferiores
(juízes almotacés e juízes de vintena). Tiravam devassas
particulares sobre feitos de sangue, violentação de mulheres, destruição
de propriedade comunal ou privada, falsificação de moeda etc. Estavam,
também, incumbidos de controlar a atuação dos juízes, vereadores e oficiais
de justiça do âmbito municipal, incluindo a dos juízes ordinários que
lhes precederam nos cargos. Podiam dar audiências, expedir mandados de
prisão ou alvarás de soltura, instruir e sentenciar, com alçada, nos bens
móveis, até mil reis, nos lugares com mais de 200 habitantes, e até seiscentos
reis, nas comunidades menores. Nos bens de raiz, essa alçada caía para
quatrocentos reis.
Por cima desses limites, o juiz despachava
conjuntamente com os vereadores. Esse tribunal improvisado atingia uma
alçada de seis mil-réis, donde se deriva a freqüente imposição, por parte
das câmaras, de penas pecuniárias limitadas a esse valor. As condenações,
previstas em numerosas posturas, constituíam uma parcela considerável
das rendas dos municípios. Juiz e vereadores podiam, também, julgar crimes
e injúrias verbais, ainda que envolvessem pessoas de maior condição mas,
nesse último caso, as decisões não eram definitivas, cabendo recurso aos
ouvidores ou corregedores.
Possuir câmara era privilégio, apenas, das
vilas e cidades. Comunidades menores, desde que contassem com um mínimo
de vinte moradores, podiam ter um juiz de vintena, designado pela
autoridade municipal em cujo termo o vilarejo se encontrasse. Esses juízes
podiam ordenar prisões - mesmo que os acusados não fossem moradores do
lugar - desde que cometessem delitos na sua jurisdição ou já estivessem
sendo procurados por mandado de autoridade competente. No entanto, eles
não estavam habilitados para conhecer de feitos criminaia s, obrigando-se
a encaminhar os detentos para o juiz ordinário. Também não tinham competência
para julgar causas cíveis envolvendo bens de raiz, mas podiam resolver,
dentro de limites predeterminados, as controvérsias entre vizinhos do
seu termo. Essa alçada era fixada por faixas, partindo de 100 reis, nos
vilarejos com menos de 50 moradores, até atingir o valor máximo de 400
reis, nos povoados com mais de 200 habitantes,.
No exercício das suas funções, os juízes ordinários
contavam com a ajuda de Inquiridores, encarregados de tomar o juramento
sobre os Santos Evangelhos e interrogar as testemunhas, enquanto um escrivão
tomava nota dos depoimentos. No entanto, havia inquirições que só o juiz
estava habilitado a fazer, contando-se entre elas os casos de assassinato,
ferimento que deformasse o rosto da vítima, ou furto merecedor de pena
capital e as causas cíveis que envolvessem interesses da Coroa. Havia
também um contador dos feitos e custas, incumbido de fazer os cálculos
que fossem necessários aos processos e de determinar as custas a serem
pagas pelas partes.
O policiamento urbano era coordenado pelo
Alcaide, auxiliado pelo Escrivão da Alcaidaria e por um
número variável de Quadrilheiros. Esses funcionários se reuniam
diariamente na casa do alcaide, ao toque da Ave-Maria, para combinar o
policiamento noturno. O escrivão acompanhava a movimentação do alcaide
para registrar as ocorrências, enquanto os quadrilheiros se espalhavam
pela cidade, conforme as instruções recebidas. Esses funcionários podiam
prender em flagrante ou por ordem de juiz, devendo entregar os detentos
ao carcereiro com a informação necessária para possibilitar o seu julgamento
ou soltura.
Nenhum desses funcionários - nem mesmo os
próprios juízes - precisava ser letrado. O que verdadeiramente qualificava
o juiz era a representação delegada pela comunidade. As suas decisões
se baseavam, principalmente, nos costumes da região, e esse direito consuetudinário
era quase que exclusivamente oral. Mesmo após a promulgação das Ordenações,
o caráter representativo dos juízes, o apego das comunidades às suas próprias
tradições e a eleição dos magistrados por períodos reduzidos dificultavam
o conhecimento exaustivo da legislação. Até mesmo a consulta era problemática.
Todas as cópias das Ordenações Afonsinas foram manuscritas.
Já as Manoelinas e Filipinas foram impressas,
mas a indústria editorial era incipiente e as obras muito volumosas. Cada
coleção das Ordenações constava de cinco livros, coleção
que dificilmente um município pequeno poderia possuir completa. Glosas,
comentários e obras de jurisprudência, nem pensar.
Em 1532, enquanto os primeiros juízes ordinários
eram empossados no Brasil, um novo tipo de magistrado aparecia em Portugal:
o juiz de fora ou, como inicialmente fora chamado, de fora à
parte. Era um funcionário letrado, formado em Leis ou Cânones e nomeado
pela Coroa, geralmente assumindo a sua primeira responsabilidade na carreira
jurídica. Avantajava os juízes ordinários, não apenas na formação profissional
mas, também, na isenção a respeito das pressões locais. O cargo não podia
ser exercido no local de origem ou residência habitual do magistrado e
não era permitido o matrimônio ou qualquer outro vínculo pessoal com os
seus jurisdicionados. Por outra parte, a sua autoridade, delegada pela
Coroa, era muito superior à dos juízes ordinários.
Esperava-se do juiz de fora uma administração
de justiça profissionalizada, baseada no direito escrito e nas Ordenações,
independente e soberana; mas não pode negar-se o interesse, por parte
da Coroa, de, através dessa mudança, centralizar o poder a expensas dos
municípios.
Durante o período de formação da nacionalidade,
a Coroa portuguesa se baseara nas autoridades comunais representativas
para enfraquecer o domínio dos senhores feudais. No Brasil e em outras
áreas de difícil administração, essa representatividade subsistiria, ainda,
por muito tempo. Frente a índios, corsários e traficantes, a terra estaria
melhor defendida por seus ocupantes se eles se considerassem donos do
solo que pisavam. Parte importante dessa atitude era, evidentemente, a
consciência de ter um certo grau de autonomia na gestão dos negócios comunais.
Por outra parte, as cartas e forais concedidos aos primeiros donatários
impediam o ingresso de magistrados providos pela Coroa.
Pelo contrário, na península se vivia um período
de paz e expansão econômica e política, que estimulava à Coroa para implantar
medidas mais audaciosas, tendendo a aumentar o controle central, não apenas
no aspecto judicial mas também nas decisões políticas e administrativas.
Como membro mais importante da administração comunal, o juiz ordinário
presidia, tradicionalmente, as deliberações da Câmara. Substituindo-o,
o juiz de fora passava, automaticamente, a ser a máxima autoridade do
município.
Essa ambição da Coroa remontava à época de
D. Fernando I, em cujo reinado as cortes de 1371, reunidas em Lisboa,
já protestavam pela substituição, em algumas cidades, dos magistrados
municipais por juízes e regedores nomeados pela Coroa. O rei, que não
era particularmente sensível aos apelos populares, declarou ter feito
a mudança para melhor governo das cidades e aprimoramento da justiça,
mas a coroação de D. João I, rodeada de intensa movimentação popular,
não permitiu a consolidação dessa política centralizadora.
A verdadeira reforma, que consolidaria definitivamente
a figura jurídica do juiz de fora, foi iniciada por D. João III, em 1532.
Reinando num Portugal sólido e em plena expansão e gozando - ao contrário
de D. Fernando - da confiança dos diversos setores da população, não teve
maiores dificuldades para iniciar a centralização. Em 1580, ano em que
Felipe II cingiu a Coroa, mais de 50 municípios portugueses eram já governados
por juízes de fora.
Uma mudança ainda mais drástica poderia ter
acontecido durante o período filipino. Na Espanha e suas colônias, os
cargos de regidores - equivalentes, na hierarquia municipal, aos
vereadores - foram privatizados, tornando-se hereditários, passíveis de
compra e venda e desaparecendo completamente o seu caráter representativo.
Por que não aconteceu a mesma coisa nas possessões portuguesas onde, já
tradicionalmente, provedores e outros funcionários da administração central
eram proprietários dos seus cargos? Ao reclamar a Coroa, Felipe II prometera
manter Espanha e Portugal como reinos distintos. Apesar de apoiar as suas
pretensões com as armas, não se apresentou como um conquistador, mas como
um legítimo herdeiro, comprometendo-se a reinar com o apoio das instituições
já existentes e a respeitar as leis e tradições. Os brios portugueses
não deveriam ser feridos, e isso aconteceria, inevitavelmente, se os concelhos
- único órgão representativo da população, fossem atingidos. Assim, durante
os 60 anos do reinado dos Felipes, os cargos de vereadores e procuradores
continuaram sendo eletivos, condição que, no Brasil, alcançava também
aos juízes ordinários, ainda não substituídos pelos juízes de fora.
Mesmo depois da Restauração, os Braganças,
preocupados, principalmente, em consolidar o trono recém-recuperado, não
estavam interessados em gerar conflitos desnecessários. Assim, os municípios
brasileiros permaneceram intocados até o final do século. Só em 1696,
já definitivamente consolidado o domínio português, foi empossado, em
Salvador, o primeiro juiz de fora, iniciando uma etapa de transição que
iria durar mais de cem anos. Ainda no início do século XIX, numerosos
municípios de menor importância continuavam elegendo seus juízes ordinários
conforme o rito tradicional.
Quais foram as conseqüências dessa demora
nos destinos da colônia? É indiscutível que juízes de carreira, profissionalmente
capacitados e fortemente avalizados como representantes da Coroa, teriam
imposto um pouco de ordem na administração, evitando-se a anarquia que,
principalmente nas capitanias do Sul, caracterizou boa parte dos dois
primeiros séculos da dominação portuguesa. No entanto, é também evidente
que as altivas populações sulinas - responsáveis pelas mais ousadas experiências
de auto-gestão, pelas incursões à procura dos índios, do ouro, os diamantes
e as esmeraldas, e, enfim, pela consolidação e expansão do território
brasileiro - dificilmente poderiam ter-se desenvolvido sob a autoridade
dos juízes de fora.
Outro magistrado provido pela Coroa - achado
apenas nos municípios maiores - era o juiz dos órfãos, incumbido
de proteger os direitos dos menores de 25 anos nos processos de herança
e de fiscalizar a ação de tutores e curadores. Estava obrigado a levar
um registro dos órfãos existentes no seu termo, encomendando-os a famílias
que pudessem criá-los, e proporcionando-lhes uma ajuda de custo. Não achando
famílias interessadas, ele mesmo deveria zelar pelo seu alojamento, alimentação,
vestuário e alfabetização.
Conforme as Ordenações, apenas
os municípios com mais de 400 habitantes estavam autorizados a prover
o cargo - originalmente autônomo e eletivo - de juiz dos órfãos. A ressalva
para os municípios menores onde "houver costume e posse antiga de haver
juiz dos órfãos" reconhecia situações já existentes na península mas
não podia aplicar-se aos municípios brasileiros, constituídos com posterioridade.
Assim, durante os dois primeiros séculos da ocupação portuguesa, os juízes
ordinários acumularam essa função. O primeiro juiz dos órfãos - provido
pela Coroa por um período de três anos - foi empossado em Salvador, por
alvará real de 2 de maio de 1731. Mesmo assim, os juízes ordinários e
de fora continuariam, por muito tempo, a despachar esses assuntos nos
municípios de menor porte.
Os Procuradores e as Cortes do Reino
Quase tão importante, na hierarquia municipal,
como os juízes e vereadores, o procurador do concelho era o advogado
do município, também eleito por pelouros. Representava os interesses
da comunidade, não apenas em causas movidas dentro do seu território como
também, freqüentemente, deslocando-se até outros municípios para propiciar
decisões conjuntas ou até os centros do poder para clamar por justiça.
Em Portugal, os procuradores representavam as câmaras nas Cortes do
Reino, razão pela que eram chamados de "procuradores do povo".
As Cortes, sucessoras das Curias
ou Concílios medievais, eram parlamentos, constituídos transitoriamente,
para tomar conhecimento das situações regionais, administrar crises ou
abonar decisões que precisassem de sustentação popular. O caráter primordialmente
religioso que caracterizara os concílios, tinha evoluído para assembléias
essencialmente políticas, convocadas pela Coroa, que incorporavam representantes
da nobreza e, posteriormente, dos setores populares, classes que, a partir
do século XIII, passariam a ser conhecidas como "os três Estados do
Reino". Essas assembléias tinham, primordialmente, caráter consultivo,
podendo ser comparadas a audiências coletivas, em que o Rei recebia solicitações
e requeria opiniões e posicionamentos sem perder o seu direito de decidir
conforme a sua própria vontade. No entanto, não era raro as Cortes assumirem
caráter deliberativo e até mesmo resolutivo, embora as decisões finais
devessem ser sempre referendadas pela confirmação régia.
Apesar do centralismo monárquico, as Cortes
chegaram a ter tanta importância que - por exemplo - a população resistia
ao pagamento de impostos que não fossem por elas aprovados, chegando,
às vezes, a interpor embargos e obter a sua anulação. D. Pedro I revogou,
em 1361, a proibição, que ele mesmo impusera, de matar os veados que estragavam
as vinhas e lavouras. Os procuradores alegaram que se um homem podia ser
executado pelo delitos que cometesse, não havia razão para que os veados
ficassem impunes. Existia, por outra parte, o costume de os novos reis
jurarem diante das cortes o respeito aos costumes e forais e receberem
delas o preito de fidelidade, sendo este mútuo juramento, seguido de aclamação,
o complemento político indispensável da coroação.
As Cortes constituíam-se, assim, no único
foro em que os setores populares podiam expor diretamente as suas necessidades,
e não surpreende que eles fossem os mais interessados em dar-lhes periodicidade.
Em 1371, os procuradores pediram que as Cortes fossem pontualmente reunidas
a cada três anos, mas D. Fernando limitou-se a responder que procederia
como fosse conveniente ao seu serviço e ao bem do país. Já em Coimbra,
em 1385, D. João, mais ligado à sua base popular, comprometeu-se a reunir
Cortes anualmente, salvo quando houvesse tais impedimentos que a reunião
fosse de todo impossível. De fato, os três primeiros monarcas da dinastia
de Avis foram os que com maior freqüência as convocaram, perdendo-se novamente
essa freqüência nos reinados posteriores.
Apesar das esperanças das classes populares
- muitas vezes, justificadas - a história de Portugal mostra que as Cortes
eram convocadas não para bem dos povos mas quando a Coroa precisava da
sua ajuda. Elas confirmavam e davam estabilidade aos soberanos, ajudavam
a coordenar esforços de guerra, viabilizavam novos impostos etc. Escasseavam,
pelo contrário, nas épocas de riqueza e estabilidade. Durante o longo
período em que o ouro brasileiro sustentou a política da Coroa, as Cortes,
praticamente, inexistiram.
Ao serem as Cortes convocadas, as câmaras
deliberavam sobre os problemas da comunidade e elaboravam propostas e
posicionamentos, que recebiam o nome de agravamentos, artigos
ou capítulos, sendo os procuradores incumbidos de apresentá-los
e defendê-los. Inicialmente orais, os capítulos passaram, a partir das
Cortes de Lisboa de 1439, a serem feitos por escrito, assinados pelos
"homens bons" do termo, numa tentativa de evitar que os procuradores distorcessem
o mandato recebido.
Também os nobres e eclesiásticos podiam ser
representados por procuradores mas, ao contrário dos "procuradores
do povo", essa representação era individual, recebendo cada mandatário
uma procuração da pessoa que deveria representar. Essa prática parece
ter sido bastante comum, o que indica que nem sempre os nobres e o clero
se interessavam em participar pessoalmente dessas assembléias. Nas Cortes
de Lisboa de 1455, diversas pessoas da nobreza, dois arcebispos e a quase
totalidade dos bispos fizeram-se representar por procuradores. Provavelmente,
esse aparente desinteresse derive da maior possibilidade que essas classes
tinham de requerer diretamente ao rei.
Nem todos os municípios podiam participar
das cortes. Esse direito era concedido por privilégio especial, e há casos
de ter sido retirado, talvez em represália contra ações consideradas lesivas
aos interesses da Coroa ou por ter o município perdido a sua anterior
importância. Alpedrinha, por exemplo, que recebera esse direito em 1202,
requereu, em 1641, o direito de retomar o seu antigo lugar nas cortes,
o que foi indeferido. Oviedo, a capital do antigo reino das Astúrias,
tendo perdido seu lugar em cortes, só veio a recuperá-lo no final do século
XV. As câmaras não autorizadas a participar enviavam, às vezes, os seus
requerimentos pelos procuradores de outras cidades.
Em 1480, só dezessete municípios portugueses
participavam das cortes. Embora o número pudesse, potencialmente, dar-lhes
maior poder de pressão frente à nobreza e ao clero, parece que os próprios
municípios procuravam - talvez com o intuito egoísta de conservar-se superiores
- evitar que outras cidades adquirissem o mesmo direito. Há sinais disso
na Espanha, nas Cortes de Valladolid, em 1506, e nas de Burgos, em 1512,
em que os procuradores se opõem a que esse direito se estenda a outras
terras. Apesar disso, o crescimento natural e as graças concedidas faziam
com que esse número aumentasse. Em 1642, tendo D. João IV agraciado diversas
cidades com esse privilégio, noventa e seis comunidades portuguesas tinham
direito à representação.
Logicamente, a reduzida força política e a
distância em que se encontravam os nascentes municípios brasileiros, seriam
sérios empecilhos ao exercício dessa função dos procuradores. Existem,
no entanto, diversas referências à presença de procuradores brasileiros
nas Cortes, incluindo a de Francisco da Costa Barros, do Rio de Janeiro,
nas Cortes de 1641, e a de Manoel Guedes Aranha, do Maranhão, nas de 1685.
Em compensação, era freqüente o deslocamento de procuradores para advogar
diante dos governadores e relações de Salvador e Rio de Janeiro. Era também
usual as câmaras enviarem seus procuradores aos municípios vizinhos ou
convocá-los para enviar os seus, sempre que devessem ser tomadas decisões
importantes, de caráter regional.
É interessante verificar que, mais que um
advogado da câmara, o procurador era o advogado da comunidade, podendo
interpelar os próprios vereadores para requerer a construção e reparação
das ruas, pontes, chafarizes e outros bens públicos, remediar os efeitos
de incêndios, guerras e outras circunstâncias nefastas etc. Em municípios
menores, acumulava, também, a função de tesoureiro do concelho.
Pelouros e Pelourinhos
Enquanto os almotacés, alcaides e outros funcionários
menores eram, simplesmente, escolhidos pelas câmaras, a eleição de juízes
ordinários, vereadores e procuradores, atribuição exclusiva dos concelhos,
era rodeada de um ritual rigoroso.
Integravam o concelho os "homens bons"
da localidade, entendendo-se por tais os adultos livres do sexo masculino,
incluídos os nobres e fidalgos, os proprietários, os militares e o clero,
enquanto não tivessem - na linguagem da época - "marca de nação infecta",
ou seja, mouros, judeus ou seus descendentes. Servos, escravos, peões
e empregados eram considerados "malados", ou seja, classes inferiores,
não aptas para tomar parte na condução da comunidade. Entre essas duas
faixas, características do mundo medieval, existia, como classe em ascensão,
a dos "oficiais mecânicos" (marceneiros, serralheiros, pedreiros
etc.), não equiparáveis aos "homens bons" por carecerem de propriedades,
títulos e privilégios, mas superiores aos servos e escravos por serem
trabalhadores autônomos, donos das suas oficinas. A sua posição nos concelhos
não era constante, ora integrando-se com voz e voto, e até obtendo representação
nas câmaras, ora apenas constituindo delegados para a defesa dos interesses
setoriais, ora completamente excluídos da condução municipal.
O concelho ou reunião dos "homens
bons" não era um órgão regularmente constituído. À semelhança do "Cabildo
Abierto" espanhol, reunia-se apenas em circunstâncias de especial
transcendência. Uma dessas circunstâncias era, a cada três anos, a escolha
dos novos representantes que deveriam governar o município. Reunido o
concelho, sob a coordenação dos atuais juízes e vereadores, eram escolhidos
seis eleitores, por votação escrita e secreta, que era apurada
publicamente. Depois de juramentados, esses eleitores eram distribuídos
em três duplas, devendo cada uma delas apresentar uma lista com candidatos
para todos os cargos.
As três listas, elaboradas independentemente
e sem conhecimento umas das outras, eram assinadas por seus autores. Sendo
algum deles analfabeto, um juiz ou vereador assinava no seu lugar, fazendo
juramento de silêncio sobre o conteúdo da lista. Depois, o juiz copiava
os nomes para uma relação - chamada de "pauta" - verificando que
não houvessem parentes (até o quarto grau) propostos para ocuparem cargos
no mesmo período. Essa operação era conhecida como "apurar as pautas".
Os nomes eram colocados em bolas de cera,
chamadas de "pelouros" por sua semelhança com os projéteis desse
nome. Pauta e pelouros eram colocados num saco de couro,
com compartimentos especiais para cada um dos cargos, e guardados numa
arca ou cofre com três fechaduras. As chaves eram distribuídas entre os
vereadores, para que nenhum deles pudesse, individualmente, alterar o
conteúdo dos pelouros. Quem confiasse a sua chave a outra pessoa era passível
de multa de 4 mil-réis e degredo do termo, pelo prazo de um ano.
Terminado o mandato da mesa atual - normalmente,
nos últimos dias do ano em curso ou nos primeiros do seguinte - a população
se reunia em torno do pelourinho, cujo nome deriva, provavelmente,
desse ritual cívico. Ali, os nomes contidos nos pelouros eram extraídos
por um menino menor de sete anos, condição determinada nas Ordenações
para garantir a completa isenção. Dentre os três candidatos propostos
era, assim, sorteado um nome para ocupar cada cargo.
Embora os mandatos fossem anuais, a eleição
e formação dos pelouros era feita a cada três anos, o que minimizava a
necessidade da presença freqüente dos "homens bons", muitos dos
quais eram proprietários rurais residentes em lugares afastados. Guardados
os pelouros em segurança, bastaria, durante o rito de abertura e proclamação
dos eleitos, a presença da população urbana para garantir a lisura do
ato.
Embora eficaz para evitar as fraudes, esse
rito era demasiado complexo para ser utilizado toda vez que uma vaga acidental
precisasse ser preenchida. Quando um membro da câmara morria ou, por qualquer
outro motivo, ficava impossibilitado de concluir o seu mandato, o substituto
era escolhido em vereação, por simples maioria de votos, recolhidos, à
maneira de urna, num barrete. Daí esses mandatários serem chamados - um
pouco despicientemente - de juízes ou vereadores "de barrete",
o que os diferenciava dos "de pelouro" que, por terem sido formalmente
eleitos, possuíam maior representatividade. O mesmo rito simplificado
era utilizado para escolher os alcaides, almotacés e outros funcionários
menores.
A Casa e a Praça
Conforme os costumes da época, que atendendo,
provavelmente, a considerações de ventilação, sossego e acessibilidade,
consideravam "nobre" o primeiro andar acima do térreo, as câmaras,
sempre que possível, ocupavam casas de, no mínimo, dois andares, sendo
o superior ocupado pelas autoridades municipais e o térreo pela cadeia.
Dependendo das necessidades e da disponibilidade de espaço, outros serviços
partilhavam, ainda, do mesmo prédio, gerando, às vezes, situações bastante
incômodas. Em Salvador, durante muito tempo, parte do andar térreo foi
ocupado pelo açougue municipal, sendo as vísceras jogadas ladeira abaixo,
até a vala que, por essa razão, passou a ser conhecida como "Rio das
Tripas". Também não era raro instalarem-se serviços não municipais.
Parte da cadeia de Salvador, por exemplo, estava reservada para uso da
Relação, que não contava com uma área própria para alojar os presos.
Acima do andar nobre era comum existir uma
torre-campanário, sendo a câmara, as igrejas conventuais e as matrizes
de freguesia os únicos edifícios autorizados a possuir esse aditamento.
Assim, o sino da câmara era quase um símbolo do seu poder. Tocava, apenas,
"nas funcções publicas do Senado, como seja para os pelouros e quando
ha padecente de justiça"32. Sendo, essencialmente, um meio
de alarme e convocatória, é provável que fosse utilizado, também, para
advertir à população da ocorrência de agressões armadas e outras calamidades.
Consta ter existido em Salvador um elemento
expressivo, além de pitoresco, que talvez fosse usual em sedes municipais
da época: Era um cata-vento, fundido em ferro, a exemplo do que ainda
coroa a torre do convento de Santa Clara do Desterro, em Salvador. Representava
uma figura masculina, apelidada de "o ginga da cadeia", segurando
"um feixe de varas [...] e de permeio um machado". Era um
antigo símbolo de autoridade, originário do direito romano: As varas eram
utilizadas para punir delitos leves; o machado, para as ofensas mais graves.
Os dois juntos, representavam o poder da Justiça para coagir os indivíduos
ao cumprimento das leis. Os mesmos elementos integraram, no início do
período republicano, o selo do Tribunal de Apelação e Revista e, atualmente,
fazem parte do brasão de armas do Tribunal de Justiça da Bahia.
Ainda mais importante - não apenas como símbolo
da autoridade municipal mas, também, do poder régio que dominava e protegia
o município - era o pelourinho, invariavelmente colocado em frente da
Câmara, no centro da praça principal.
O pelourinho era o centro da vida urbana.
Junto a ele abriam-se os pelouros e eram lidas as proclamas. Amarrados
a ele eram punidos os delinqüentes e até as execuções capitais eram, não
raro, executadas nas suas proximidades. A sua ereção era o principal rito
na criação de uma vila. Só o fato de um vilarejo erguer pelourinho representava
a sua elevação à categoria de vila e a conseqüente constituição
do poder municipal. Não faltam exemplos de movimentos espontâneos, principiando
com a construção do pelourinho como um meio de forçar a decisão da Coroa.
De fato, o ato era ilegal e constituía um desafio à autoridade real, mas
não era raro o reconhecimento forçado de situações de fato. Às vezes,
a Coroa avaliava a necessidade, os recursos, a força dos litigantes, e
acabava confirmando a mudança. Assim começaram, por exemplo, os municípios
de Campos e Parati.
Muito simples, no ato da fundação, a Casa
da Câmara de Salvador passou por sucessivas reformas e ampliações. Carlos
Ott, que pesquisou a sua história, indica que a primeira casa não passava
de "uma tosca armação de formato redondo, feita em madeira, tendo as
paredes revestidas com folhas de palmas, tiradas do uricuzeiro, sendo
a parte superior coberta com material semelhante". O mesmo autor acrescenta
que "deixava atravessar os aguaceiros mais fortes, recebendo luz somente
por umas janelinhas e tendo o chão de barro batido". Ao que parece,
essa cabana foi construida pelos índios, que receberam em pagamento "foices,
anzois, tesouras, facas, enxadas, espelhos, etc." Foi denominada "Casa
de Audiência e Câmara", o que indica que não servia como cadeia mas
já era utilizada para os julgamentos.
Já a segunda sede, construida dois anos depois,
foi claramente denominada "Casa da Cadeia e Câmara". Constava de
"uma sala, com uma dependência; a primeira, melhor rebocada, tinha
dimensões de 28,5 braças, em quadrado, servindo para as reuniões dos vereadores;
a segunda, com 11 braças, em quadrado, destinada a cadeia". Em medidas
atuais, Ott calcula o tamanho da Sala da Vereação em 62,7 m² e o da cadeia
em 24,2 m². Acrescenta que esse prédio, construído de taipa com teto de
telhas, "não tinha a menor segurança, porquanto as paredes de taipa
e mesmo de tijolos, são muito frágeis", o que levaria logo a refazer
a cadeia "com paredes de 30 cm de largura, feitas com pedra bruta".
O prédio atual foi iniciado em 1660 por Francisco
Barreto de Menezes, que mandou desapropriar várias casas vizinhas para
construir "duas salas, uma para a Casa do Tribunal da mesma Câmara,
a outra para a audiência dos Juízes e, por baixo, os açougues e as cadeias".
Parece, realmente, que o governador limitou-se a construir essas duas
grandes salas, deixando por conta dos vereadores a construção da torre,
a divisão interna e o acabamento, obras que se prolongariam até o final
do século XVII. Com pequenas reformas, esse prédio chegaria ao século
XIX, sendo descrito desta maneira:
"Dos edifícios publicos são as cazas do
Senado da Camara hum dos mais notaveis; são estas verdadeiramente nobres,
tem treze janellas de frente para a Praça do Pallacio, com gradaria de
ferro, correspondendo cada huma a seu marco de pedra, no centro dos quaes
fica a nobre porta da entrada, sobre que se eleva huma Torre, que sobrepuja
o edificio, e onde está o insignificante sino da Camara, tão insignificante
que com nenhuma das outras grandezas concorda. No lado do Norte fica a
soberba salla do Senado, a que por baixo corresponde a cadea para mulheres,
e os assougues. No lado do Sul está outra salla, onde vão dar Audiência
os três juizes de Fora do Civil, Crime e Orphãos, como também os almotacés.
Fica mais a morada do carcereiro, salla livre, dez segredos e mais prizoes,
e por baixo ficam as fortes enxovias mandadas reformar, ou para melhor
fazer de novo no anno de 1796 pelo nosso memoravel Governador e Capitão
General o Illmo. e Exmo. D. Fernando Jose de Portugal; no centro pois
deste edificio ha tambem uma enfermaria com seu oratorio, mandados fazer
de novo pelo mesmo Exmo. Governador".
Prerrogativas e Conflitos
Apesar da distância que as separava de Lisboa
- ou, melhor, precisamente por causa disso - as câmaras brasileiras desfrutaram
de um poder considerável. Sem o consentimento das autoridades designadas
pela Coroa - ou, pelo menos, com antecedência - criavam vilas, estabeleciam
entrepostos, iniciavam a guerra e consertavam a paz com os índios. Não
era raro que escrevessem ao rei ou ao Conselho Ultramarino apresentando
queixas sobre ouvidores, capitães, membros da Relação e até governadores.
Chegavam, às vezes, a destituí-los pela força. Longe de condenar a insubordinação
implícita nessas ações, a Coroa estudava as reclamações e, com freqüência,
as atendia. Fora a razão de justiça que, em certos casos, assistia aos
requerimentos, subjazia nessa atitude a permanente estratégia de estimular
a concorrência e a desconfiança mútua entre as autoridades coloniais,
conforme o preceito que reza: "dividir é reinar".
A câmara de Salvador teve um papel preponderante
nas discussões que, em 1626, conduziram à supressão das atividades da
Relação da Bahia. Restaurado o tribunal - a pedido, entre outros, da própria
câmara - não demoraram a surgir novas acusações, envolvendo principalmente
os desembargadores brasileiros. Inclinado o Conselho Ultramarino a evitar
a repetição desses problemas excluindo os magistrados nativos das futuras
nomeações, várias câmaras - entre elas a de Salvador - saíram na sua defesa,
pedindo para "reparar hum damno tão afrontozo para os Filhos do Brazil",
o que, no entanto, não foi impedimento para que os conflitos continuassem.
De fato, não era estranho surgirem conflitos
entre as câmaras e a Relação, muito especialmente em Salvador e seu termo,
onde as jurisdições de ambos os órgãos eram concorrentes. Com efeito,
além do seu caráter revisional, o tribunal baiano exercia, também, jurisdição
de primeira instância nas áreas vizinhas à sua sede, e não devia ser fácil
estabelecer um limite com os juízes ordinários, principalmente ao considerarmos
que aplicavam leis distintas. Enquanto os desembargadores - mormente portugueses
peninsulares e letrados, com formação universitária - aplicavam, preferencialmente,
o direito romano e as Ordenações, os juízes baseavam seu
trabalho nos forais e no direito consuetudinário. A Câmara achava a Relação
autoritária, corrupta e corporativa, chegando, em diversas oportunidades,
a solicitar a sua supressão. Os desembargadores consideravam os juízes
ordinários ignorantes e venais, e advogavam para que a Coroa os substituísse
por magistrados de carreira.
De fato, essa substituição era de evidente
interesse da Coroa. Os juízes de fora ajudavam a centralizar o poder de
decisão, eliminando os perigosos focos de liberdade e democracia que as
câmaras representavam. No entanto, a recém-restaurada monarquia portuguesa
não se sentia forte o suficiente para avassalar as instituições dos brasileiros
que, praticamente sem ajuda da península, acabavam de recuperar dos holandeses
as capitanias do Nordeste e boa parte das possessões portuguesas na África.
Mesmo considerando-se todos portugueses, flutuava no ar um certo brasileirismo
que seria perigoso ferir. Assim, a Coroa demoraria, ainda, algum tempo
para atender às sugestões da Relação.
Centralismo e Perda da Autonomia Municipal
A situação mudou consideravelmente no final
do século XVII. Perdidas as possessões orientais, o Brasil tornou-se o
centro de gravitação do império português, passando a sua administração
a ser prioritária para a Coroa. Pacificado o território, estabilizada
a economia e, principalmente, descobertas as primeiras minas de ouro,
impunha-se a necessidade de aperfeiçoar o controle sobre o governo da
valiosa colônia.
Afastadas, por outra parte, as inseguranças
da guerra holandesa e consolidadas as finanças do reino pela estabilização
da economia e pela crescente injeção do ouro americano, a Coroa não mais
dependia de acordos e concessões para impor a sua vontade. O poder autônomo
dos concelhos, que tanto ajudara D. Afonso Henriques, D. João I e D. João
IV a superar crises e obstáculos nos seus reinados, não tinha maior interesse
para seu sucessores, que já evoluíam para o absolutismo oitocentista.
O maior golpe contra a autonomia municipal
foi desferido em 1696. A Relação, através da sua Mesa do Desembargo do
Paço, deveria "alimpar as pautas" nas eleições de juízes e vereadores
para a Cidade do Salvador. Essa incumbência foi estendida, posteriormente,
a todas as cidades onde houvesse juiz de fora. A limpeza de pautas era
prerrogativa exclusiva dos concelhos e, como já foi indicado, tinha por
finalidade evitar que pessoas incompatíveis com a função ou parentes próximos
se candidatassem a cargos eletivos no mesmo período. A apuração das pautas
pela Relação era uma intromissão nos assuntos do concelho e nas atribuições
tradicionalmente concedidas aos juízes ordinários.
Por outra parte, processava-se nas câmaras
uma crescente substituição dos cidadãos nativos por portugueses peninsulares,
quebrando não apenas usos tradicionais como também algumas leis escritas.
A exigência da naturalidade, cara aos municípios portugueses, formados
por famílias de longo tempo estabelecidas no mesmo lugar, tinha sido explicitada
também para os americanos em diversas oportunidades, mas vinha sendo paulatinamente
substituída pelo critério da moradia, considerando-se vizinhos e cidadãos
do termo àqueles que nele residissem.
Em princípio, pelo menos no momento da formação
das novas cidades e vilas, o caráter recente do povoamento tornava impossível
o cumprimento dessa exigência, posto que todos os vizinhos, exceto os
índios, eram inicialmente forasteiros. Mesmo em períodos posteriores,
a mobilidade da população, boa parte da qual se deslocava com freqüência
por interesses econômicos ou contingências bélicas, tornava difícil a
eleição exclusiva de cidadãos nativos.
Esse quadro começou a mudar na segunda metade
do século XVII. Concluída a guerra com os holandeses, e entrando a economia
num período mais estável, a população passou a criar raízes e os interesses
econômicos se tornaram mais diferenciados. Os agricultores e pecuaristas,
na maioria nascidos no Brasil, defendiam o progresso das suas fazendas
e engenhos e rejeitavam a carga fiscal imposta pela Coroa. Os mineradores,
descobridores e exploradores iniciais das jazidas de minerais preciosos,
viam sua conquista invadida por uma multidão de "reinóis", pejorativamente
apelidados de "emboabas".
Não surpreende, então, que as câmaras, única
instituição na época com formação eletiva e caráter representativo, se
transformassem em centros da resistência nativista. Os "homens bons"
que as constituíam eram, precisamente, os proprietários de terras, senhores
de engenho, criadores de gado etc., setores cujos interesses, cada vez
mais, conflitavam com o monopólio do comércio e com a excessiva tributação,
próprias da situação colonial.
Embora a medida tomada em 1693 tivesse como
pretexto ou motivação explícita a pouca confiabilidade dos juízes ordinários,
não é difícil que tenham pesado na decisão outras considerações que visassem
o controle da situação acima exposta. A venalidade dos juízes podia ser
controlada por outros canais. Qualquer cidadão podia impugnar uma eleição
por via de embargos ou agravo e, embora os juízes e vereadores gozassem
de privilégios especiais - tais como o de não poderem ser presos ou processados
sem ordem régia ou de tribunal competente - a Relação podia acolher à
impugnação e até mesmo anular a eleição, se fosse constatado vício no
ato ou incapacidade do candidato eleito.
A atribuição de "alimpar as pautas"
parece redundante com essa capacidade revisional, e só pode ter como motivação
o exercício de uma censura prévia sobre os nomes a serem eleitos. Mesmo
que isso não derivasse necessariamente na eleição maioritária de cidadãos
portugueses, o fato de a Relação ser um tribunal régio e estar constituído
quase exclusivamente por peninsulares poderia garantir que os candidatos
aprovados fossem, pelo menos, aceitáveis para a Coroa. Tempo chegaria,
já entrado o século XVIII, em que instruções explícitas obrigassem - principalmente
nas áreas de mineração, onde o conflito entre brasileiros e "emboabas"
era mais constante - a escolher igual número de portugueses brasileiros
e peninsulares.
Enfraquecida a representação local por este
meio, um novo golpe, igualmente insidioso, veio logo garantir o pleno
domínio da Coroa. Com o pretexto de que a cidade do Salvador não podia,
sendo a cabeça da colônia e a cidade mais importante do Brasil, ser administrada
como outra qualquer vila ou cidade de menor categoria, no mesmo ano de
1696 os juízes ordinários foram substituídos por juízes de fora.
Verdadeiramente, essa era uma prerrogativa
restrita às cidades mais importantes, ao ponto que uma lei de 1618 estabeleceu
que, onde houvesse juiz de fora, somente pessoas nobres pudessem exercer
os cargos de vereadores e almotacés. Essa honraria não consegue, entretanto,
esconder que o juiz de fora - funcionário não eleito, designado pela Coroa
e, à semelhança dos desembargadores, geralmente português peninsular e
proibido de estabelecer qualquer vínculo pessoal com seus jurisdicionados
- retirava dos moradores qualquer possibilidade de controlar as decisões
da Câmara.
Criado o primeiro cargo em Salvador, outras
cidades - particularmente aquelas onde os interesses da Coroa eram mais
volumosos - sofreram a mesma intervenção. Assim aconteceu, em 1703, em
Olinda e Rio de Janeiro e, pouco a pouco, a instituição foi-se espalhando
pelos principais centros do Brasil. Quanto à Câmara de Salvador, a partir
de 1696 acabaram os conflitos com o governador e a Relação. Sujeitos à
escolha dos desembargadores, os vereadores passaram a caracterizar-se
pela sua docilidade. Promediando o século XVIII, e chegado o ponto máximo
do absolutismo, com as reformas do marquês de Pombal, o poder municipal
tinha decaído tanto que os vereadores eram acusados de aprovar sem crítica
qualquer medida que lhes fosse requisitada pelos prepostos da Coroa, especialmente
se viesse apoiada pelo ouvidor, pessoa influente junto à Relação e reputadamente
capaz de indicá-los para um novo mandato.
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