Leitura da sentença contra Tiradentes.
(Óleo de Eduardo Sá) |
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Memória
da Justiça Brasileira - 2 |
Capítulo 8
A Inconfidência
e Seus Juízes
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"Lesa-majestade quer dizer traição commettida
contra a pessoa do Rei, ou seu Real Stado, que he tão grave e abominável
crime, e que os antigos Sabedores tanto estranhárão, que o comparávão
á lepra; porque assi como esta enfermidade enche todo o corpo, sem nunca
mais se poder curar, e empece ainda aos descendentes de quem a tem, e
aos que com elle conversão, polo que he apartado da communicação da gente:
assi o erro da traição condena o que a commette, e empece e infama os
que de sua linha descendem, posto que não tenham culpa".
Assim definido nas Ordenações Filipinas,
o crime de lesa- majestade abrangia uma ampla gama de situações, classificadas
em "capítulos da primeira e da segunda cabeça". Entre os da primeira
cabeça contavam-se a traição, a insurreição, a autoria ou cumplicidade
em atentados contra o rei, contra sua família ou contra qualquer pessoa
que estivesse em sua companhia ou, mesmo, a destruição de imagens do soberano,
armas ou símbolos representativos do reino ou da casa real. Qualquer desses
crimes deveria ser punido com a pena de "morte natural cruelmente",
ou seja, execução pública por meio de torturas. Todos os bens dos justiçados
passariam para a Coroa e duas gerações de descendentes ficariam "infamados
para sempre, de maneira que nunca possam haver honra de cavalaria, nem
de outra dignidade, nem Officio; nem possam herdar a parente, nem a estranho
abintestado, nem per testamento, em que fiquem herdeiros, nem poderão
haver cousa alguma, que lhes seja dada, ou deixada, assi entre vivos,
como em ultima vontade, salvo sendo primeiro restituidos á sua primeira
fama e stado".
Quanto aos capítulos da segunda cabeça, estavam
inclusos a liberação pela força de presos já sentenciados, réus confessos
ou prisioneiros de guerra, a agressão, ferimento ou morte desses presos,
considerando que se encontravam sob a custódia da Coroa, a negativa de
oficiais e magistrados em cederem os seus cargos e prestarem obediência
aos seus sucessores nomeados pelo rei etc. Nesses crimes, relativamente
menores, a lesão à autoridade real era considerada como uma agravante,
acrescentando às punições normais a desapropriação dos bens dos condenados.
Outra característica específica dos crimes
de lesa-majestade era ocasionar a perda das garantias que limitavam a
ação da Justiça. As Ordenações indicavam que "não gozará o accusado
de privilegio algum para não dever ser mettido a tormento, nem haver pena
vil, porque de todo he privado. E para ser mettido a tormento, bastarão
menores indicios, que onde taes qualidades não concorrerem. E as pessoas,
que em outros casos não poderião ser testemunhas, nestes o poderão ser
e valerão seus ditos". Mesmo assim, a disposição alertava que "se
a testemunha for inimigo capital do accusado, ou amigo special do accusador,
seu testemunho não será muito crido, mas sua fé deve ser mingoada, segundo
a qualidade do odio, ou amizade".
Inconfidentes, ao Tempo da Restauração
Parece evidente que, para matéria de tal relevância,
e, sobretudo, tão abrangente - não se limitava às potencialmente escassas
agressões à pessoa do rei, mas incluía uma grande variedade de situações
que, direta ou indiretamente, lesavam seus direitos - devia existir uma
instância judicial específica, mas não há indício dela nas Ordenações.
O primeiro magistrado com jurisdição exclusiva em crimes de lesa-majestade
parece ter sido "o Dr. Pedro Fernandes Monteiro, do Conselho de El-Rei
e Desembargador do Paço, presidente ou cabeça da Junta da Inconfidência".
Entendia-se por inconfidência a quebra da
fidelidade devida ao rei, envolvendo, principalmente, os crimes de traição
e conspiração contra a Coroa. O registro explícito é feito em 1662, já
no reinado de Afonso VI, mas há referências à atividade de Fernandes Monteiro,
desde o tempo de D João IV. Em 1646, o governador do Alentejo remetia
à Coroa alguns papéis, potencialmente sediciosos, "com ordem de se
apresentarem ao Doutor Pero Fernandes Monteyro". Mas a incumbência
não era ainda explícita, como o confirma o próprio D. João IV ao referir-se
ao magistrado como "o doutor Pedro Fernandes Monteiro, do conselho
da minha fazenda".
Não se conhece lei ou regimento instituindo
esses tribunais especiais, razão pela qual se faz difícil ter idéia certa
da sua estrutura. O nome "junta" permite supor que não se tratasse
de um tribunal estável, mas de uma reunião ad hoc de autoridades
que, habitualmente, desenvolviam outras funções. Assim aconteceu, em diversos
lugares, com as chamadas "juntas de justiça" - constituídas por
governadores, ouvidores e outras autoridades das capitanias - e as "juntas
do Desembargo do Paço" - integradas por desembargadores das Relações
que, coletivamente, podiam julgar alguns recursos de competência privativa
daquela Corte. A ambígua indicação de Sousa de Macedo - "presidente
ou cabeça da Junta" - deixa transparecer que o próprio Fernandes Monteiro
não tinha um cargo explicitamente determinado, assumindo essa função apenas
como extensão das suas incumbências no Desembargo do Paço. Por outra parte,
a responsabilidade do magistrado não parece ter-se limitado à atividade
judicante. Diversos registros deixam entrever que ele encabeçava uma sorte
de polícia secreta, encarregada de controlar, preventivamente, a travessia
das fronteiras e as movimentações suspeitas no interior do país.
O denso mistério que envolve essa instituição
pode explicar-se pelo sigilo que o assunto exigia. "A necessidade publica
- explica a Deducção Chronologica e Analytica - faz preciso
hum melindroso segredo de Estado a respeito de muitos dos factos que ordinariamente
se contém nos Processos de inconfidência", acrescentando que , em
razão desses cuidados, não passavam de dois ou três "os ministros pelos
quais os Senhores Reys mandam julgar semelhantes processos".
O grande poder e a quase clandestinidade de
Fernandes Monteiro justificam-se amplamente pelas condições políticas
do momento. Fora a diversificada frente externa, que Portugal herdara
da dominação espanhola, setores poderosos da nobreza e grande parte do
clero se opunham à Restauração. Poucos meses após a coroação de D. João
IV, a primeira conspiração foi descoberta. Entre os líderes, destacavam
Pedro de Baeza - opulento mercador e tesoureiro da Alfândega -, o Bispo
de Martíria, o Arcebispo de Braga e até mesmo o Inquisidor Geral, D. Francisco
de Castro. Contra réus tão ilustres deveriam ser usadas muita tolerância
e bastante diplomacia. O castigo exemplar caiu sobre os conjurados de
menor importância. Para os principais, a pena limitou-se à prisão e, menos
de dois anos depois, D. Francisco de Castro era solto e reintegrado ao
seu cargo de inquisidor.
Isso explica as especiais características
da atuação do magistrado, que se apresentam mais próximas às de uma polícia
secreta. Contra os hábitos da época, que pretendiam evitar os delitos
mediante a exibição de penas aterrorizantes, o juiz da Inconfidência privilegiava
o policiamento preventivo e procurava antecipar-se aos fatos, impedindo
que assumissem proporções que ameaçassem à estabilidade da Coroa.
Os conflitos de D. João IV se prolongaram
durante o resto da sua vida. Conforme a crença da época, durante a procissão
organizada para comemorar a sua coroação, o próprio Cristo despregou um
braço da cruz para benzer o novo soberano. Isso não foi óbice para que
boa parte do clero lhe dispensasse sistemática oposição. D. João IV nunca
foi reconhecido pela Santa Sé e, apesar da sua forçada indulgência com
o clero opositor, acabou sendo excomungado post mortem. Assim,
Fernandes Monteiro continuaria a ser uma peça chave na estrutura do poder
real. Substituído por seu filho, Roque Monteiro Paim, o cargo de juiz
da Inconfidência entrou pelo reinado de D. Afonso VI e a regência de D.
Pedro II, durante a qual foi descoberta outra conjuração. Estavam envolvidos
membros das ordens militares, que, protegidos pelo foro eclesiástico,
não podiam ser condenados sem prévia relaxação ao braço secular. Foi feita,
por isso, uma consulta à Mesa da Consciência e Ordens, que se manifestou
contrária à relaxação por ser de exclusiva competência do rei, como Grão-Mestre
das três ordens. Conforme esse parecer, o príncipe regente não era ainda
rei e, portanto, não possuía competência para resolver nessa matéria.
Pombal e os Inconfidentes
A Junta da Inconfidência subsistiu, sem nunca
ter sido explicitamente regulamentada - e sem que tenhamos ciência certa
da sua continuidade, posto que não se conhece registro da sua atividade
durante o reinado de D. João V -, até a segunda metade do século XVIII,
em que um atentado contra a vida de D. José I lhe proporcionou repentina
notoriedade. A agitação - fruto, entre outras razões, da resistência às
reformas orientadas pelo Marquês de Pombal e da oposição dos setores que,
por causa dele, se viam marginalizados do poder - acumulava-se desde algum
tempo atrás. Existiam, como precedentes, o crescente conflito com os jesuítas
e a campanha difamatória contra Pombal, em 1756. O ministro agiu rapidamente
através da Secretaria de Estado. Os conspiradores foram presos, julgados
sumariamente e deportados para Angola.
Um ano depois, no Porto, a concessão à Companhia
Geral da Agricultura dos Vinhos do Alto-Douro do monopólio da venda, na
cidade, e da exportação para o Brasil originou um movimento popular de
proporções. Estimulado pelos taberneiros, um exército de vadios, soldados,
rameiras e escravos assaltou a casa do provedor e forçou o corregedor
- em ausência do chanceler da Relação -, a decretar a abolição da Companhia.
Diante da anormal situação, fixou-se uma alçada, presidida por João Pacheco
Pereira de Vasconcelos, do Desembargo do Paço.
A primeira avaliação foi bastante cética quanto
ao volume do movimento. O fato foi considerado uma simples "assuada"
e teria acabado sem grandes punições se o ministro não resolvesse intervir,
invocando às Ordenações e classificando o crime como
"de lesa-majestade". A uma consulta da Mesa da Consciência
e Ordens, Carvalho respondeu, pessoalmente: "Sua magestade não dá a
esse Tribunal, por Sua Real Piedade, o exemplar castigo, que merece o
execrando delito de se oppôr ás Reaes Leis de Sua Magestade. O mesmo Senhor
Manda, que esta Consulta seja logo queimada, e riscado o Assento da mesma;
e lançado no Livro dos Assentos este Aviso, para que em tempo algum os
Desembargadores deste, ou outro Tribunal commettão tão enorme delicto.
Assim o tenhão entendido e cumpram cegamente, pena de cahirem no Real
desagrado de Sua Magestade".
Foram julgadas 478 pessoas. Trinta e dois
homens e quatro mulheres foram absolvidos. Cinco mulheres e vinte homens
- entre eles o juiz do povo que, doente, fora conduzido em cadeirinha
à cabeça da manifestação - foram condenados à morte. Os restantes sofreram
penas variadas, incluindo açoites, degredo e confisco de bens.
Não parece que, na repressão ao motim do Porto,
tomasse intervenção direta a Junta da Inconfidência. A condição de "lesa-majestade"
só entrou em pauta quando o processo se encontrava já bastante avançado
e, apesar de influenciada pelos setores ligados ao Marquês, a sentença
foi emitida e executada pelas instâncias jurídicas normais. Mas o clima
de intranquilidade era grande, e não demoraria a assumir características
que exigissem o exercício dessa jurisdição especial.
Em 3 de setembro de 1758, o próprio rei, D.
José, foi alvejado a tiros de bacamarte, desferidos, em duas tocaias sucessivas,
sobre a carruagem do seu sargento mor, Pedro Teixeira, na qual se deslocava
ocultamente. As circunstâncias do atentado permaneceram propositalmente
indefinidas, abonando a hipótese segundo a qual o rei estaria voltando
de uma entrevista amorosa com sua amante, D. Teresa, esposa do Marquês
Luis Bernardo de Távora. O fato de a carruagem pertencer ao sargento-mor
permitia imaginar que o atentado estivesse dirigido contra ele, que também
tinha bastantes inimigos na Corte. Quanto à versão oficial, mais cautelosa,
indicava apenas que o rei adoecera durante a noite e precisara ser sangrado.
A ocorrência de um atentado só foi admitida
oficialmente três meses depois, ao dar-se ordem de prisão contra os suspeitos.
O decreto qualificava o delito de "horrorosíssimo insulto" que
ofendia "barbara, e sacrilegamente [...] todos os principios
mais sagrados dos direitos, Divino, Natural, Civil e Patrio". Aos
delatores, se plebeus, oferecia títulos de nobreza; se nobres, "fóros
de Moço Fidalgo, e de Fidalgo Cavalleiro com as competentes moradias".
Aos que já os possuíssem garantia "Titulos de Visconde, ou de Condes
conforme a graduação em que se acharem"; a todos, "outras mercês
uteis, assim pecuniárias, como os Officios de Justiça e Fazenda, e de
bens da Coroa, e Ordens". Advertia, ainda, contra a "falsa apprehensão
de que os Denunciantes são pessoas abjectas", indicando que "este
reparo, que se costuma vulgarmente fazer nas materias que dizem respeito
á fazenda [...] não tem lugar nestes crimes de Conjuração contra
o Principe Supremo" e que aqueles que "sabendo de semelhantes crimes,
os não delatão em tempo opportuno, tem annexas as mesmas penas, e a mesma
infamia, a que são condemnados os Réos destes perneciosissimos delictos".
Mas o decreto era pouco mais do que uma simples
formalidade. Todos os principais envolvidos estavam já identificados e
foram presos de imediato; antes, provavelmente, de tomarem conhecimento
de que eram procurados. Estavam entre eles o Marquês Luis Bernardo; seu
irmão, José Maria; seu pai, Francisco de Assis; e seus cunhados, Jerónimo
de Ataíde e João de Almeida Portugal. A responsabilidade principal foi
atribuída a D. José de Mascarenhas, Duque de Aveiro e Marquês de Gouveia,
que foi também detido, junto com seu filho Martinho. Também foi presa
a mãe de Luis Bernardo, dona Leonor de Távora, chamada "a Marquesa
velha", por contraposição a D. Teresa, "a Marquesa nova". As
outras mulheres da família foram recluídas em conventos, entre elas a
própria D. Teresa de Távora.
Dessa vez, a instrução do processo foi presidida,
desde o começo, pelo Des. Pedro Gonçalves Cordeiro Pereira, "do Meu
Conselho, Desembargador do Paço, Deputado da Mesa da Consciencia, e Ordens,
e Chanceler da Casa da Supplicação, que nella serve de Regedor, e a quem
tenho nomeado Juiz da Inconfidencia", secundado pelos Secretários
de Estado, Sebastião José de Carvalho e Melo, Luis da Cunha e Tomás da
Costa. Em 22 de dezembro, houve sessão plenária na Relação do Porto, onde
se resolveu "que o Senhor Chanceler Governador nomeasse logo hum dos
Corregedores do Crime, para abrir nesta Cidade huma devassa de Inconfidencia
[...] nomeando-se tambem outro Ministro do corpo da Relação, para Escrivão
da devassa". O objetivo aparente era identificar possíveis cúmplices
foragidos que "tiverem entrado á quatro meses a esta parte [...]
tanto nos povos, como nos pórtos de Mar, que comprehendem as duas Provincias
da Beira e Minho; e tambem nos pórtos seccos, que confinão com o Reino
de Castella". Seria levado em conta "qualquer indicio [...]
não despresando qualquer especie de prova [...] ainda de testemunhas
defectuosas, singulares e socios".
A Junta da Inconfidência foi constituída oficialmente
em 4 de janeiro de 1759, sendo presidida por Cordeiro Pereira, que oficiaria
também como relator, e integrada por João Pacheco Pereira de Vasconcelos
- o mesmo que julgara o motim do Porto -, João Marques Bacalhau, Manuel
Ferreira de Lima, Inácio Ferreira Souto e José António de Oliveira Machado.
A publicidade com que foi constituída e a exemplarizadora contundência
das suas decisões são claros indícios de como a estrutura do poder mudara
desde a época de D. João IV. A junta de D. José não precisava de ocultamentos
- a não ser os referentes à honra do próprio rei - e não estava disposta
a fazer concessões. Como convinha a um regime absolutista, o castigo deveria
ser terrível e inapelável. Apenas dois anos atrás, a França dera exemplo
desse critério, supliciando publicamente Damiens, um pobre infeliz que
atentara contra a vida de Luis XV com um canivete de aparar penas. Antes
de morrer, o condenado foi torturado durante quase duas horas e ainda
teve seus ferimentos regados com chumbo derretido.
Se a sentença devia ser pública, o processo,
pelo contrário, deveria ser rigorosamente secreto. Foi o que Pombal advertiu
expressamente à Junta, poucos dias depois da sua instalação. Atendendo
"à suma gravidade e delicadeza dêste importantíssimo negócio",
deveria ser observado no processo "o mais inviolável e melindroso segrêdo".
Mas a constituição da junta era, também, uma
formalidade. A investigação estava pronta e nem mesmo as motivações dos
réus podiam ser reveladas. Importava, apenas, comprovar a culpabilidade
e proferir a sentença, único elemento a ser publicado. O processo, constituído
por seis volumes encadernados, permaneceria secreto, chegando a ser dado
por perdido até aparecer, em 1920, na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.
Um dos integrantes da junta escreveria, posteriormente, que "tudo o
que se continha na sentença estava provado, e purificado de toda a dúvida"
porque o próprio rei possuía "provas convincentes", o que sugere
a existência de provas secretas, que não podiam ser dadas à publicação.
Importava a todos demonstrar indubitavelmente
a sua fidelidade ao monarca. Antes mesmo de que os réus fossem julgados,
a Casa dos Vinte e Quatro, em nome dos procuradores dos mesteres e
do povo de Lisboa, pediu que fossem declarados "peregrinos e estrangeiros
[...] de sorte que ficassem inteiramente separados de um povo tão fiel
como o da dita cidade de Lisboa". A 11 de janeiro, um dia antes de
lavrar a sentença, os integrantes da junta pediram autorização para exceder
as penas previstas na legislação "porque nem as Leis Pátrias até agora
escritas deram, ou podiam dar toda a necessária providência para castigar
uma ferocidade tam inaudita". O rei concordou.
A sentença saiu, pontualmente, no dia 12,
e foi executada no dia seguinte, a quatro meses do atentado, a um mês
do início oficial das investigações e a apenas oito dias da constituição
da Junta. Iniciou o macabro espetáculo a execução de D. Leonor de Távora.
Os algozes lhe mostraram demoradamente os instrumentos que deveriam servir
para o seu suplício e o do seu marido e filhos. Poupada da tortura "por
algumas justas considerações (relevando-a das maiores penas, que por suas
culpas merecia)" foi amarrada a um tosco banco e degolada. Também
foi atenuada a sentença do seu filho, José Maria, que, antes de ser "massolado"
(destroçado a golpes de maça) foi estrangulado sobre a roda que deveria
servir para expor o seu cadáver. O mesmo destino tiveram o Conde de Atouguia,
o Marquês Luis Bernardo de Távora e três subordinados, envolvidos na conspiração
dos seus senhores.
O Marquês velho, Francisco de Assis, condenado
a ser "rompido vivo", ou seja, a sofrer em vida os golpes que quebrariam
os seus ossos, enfrentou o suplício com grande coragem. Depois de se ter
confessado, beijou a roda a ele destinada, deitou-se nela e se deixou
amarrar. "Logo o algôs, pegou em uma massa de ferro que pesava dezoito
arráteis, e batendo-lhe a primeira pancada sobre o peito, lhe foi quebrando
as oito canas dos braços e das pernas, e ultimamente lhe deu a derradeira
no rosto".
O Duque de Aveiro, identificado como cabeça
principal da conspiração e fisicamente participante na tocaia, foi "rodado
vivo, deitado sobre a lenha, em que havia de ser queimado, e á vista do
alcatrão". O seu suplício "foi muito mais sensível [...] porque
descarregando o algôs, por erro do braço, a primeira pancada sôbre o ventre,
que devera dar sôbre o peito, para que dilaceradas logo as costelas com
o vigor do golpe, quando lhe não tirasse instantâneamente a vida, ao menos,
com as potências confusas para sentir menos as fracturas dos ossos, a
que sem interrupção se procedia; foi necessário depois dêstes despedaçados,
repetir os golpes no peito e cara, para acabar o final alento, dando bem
a conhecer, pelos sentidos ais que se lhe ouviam, a violência e tirania
que suportava".
O clímax do espetáculo - minuciosamente planejado
em ordem de violência crescente - foi a execução de António Alves, tido
como autor dos disparos que atingiram o rei. Foi "queimado vivo, descobrindo-se-lhe
os Corpos já mortos acima referidos, que se achavão cobertos". Foi
amarrado a um dos postes que dominavam em altura todo o cadafalso, com
o corpo coberto de pedaços de breu e um saco de pez e enxofre preso ao
pescoço. O narrador indica, ainda, que a morte foi especialmente lenta
pela situação do vento, que soprava do norte, em rajadas. A fumaça não
o sufocava e as chamas iam e voltavam, queimando-o lentamente. O terceiro
participante da tocaia, José Policarpo, cunhado de António Alves, não
pôde ser capturado. Foi queimado em efígie, amarrado ao segundo poste.
Todos os bens dos condenados foram confiscados,
os corpos queimados e as cinzas lançadas ao mar, junto com as do próprio
cadafalso. As mulheres que não foram executadas foram recluídas em conventos.
Vários jesuítas, considerados instigadores da conspiração, foram presos,
mas não poderiam ser executados sem que fossem relaxados ao poder secular.
Neste caso, os envolvidos eram propriamente religiosos e não membros de
ordens militares, de modo que nem mesmo o rei poderia fazer esse relaxamento,
que cabia exclusivamente à Santa Sé. Mesmo assim, o episódio seria utilizado
como pretexto para concretizar a expulsão da Companhia de Jesus, e o padre
Gabriel Malagrida, confessor da Marquesa de Távora e da Condessa de Atouguia,
apontado como inspirador do atentado, acabaria condenado à fogueira pelo
Santo Ofício, em 20 de setembro de 1761.
Inconfidência e Rebelião na América Colonial
Não parece que o Juízo da Inconfidência tivesse
grande influência no Brasil. Existia, evidentemente, o conceito de inconfidência,
explicitamente aplicado à chamada "Inconfidência Mineira", mas
resulta improvável que houvesse juízes da inconfidência permanentemente
estabelecidos em território americano ou mesmo que, diante dos feitos
que a eles competiam, se pensasse em enviar juízes da península. À distância,
o conceito de "lesa-majestade" deveria parecer bem menos premente
que a simples conservação da ordem administrativa, política e militar.
Assim, nas conspirações e revoltas, que não foram poucas, os governadores,
como autoridades políticas e militares, julgavam sumariamente e executavam
os réus, geralmente sem os requintes de crueldade recomendados para os
crimes de lesa-majestade. O rei estava longe e, apesar da legislação,
tornava-se difícil conceber que fosse diretamente lesado por ações acontecidas
na América e originadas, geralmente, em conflitos meramente regionais.
Se no Porto, a escassa distância de Lisboa, a agitação foi classificada
como uma simples assoada, imagine-se o que poderia acontecer nas isoladas
colônias, onde os conflitos de poder entre os diversos grupos e até mesmo
entre as próprias autoridades eram habituais e onde o poder militar dos
governadores se aproximava ao que exerceriam sobre uma praça de guerra.
A primeira sublevação na América a merecer
tratamento especial foi a encabeçada, nas colônias espanholas, por José
Gabriel Condorcanqui, mais conhecido como Tupac Amaru. Em 1776, através
do Visitador José Antonio de Areche, Carlos III iniciara uma drástica
reforma econômica que, em pouco tempo, conseguiu elevar a arrecadação
de um milhão e meio a quatro milhões de pesos. Baseada, principalmente,
no aumento da pressão fiscal, essa política provocaria reações em todos
os setores. Em 1780, Arequipa e La Paz foram teatro de movimentos populares
vitoriosos. As conquistas obtidas - notadamente, a redução dos impostos
internos - estimularam novos movimentos nas áreas não favorecidas. Cuzco,
Cochabamba, Chuquisaca e outras cidades tentaram a mesma reivindicação
com resultados vários. Enquanto, em algumas, os movimentos levavam à morte
os cabeças das sublevações, em outras, a pressão exercida forçava concessões,
que demonstravam a fraqueza das autoridades e favoreciam o crescimento
da agitação.
Faltava, no entanto, um líder que desse unidade
a esses esparsos movimentos locais. No Brasil, essa carência foi a principal
limitação às tentativas dos séculos XVIII e XIX. Relativamente isoladas,
tanto econômica como administrativamente, as capitanias se desenvolviam
em forma independente e colocavam as suas reivindicações como problemas
separados, que as enfrentavam isoladamente com a autoridade real. Os movimentos
eram liderados pelos proprietários brancos, único setor da sociedade que
contava com a organização e o poder necessários a uma ação coordenada.
Pelo contrário, as colônias espanholas - e, especialmente, o Peru - estavam
habitadas por uma população indígena que já fora organizada e poderosa
e que, apesar dos séculos de submissão forçada, nunca perdera a consciência
da sua unidade.
Essa rebeldia largamente contida foi catalizada
quando José Gabriel Condorcanqui, cacique de Tungasuca, resolveu reivindicar
seu sangue real, assumindo o título de José Gabriel Tupac Amaru Inca.
O próprio nome era - como se diria em nossos dias - um acerto de marketing
político. Tupac Amaru, o último Inca rebelde, era um símbolo do antigo
esplendor. Após a morte de Atahualpa, seu irmão Manco internou-se nos
vales próximos a Machu Picchu, constituindo um verdadeiro reino no exílio,
que subsistiu, atravessando os reinados dos seus filhos, Sayri Tupac e
Titu Cusi. Esse foco de resistência, que durou quarenta anos, só seria
submetido em 1572, com a derrota do seu último líder, Tupac Amaru, que
foi decapitado em Cuzco. Os espanhóis fizeram questão de exemplarizar
os índios com a execução pública mas, para seu espanto, entre 12 e 15
mil deles, após assistirem à execução em silêncio, passaram dois dias
e duas noites completos bradando em volta do corpo do rei morto. Depois,
tal como os portugueses esperavam a volta de D. Sebastião, os incas passaram
a aguardar o retorno de Tupac Amaru, cujo corpo, conforme a lenda, teria
sido dividido em pedaços dispersos que, enterrados como sementes, ressurgiriam,
como as plantas, para restaurar o império.
Não parece que o novo Tupac Amaru visasse,
explicitamente, a independência. Nos documentos conservados, define-se
"como fiel vasallo del Rey, nuestro señor", quem teria "ordenado
proceda extraordinariamente contra varios corregidores y sus tenientes
por legítimas causas que por ahora se reservan". Ao Bispo de Cuzco,
esclarecia que "aunque hoy se me note de traidor y rebelde, infiel
y tirano a nuestro monarca Carlos, dará a conocer el tiempo que soy su
vasallo".
Nas suas manifestações, fazia questão de apresentar-se
como "de la sangre real y tronco principal" e destacava: "La
mía es la única que ha quedado de la sangre real de los incas, reyes de
este reino". Poderia parecer apenas jogo político se não obrasse,
na Audiencia de Lima, um processo reivindicando o reconhecimento oficial
desses títulos. Desde os tempos da conquista, a Espanha reconhecia a nobreza
derivada do sangue real incaico, embora assemelhando-a aos moldes europeus
e subordinando-a à autoridade da Coroa de Castela. Essa aristocracia misturada
resulta evidente na forma em que Condorcanqui entrou em Cuzco: "Tupac
Amaru iba en un caballo blanco, con aderezo bordado de realce, su par
de trabucos naranjeros, pistolas y espada, vestido azul de terciopelo,
galoneado de oro, su cabriolé en la misma forma, de grana, y un galón
de oro ceñido en la frente, su sombrero de tres vientos, y encima del
vestido su camiseta, o unco, figura de roquete de
obispo, sin mangas, ricamente bordado, y en el cuello una cadena de oro,
y en ella pendiente un sol del mismo metal, insignias de los príncipes,
sus antepasados".
Não resulta improvável que parte da sua rebeldia
derivasse da rejeição da Real Audiencia às suas pretensões de nobreza,
mas a particular situação da colônia lhe daria um alcance político e militar
além de toda previsão. À data da prisão de Tupac Amaru, cinco meses depois
das primeiras hostilidades, a insurreição se alastrava pela maior parte
do Peru, todo o planalto boliviano e o noroeste da atual Argentina. Embora
válida para o leitor atual, essa localização, baseada na delimitação de
países que ainda não existiam, resulta insuficiente para avaliar a extensão
do movimento. Considere-se, então, que envolvia dois virreinatos
- Peru e Rio de la Plata - e três audiencias - Lima, Charcas e
Buenos Aires -. Mas, muito mais expressiva, ainda, é a constatação de
que a área atingida pela sublevação se ajustava como uma luva aos limites
do antigo Tahuantisuyo. Era, consciente ou inconscientemente, o poder
indígena que voltava, ameaçando afogar em sangue os herdeiros de uma dominação
igualmente sangrenta. Diante da magnitude da conflagração, foram deslocadas
forças militares especiais e o próprio Visitador Areche assumiu o julgamento
dos rebeldes, pronunciando uma sentença que ficaria como a mais bárbara
a ser executada na América Latina.
A estratégia de Areche privilegiava, principalmente,
"la noticia de la ejecución de la sentencia y su muerte, evitando con
ella las varias ideas que se han extendido entre casi toda la nación de
los indios, llenos de supersticiones, que los inclinan a creer la imposibilidad
de que se le imponga pena capital por lo elevado de su carácter, creyendole
del tronco principal de los Incas, como se ha titulado, y por eso dueño
absoluto y natural de estos dominios y su vasallaje". Precisava, em
conseqüência, fazer público o castigo, que seria executado com requintes
de crueldade. Antes de ser morto, o réu deveria assistir às execuções
da sua mulher, dos seus filhos - um deles com menos de 11 anos -, do seu
tio, do seu cunhado e dos principais chefes da insurreição. Depois, "se
le cortará por el verdugo la lengua, y después amarrado o atado por cada
uno de los brazos y pies con cuerdas fuertes, y de modo que cada una de
éstas se pueda atar, o prender con facilidad a otras que prendan de las
cinchas de cuatro caballos; para que, puestos de ese modo, o de suerte
que cada uno de éstos tire de su lado, mirando a otras cuatro esquinas,
o puntas de la plaza, marchen, partan o arranquen a una voz los caballos,
de forma que quede dividido su cuerpo en otras tantas partes, llevándose
éste, luego que sea hora, al cerro o altura llamada de Picchu, a donde
tuvo el atrevimiento de venir a intimidar, sitiar y pedir que se le rindiese
esta ciudad, para que de allí se queme en una hoguera que estará preparada,
echando sus cenizas al aire, y en cuyo lugar se pondrá una lápida de piedra
que exprese sus principales delitos y muerte, para sólo memoria y escarmiento
de su execrable acción".
A sentença prosseguia enumerando os locais
onde as partes restantes seriam exibidas: a cabeça em Tinta, um braço
em Tungasuca e outro em Carabaya, uma perna em Chumbivilcas e outra em
Lampa. Distribuição similar seria feita com os corpos da sua esposa, dos
seus filhos e dos principais líderes da sublevação. Em cada um desses
lugares, seria lida a sentença, e essa leitura seria repetida anualmente,
para eterna memória. Todas as propriedades dos réus seriam desapropriadas
e as suas terras arrasadas e semeadas com sal para nunca mais darem fruto.
Todos os descendentes ficariam infames e privados de receber qualquer
donativo ou herança. Os autos promovidos por Condorcanqui para o reconhecimento
da sua ascendência seriam recolhidos "quemándose públicamente por el
verdugo en la plaza pública de Lima, para que no quede memoria de tales
documentos".
A decisão assumia, ainda, características
de legislação comum, estabelecendo limitações a futuras ações de reconhecimento
de títulos nobiliários por parte dos índios, excluindo os caciques do
governo das suas comunidades, proibindo os índios de utilizarem roupas
ou insígnias da nobreza incaica, etc. Os índios não poderiam usar luto
nem usar instrumentos musicais significativos dele, nem intitular-se "incas"
e seriam forçados a vestir-se como espanhóis e falar castelhano. Finalmente,
proibia a posse e fabricação de armas de fogo e mandava recolher as que
se encontrassem em uso nas "haciendas, trapiches y obrajes de estas
provincias".
Embora a decisão já seja suficientemente terrorífica,
a descrição detalhada da sua execução a supera largamente em brutalidade:
Após o enforcamento dos outros réus - exceto o filho menor, que, poupado
no último instante, foi "pasado por debajo de la horca" e condenado
à prisão perpétua na África - Micaela Bastidas, mulher de Tupac Amaru,
subiu ao cadafalso, onde "a presencia del marido, se le cortó la lengua
y se le dio garrote" em um "torno de fierro que a este fin se había
hecho y que jamás habíamos visto por acá". O anônimo cronista relata,
ainda, que "padeció infinito, porque, teniendo el pescuezo muy delgado,
no podía el torno ahogarla, y fue menester que los verdugos, echándole
lazos al pescuezo, tirando de una y otra parte, y dándole patadas en el
estómago y pechos, la acabasen de matar". Quanto a Tupac Amaru, após
descrever os preparativos do esquartejamento, o narrador lembra: "No
sé si porque los caballos no fuesen muy fuertes, o porque el indio en
realidad fuese de fierro, no pudieron absolutamente dividirlo, después
que por un largo rato lo estuvieron tironeando, de modo que lo tenían
en el aire, en un estado que parecía una araña". O próprio Areche,
que assistia ao suplício das janelas da Igreja da Companhia, resolveu
abreviar-lhe a agonia, mandando o algoz cortar-lhe a cabeça
Mas, apesar dos esforços do Visitador, o exemplo
foi infrutífero. O mesmo narrador, apesar de branco, o admite ao registrar
que "a hora de las 12, en que estaban los caballos estirando al indio,
se levantó un fuerte refregón de viento, y tras éste un aguacero, que
hizo que toda la gente, y aun las guardias, se retirasen a toda prisa.
Esto ha sido la causa de que los indios se hayan puesto a decir que el
cielo y los elementos sintieron la muerte del Inca, que los españoles
inhumanos e impíos estaban matando con tanta crueldad".
Primeiros Movimentos Brasileiros
Em contraste com as colônias espanholas, o
Brasil não contava com uma base indígena coesa. Nenhum grande império
florescera antes da chegada dos portugueses e as dispersas comunidades
foram prontamente dominadas ou destruidas, exceção feita das que se internaram
nos territórios mais inacessíveis e, por isso mesmo, se encontravam marginadas
de qualquer processo político. Quanto à população negra, muitos de cujos
integrantes já conheceram, na África, estruturas políticas de alta complexidade,
encontrava-se completamente desarraigada. Misturavam-se, nas senzalas,
muçulmanos de um nível cultural relativamente elevado - os chamados "malês",
que, já na época imperial, chegariam a protagonizar algum movimento digno
de nota -, com membros de populações tribais, incapazes de qualquer projeto
político de largo alcance. Os quilombos, expressão constante e
onipresente da resistência negra, obedeciam, apenas, a um propósito de
autodefesa. Surgiam, geralmente, de maneira espontânea, pela reunião dos
escravos foragidos, e procuravam, no máximo, reconstituir, em lugares
afastados da cobiça dos brancos, os modos de vida e de organização que
conheceram na África. Não consta - mesmo em experiências bem sucedidas
como a dos Palmares - que pretendessem impor qualquer tipo de estrutura
à sociedade como um todo.
Limitados, também, foram os movimentos brancos
do século XVII e da primeira metade do XVIII. Beckman, Filipe dos Santos
e outros líderes visavam, apenas, a solução de conflitos regionais e conjunturais,
sem contestar abertamente a autoridade da Coroa portuguesa. A rigor, o
único movimento decididamente separatista foi o de Amador Bueno, em São
Paulo, favorecido pela constituição plurinacional dessa colônia fronteiriça
e pela transitória anarquia provocada pela Restauração ainda não consolidada.
Prematuramente frustrada pela renuncia do líder escolhido, a tentativa
revolucionária não chegou a motivar ações repressivas de grandes proporções.
Rebelde e altiva por natureza, São Paulo continuaria a criar preocupação,
limitando-se, porém, a conflitos setoriais: paulistas contra jesuítas,
Pires contra Camargos, mineradores contra "emboabas". Todos esses
conflitos acabariam controlados por soluções mais político-militares do
que jurídicas.
Tal como os paulistas, os maranhenses ligados
a Manuel Beckman começaram por expulsar os jesuítas. Exigiam, também,
a extinção da Companhia do Maranhão, criada na época da Restauração a
instâncias do padre Antônio Vieira, que, desvirtuada nas suas finalidades,
se convertera em um instrumento de exploração por parte da Coroa. Ela
controlava o comércio, desvalorizando as exportações de açúcar e majorando
os preços do sal, da pólvora e dos escravos africanos. Os jesuítas impediam
a escravização dos índios, tornando ainda mais difícil obter mão de obra
barata. O movimento foi sufocado, e Beckman condenado à morte pelo governador.
O mesmo aconteceu em Vila Rica, em 1720. Era
intenso o desvio de ouro em pó e a Coroa, visando dificultar o contrabando,
mandou estabelecer casas de fundição, que transformassem o ouro em barras,
ainda perto das áreas de extração. Vários mineradores se insubordinaram
e Filipe dos Santos, líder da rebelião, foi morto e esquartejado por ordem
do Visconde de Assumar.
Inconfidência Mineira
Novamente o ouro seria causa de ações
revolucionárias em 1789. Esgotadas as reservas mais acessíveis e limitados
os esforços por uma tecnologia ainda precária, a produção minguava
constantemente. Enquanto ainda era intensa, a Coroa portuguesa vivia
na opulência. O "quinto" (20% do ouro extraído) bastava
para sustentar o reino todo. Em 1725, o ano de maior produção, vinte
e cinco toneladas de ouro foram legalmente extraídas e comercializadas.
Cinco delas foram, integralmente, para as arcas da Coroa.
Logicamente, esse mecanismo percentual
só foi vantajoso enquanto a produção se manteve crescente. Decaindo,
os impostos caíam com ela e a Coroa, já acostumada ao luxo e ao poder
absoluto, resistia em reconhecer que o ouro estava acabando. Inicialmente,
alegando que os mineradores fraudavam o recolhimento declarando menos
ouro do que produziam, substituiu o percentual por um tributo fixo
de 100 arrobas anuais (aproximadamente, uma tonelada e meia), mas chegou
a hora em que a produção não dava nem mesmo para pagar o tributo, e
a dívida resultante precisou ser "derramada" sobre
o conjunto da população. Pela primeira vez, em 1762, o povo foi obrigado
a completar com seus próprios recursos o imposto devido. Essa situação
se repetiu em 1768, 1769 e 1770. Em 1788, o recolhimento se encontrava
atrasado em 384 arrobas (quase seis toneladas de ouro). A produção
total de um ano não alcançaria a colocá-lo em dia. Luis Antônio Furtado
de Mendonça, Visconde de Barbacena, foi nomeado governador das Minas
Gerais com a incumbência especial de conduzir uma nova "derrama".
Mas o contexto internacional mudara consideravelmente.
Em 1776, a Confederação dos Estados Americanos se declarou oficialmente
independente. Embora essa independência custasse a ser efetivamente
consolidada, em 1783, a Inglaterra foi forçada a reconhecê-la. O Tratado
de Versalhes, instrumento definitivo desse reconhecimento, transformou-se
em claro precedente, a demonstrar que as colônias podiam ser livres
se estivessem dispostas a sustentar a sua liberdade pela força das
armas.
As idéias independentistas, canalizadas
e estimuladas pela intelectualidade européia, acharam terreno fértil
nos jovens latino-americanos que freqüentavam às universidades. Em
1786, um deles, o carioca José Joaquim da Maia, estudante em Montpellier,
chegou a entrevistar-se com Thomas Jefferson, então embaixador em Paris.
Queria o apoio dos Estados Unidos para independizar o Brasil, mas não
encontrou o que procurava. Jefferson, cauteloso, mostrou-se entusiasmado
com a iniciativa mas limitou-se a dizer-lhe que alguns americanos poderiam
colaborar a título pessoal.
Contudo, as idéias e o exemplo derivados
do progresso da antiga colônia continuavam a estimular os brasileiros.
Em 1788, cariocas e mineiros conspiravam ativamente, esperando uma
situação favorável para iniciar a luta. José Alvares Maciel, recém-formado
em Portugal e na Inglaterra, e então residente no Rio de Janeiro, e
Joaquim José da Silva Xavier, alferes mineiro que fora lá tentar a
sorte como médico e engenheiro, constituíram-se em nexo entre os dois
movimentos.
Não era, propriamente, uma revolução,
senão apenas um movimento independentista. Membros destacados da elite
colonial, boa parte dos conspiradores visava, preferencialmente, aumentar
suas margens de lucro por meio da liberação do comércio e da eliminação
dos impostos recolhidos pela Coroa. Caso a forma de governo resultasse
alterada, seria mais uma conseqüência que um objetivo específico. A
escravidão seria mantida, pois a sua abolição lesaria os interesses
dos próprios conspiradores. Naturalmente, a busca da independência
tornava necessária a participação das outras capitanias. Esperava-se,
uma vez deflagrado o processo, receber o apoio do Rio e de São Paulo,
mas não existia uma rede organizada que assegurasse a resposta imediata
das outras regiões.
O novo governador chegou em meados de
1788 e começou a preparar a "derrama". Apesar de não
haver ainda anúncio oficial, a população percebia que alguma medida
extrema deveria ser aplicada e os conspiradores acharam chegado o momento
de intensificar a sua ação propagandística. A inquietação deveria ser
aproveitada para preparar o terreno e, logo que a derrama fosse
anunciada, o movimento ganharia as ruas. Serro Frio, São João del Rei
e outras cidades vizinhas estavam prontas para dar o seu apoio, e diversos
fazendeiros entrariam com homens e munição, enquanto Maciel providenciava
a instalação de uma fábrica de pólvora.
Mas um traidor entregou os planos. Não
era estranho acontecer isso. Não dispondo, ainda, de uma polícia organizada
nos moldes atuais, a Coroa estimulava e premiava as delações. Silvério
dos Reis, minerador endividado com a Coroa, aderiu inicialmente ao
levante mas, em 15 de março de 1789, preferiu relatar tudo ao governador,
confiante, provavelmente, em resgatar a sua dívida e ainda levar algum
lucro. A derrama foi suspensa e os conspiradores, desnorteados
pela imprevista mudança, se deixaram prender quase sem resistência.
Foram abertas duas devassas: uma em Minas
e outra no Rio de Janeiro. 35 pessoas foram envolvidas. Entre elas,
o ouvidor, Tomás Antonio Gonzaga, que, visando minimizar os indícios
que lhe eram contrários, tentou dissimular, visitando o palácio do
governador para cumprimentá-lo pela ação repressiva. Primava, ainda,
o critério que exigia a confissão do réu, considerada "a rainha
das provas". Conhecendo-o, os acusados persistiram tenazmente
em negar as suas culpas, mas, um a um, acabaram cedendo aos interrogatórios.
Apenas Gonzaga, escudado no seu conhecimento de leis e na ausência
de provas contra ele, negou até o fim.
Silva Xavier, chamado "o Tiradentes",
também começou negando, mas, em 18 de janeiro de 1790 - era o quarto
interrogatório que sofria - optou não apenas por confessar mas também
por assumir a culpa dos seus companheiros, dos quais se proclamou chefe
e principal impulsionador, declarando tê-los induzido apesar da sua
vontade. Foi simples heroísmo individual ou respondia a uma manobra
combinada? Apesar da incomunicabilidade que se procurava manter, não
era raro os presos combinarem estratégias dentro das cadeias e, de
fato, pouco depois, a chamada "conspiração dos alfaiates" iria
envolver, documentadamente, um episódio dessas características. Seja
como for, diversas testemunhas confirmam o altruísmo de Tiradentes,
que manteria até o fim a decisão de assumir as culpas do grupo todo.
O processo se prolongou por três anos.
Um dos acusados, o poeta Claúdio Manuel da Costa, morreu na prisão,
talvez assassinado, embora a versão oficial indicasse suicídio. Dos
34 restantes, 29 foram condenados. Cinco eram clérigos, e deveriam
ser degradados antes de que três deles fossem enforcados e, os dois
restantes, degredados por vida. Seis dos civis, além de enforcados,
teriam suas cabeças decepadas e expostas em frente de suas casas. Outros
quatro seriam também enforcados, mas poupados dessa mutilação. Todos
eles seriam castigados com o confisco dos bens e a infâmia dos descendentes
até a terceira geração, penas que também alcançariam, post mortem,
ao falecido Cláudio Manuel. Os restantes, entre os quais se achava
o ouvidor Gonzaga - ainda irredutível na sua negativa - foram condenados
ao degredo perpétuo na África.
Tiradentes, auto-proclamado líder da
revolta, foi condenado a que "com baraço e pregão seja conduzido
pelas ruas públicas ao lugar da fôrca e nela morra morte natural para
sempre, e que depois de morto lhe seja cortada a cabeça e levada a
Vila Rica, onde em o lugar mais publico dela será pregada, em um poste
alto até que o tempo a consuma; e o seu corpo será dividido em quatro
quartos e pregado em postes, pelo caminho de Minas, no Sítio da Varginha
e das Cebolas, onde o réu teve as suas infames práticas, e os mais
nos sítios de maiores povoações até que o tempo também os consuma;
declaram o réu infame, e seus filhos e netos, tendo-os, e os seus bens
aplicam para o Fisco e Câmara Real, e a casa em que vivia em Vila Rica
será arrasada e salgada, para que nunca mais no chão se edifique, e,
não sendo própria, será avaliada e paga a seu dono pelos bens confiscados,
e no mesmo chão se levantará um padrão, pelo qual se conserve a memória
do abominável réu". A sentença foi cumprida, mas a cabeça
não chegou a ser consumida pelo tempo. Apenas uma semana depois, desapareceu
misteriosamente do poste onde estava pregada. Já o padrão, erigido
onde estivera a casa demolida, permaneceu no local até 1822. Declarada,
finalmente, a independência, foi arrancado, reivindicando-se publicamente
a memória do herói.
Não seria aplicado o mesmo rigor aos
outros condenados à morte. Parcialmente exculpados pelas suas declarações
e auxiliados por suas relações e o poder econômico das suas famílias,
todos eles obtiveram a comutação das suas penas e foram degredados.
Conspiração dos Alfaiates
Entre a detenção e a execução dos inconfidentes
de Minas, o contexto internacional foi novamente alterado. A Revolução
Francesa demonstrou que os reis podiam ser vencidos no seu próprio
terreno e que a monarquia não era uma lei divina e imutável. O ideal
democrático ganhava terreno, e influenciava tanto os ideais libertários
dos brasileiros quanto o fervor repressivo da Coroa. Em 1794, foi denunciada,
no Rio de Janeiro, a existência de uma associação secreta, de aparente
orientação maçônica, que preconizava o fim das monarquias. Houve devassa,
várias pessoas foram detidas e foram seqüestrados papéis comprometedores,
onde se regulamentava o funcionamento dessa sociedade, mas a causa
esfriou sem atingir resultados notórios. Pessoas influentes - entre
elas, provavelmente, o próprio vice-rei, cujo filho era tido por maçon
- ocuparam-se de aliviar a situação dos acusados, vários dos quais
foram liberados e os restantes condenados a penas curtas de reclusão.
No mesmo ano começaram, na Bahia, conversações
preparatórias para um levante, que deveria ser deflagrado na Barra,
durante um jantar em que seria solenemente proclamada a liberdade.
Aparentemente, nem o jantar nem a proclamação chegaram a acontecer,
por falta de gente, mas a preparação clandestina continuou e, quatro
anos depois, vários dos conspiradores de 1794 participariam de um projeto
mais ambicioso.
Os tempos eram diferentes e os protagonistas
também. Muito além do simples ideal independentista, os novos inconfidentes
perseguiam ideais democráticos e igualitários, que incluíam a liberação
dos escravos e a integração da sociedade com igualdade de direitos
para todas as raças e condições sociais. Diferente da tentativa mineira,
a insurreição baiana contaria, principalmente, com a mobilização popular.
Boa parte dos conspiradores eram simples soldados e pequenos artesãos,
como os alfaiates que acabariam dando nome ao movimento.
Porém, apesar do maior apelo popular,
a conspiração nascia enfraquecida por uma visão geopolítica muito restrita.
Os inconfidentes mineiros - muitos deles mineradores ou fazendeiros
ricos - percebiam, ao menos teoricamente, a necessidade de obter o
apóio das outras capitanias. Contrariamente, os baianos esperavam proclamar
a "República Baianense". A tradição municipalista
e o regionalismo provocado pelas grandes distâncias não lhes permitiam
conceber o Brasil como um todo. Essa limitação isolaria também, anos
mais tarde, as tentativas revolucionárias dos pernambucanos. A diversidade
ambiental, econômica e cultural não levava à complementação, mas ao
isolamento e até à rivalidade.
O clima propício à insurreição continuava
a formar-se. O colonialismo, inicialmente uma aventura baseada no esforço
pessoal dos colonos, passara a constituir uma situação consolidada
em que a Coroa, dona absoluta dos recursos, cedia graciosamente a sua
exploração em troca de grandes margens de lucro, garantidas por rígidos
controles administrativos. Portugal monopolizava o comércio e determinava
os preços. Portugueses peninsulares ocupavam os cargos políticos, militares,
administrativos e eclesiásticos. Representantes de uma monarquia absolutista,
consideravam-se, eles mesmos, senhores quase absolutos das suas jurisdições.
Alimentavam disputas por minúsculas questões de precedência, chegando
o desembargador Antônio de Macedo Velho a refugiar-se no convento de
São Francisco para fugir à perseguição que o governador Pedro de Vasconcelos
lhe movera por negar-se a chamá-lo de "senhor". As
acusações de corrupção atingiam até mesmo os magistrados da Relação,
que conforme relatório do governador Fernando José de Portugal, não
mereciam "o melhor conceito do público a respeito de limpeza
de mãos". Além das suspeitas de favorecimento ou abuso de
poder, vários deles eram acusados de receptar contrabando e proliferavam
os comentários sobre a sua licenciosidade, incluindo acusações de bigamia
e homossexualidade. O governador - ele mesmo um magistrado e membro
da Casa da Suplicação - fora forçado pelas denúncias a informar à Coroa,
mas procurava minimizar as acusações enfatizando a falta de provas.
Aos brasileiros, reservava-se, apenas,
o âmbito municipal e, mesmo assim, com grandes restrições quanto ao
nível socio-econômico, aos antecedentes e à "limpeza de sangue".
Enquanto índios e negros eram puros, desarraigados e despossuídos,
a marginalização foi admitida como um destino natural, mas, na medida
em que seus descendentes - mestiços, mulatos, caboclos - cresciam num
mundo organizado nos moldes europeus, era inevitável que procurassem
integrar-se a ele. Muito além dos ideais genéricos difundidos nas proclamas,
boa parte das reivindicações imediatas dos conspiradores baianos centrava-se
na equiparação das raças no acesso aos cargos públicos. As testemunhas
mencionam, especialmente, a milícia, cujos graus inferiores eram majoritariamente
ocupados por pardos. Recrutados com largueza, às vezes até coercitivamente,
enfrentavam as tarefas mais pesadas e perigosas sem nenhuma possibilidade
de progredir ou alcançar um posto de comando.
Enquanto isso, a situação de Portugal
era propícia a todo tipo de questionamentos. Entre 1786 e 1788, Dona
Maria I, perdera o seu marido, o rei D. Pedro III, e o seu filho, o
príncipe herdeiro, D. José. Em 1789, a Revolução Francesa representou
para ela um novo golpe. Desestruturada pelas perdas recentemente sofridas,
via-se forçada a defender um reino que ela achava em perigo iminente.
Em 1792, a sua insanidade já era aparente, mas o novo herdeiro, D.
João, resistia a aceitar o cargo de príncipe regente, anômala situação
que se prolongaria até 1799. Essa virtual acefalia era paliada, apenas,
por disposições interinamente emitidas pelo príncipe e decisões do
Desembargo do Paço, da Mesa da Consciência, do Conselho Ultramarino
e de outros órgãos da alta administracão, todas tomadas em nome da
rainha louca.
Esvaziada a tentativa de 1794, os conspiradores
optaram por continuar discretamente a propaganda subversiva. Os sinais
de descontentamento da população eram crescentes e justificavam as
mais ambiciosas expectativas. Em 1796, dois desterrados que retornavam
de Lisboa foram aclamados pela multidão. Em 1797, a falta de carne
levou o povo e parte da tropa a arrombar os açougues. Em 1798, em aberto
repúdio à autoridade da Coroa, a forca amanheceu queimada por mãos
desconhecidas. Paralelamente, idéias liberais e antirreligiosas circulavam
sem controle. Um tenente interrompeu a própria boda para dispensar
o sacerdote, alegando que, para garantir a validade do casamento, bastava
a expressão da vontade dos noivos. Na Sexta-feira Santa, um grupo de
oficiais reuniu-se para um jantar onde abundou a carne, contrariando
o jejum e a abstinência prescritos pela Igreja Católica.
A conspiração veio à tona em 12 de agosto,
sob a forma de vários escritos anônimos que apareceram afixados nos
pontos mais transitados da cidade. Escritos em linguagem rebuscada
e altissonante, conclamavam, em nome do "Poderoso e Magnífico
Povo Bahinense Republicano", a fazer, "nesta Cidade
e seu termo a sua revolução para que seja exterminado para sempre o
pessimo jugo reinavel da Europa". Em linhas gerais, levantavam
os mesmos princípios de liberdade, igualdade e fraternidade que foram
popularizados pela Revolução Francesa. Em particular, pregavam a independência,
a liberdade de comércio e a abertura dos portos, além da igualdade
de direitos entre todas as raças, chamando à revolução "todos
os Membros militares de Linha, milicia e ordenanças, homens brancos,
pardos e pretos".
Talvez como uma forma de neutralizar
o poder militar da Coroa, os conspiradores prometiam melhores condições
de trabalho e remuneração a soldados e oficiais, chegando a estabelecer
a futura tabela para as remunerações da tropa. Nas suas comunicações
internas, recomendavam "conservar as Pessoas de Letras e tudo
pertencente à Religião por Política, afim de cortar uma guerra civil".
Até o governador foi chamado. Poucos dias depois da aparição dos primeiros
proclamas, novos papéis anônimos foram deixados na Igreja do Carmo.
Endereçados ao "Illmo. Exmo. Sr. General", convidavam-no
a liderar "as funcçoens da futura revolução", investindo-o
da qualidade de "cidadão Presidente do Supremo Tribunal da
Democracia Bahinense".
Não está claro se o governador tinha
algum envolvimento real na conspiração. Vários depoimentos mencionam
dizeres dos conspiradores que o faziam conivente ou mesmo participante
ativo na revolução, mas poderia se tratar de afirmações falsas, tendentes
a tranqüilizar e estimular os medrosos ou, mesmo, a envolver o governador
numa teia de compromissos involuntários, que, afinal, acabasse aceitando.
Por outra parte, sabe-se que participaram da conspiração figuras proeminentes
da sociedade colonial que, por uma ou outra causa, foram poupadas da
devassa, e não seria incrível que o próprio governador tivesse pensado
em conduzir o movimento revolucionário e estivesse apenas disfarçando, à espera
do momento oportuno. Não era a primeira vez que ele ouvia falar nos
inconfidentes. Diversas denúncias já tinham chegado a ele mas, fosse
por conivência ou por simples imprevisão, tinha minimizado, em todos
os casos, a real transcendência do movimento.
Seja por não participar do movimento
ou por achar que os proclamas foram apressados e temerários, o governador
preferiu cumprir com as obrigações do seu cargo, incumbindo o Ouvidor
Geral do Crime, desembargador Manoel de Magalhães Pinto de Avelar Barbedo,
da devassa correspondente. Paralelamente, considerando "que
o meio da devaça, posto que o mais conforme a Lei, neste caso não he
regularmente o mais efficaz", ordenou, "ainda que
este indicio era remoto e falivel, a não occorrerem outras circunstancias",
que fossem examinadas "varias Petiçoens antigas e modernas
que se encontravam na secretaria deste Governo para as combinar com
a lettra dos Papeis sediciosos". Uma primeira comparação apontou
a semelhança com a escritura de Domingos da Silva Lisboa, um requerente
de causas, pardo e "algum tanto solto de lingua",
que foi preso no dia 16 de agosto. Inocentado esse suspeito pela aparição
de novos papéis, evidentemente escritos pela mesma mão enquanto ela
estava já detido, foram feitas novas comparações, sendo achados "tres
de lettra inteiramente análoga a dos Papeis sediciosos" que apontaram
as suspeitas sobre Luiz Gonzaga das Virgens, "homem pardo e
soldado do primeiro Regimento de Linha desta Praça".
Dessa vez, a improvisada perícia grafológica
acertara o alvo. Detido o soldado, que se deixara levar por seu entusiasmo
na atividade proselitista, os outros conspiradores se desesperaram,
pensando na iminência de serem também descobertos. Pretendendo tirá-lo
da cadeia antes que falasse, programaram uma reunião de emergência,
convocando para ela não apenas pessoas já integradas ao projeto como
também outras que lhes parecia possível simpatizassem das mesmas idéias
e objetivos. O preso não falou, mas os novos convocados optaram por
delatar a conspiração. Alguns pretenderam fugir mas foram presos "pelas
apertadissimas ordens que expedi por toda a capitania". Outros, "por
não se acharem tão gravemente culpados e se persuadirem que não seriam
procurados, ou para que a fuga lhes não servisse de indicio de serem
co-reos de um tal delicto", preferiram permanecer na cidade
e foram também apreendidos. O movimento achava-se bastante ramificado,
esperando-se o concurso de várias regiões do interior, mas a precipitação
impediu que acontecesse uma ação articulada. Houve detenções no engenho
São José, na ilha de Madre de Deus, no Rio de Contas; investigações
em Camisão, Cachoeira e outros municípios. Muitos dos envolvidos -
os proclamas de Luiz Gonzaga falam em "tresentos noventa e
dous Dignissimos Deputados Representantes da Nação em consulta individual
de duzentos oitenta e quatro Entes que adoptão a total Liberdade Nacional,
contida no geral receptaculo de seiscentos setenta e seis Homens",
o que, mesmo considerando-se o exagero, a que a intenção propagandística
possa tê-lo conduzido, ultrapassa em muito os trinta e quatro detidos
que foram submetidos a julgamento - devem ter eludido a perseguição,
permanecendo quietos e esperando não serem delatados.
Encontrando-se o Ouvidor Geral já ocupado
com a devassa dos papéis sediciosos, e "a vista do exemplo
praticado em semelhantes casos e ultimamente pelo Vice Rey do Estado
do Brasil e pelo Governador e Capitão Geral de Minas Geraes no levantamento
daquella Capitania", o governador resolveu abrir, com as detenções,
uma nova devassa, incumbindo-a ao desembargador Francisco Sabino Alvares
da Costa Pinto. Ambas as devassas correriam paralela e independentemente
e acabariam sendo objeto de decisões separadas.
A investigação foi acidentada. João de
Deos, um dos acusados, fingiu-se de louco e teve de ser submetido à perícia
para comprovar a sua sanidade. A cadeia, recentemente reformada, revelou-se
falha. O segredo era ineficaz e a comunicação entre os presos motivou
uma vistoria, constatando-se que "sem ser preciso levantar
muito a voz se pode fallar, com quem estiver no segredo [...] ainda
que de dia e principalmente de noite, em que pelo silencio que então
ha, se percebe qualquer falla, ainda que com submissa voz".
Não faltaram indícios do comprometimento
de pessoas proeminentes, desde os repetidos serões em casa do farmacêutico
João Ladislau Figueiredo de Melo até a presença de um comandante francês
e um misterioso inglês, esquecido na devassa de maneira igualmente
misteriosa. Sobre o governador, João de Deos confidenciara a Joaquim
SantAna que "a Guarda do Palacio e Pessoa do dito Illustrissimo
e Excellentissimo Senhor, primeiro que tudo na ocazião da sublevação
havia de ser atacada, e por disfarce prezo o mesmo Excellentissimo
Senhor o qual então assinaria todas as ordens precizas para o mais".
Mais cauto, Inácio Pimentel declara que a deflagração do conflito estava
prevista "para um dia de ópera em que assistisse o Excellentissimo
Governador constrangendo-o a alternativa de ser Presidente da Nova
República ou de morrer".
Concluindo as devassas, o governador
achou oportuno consultar à Coroa sobre o caminho a seguir, optando
entre deixar "que os reos sejão sentenciados em Relação pelo
merecimento dos Autos" ou ordenar "o que for servida
a este respeito". Distinguia, no seu relatório, vários graus
de envolvimento: "huns talvez no numero de quatro ou seis reputados
como pincipaes cabeças desta sedição, outros que posto não fossem os
authores prestarão o seu consentimento e convidarão varias pessoas,
outros que acceitarão e assistirão aos conventículos em que alternadamente
comparecião, outros que sendo convidados não denunciarão como erão
obrigados, e alguns finalmente que nem acceitarão o convite, tiverão
a inconsideração de se calarem e guardarem segredo".
As autoridades superiores - ainda em
nome da rainha, que, como já foi dito, havia vários anos que perdera
as suas faculdades mentais - responderam aconselhando o julgamento
em Relação e recomendando que fosse posto em prática "com a
maior promptidão, e com a publicidade que promettem as Leys estabelecidas,
para que conste da justiça, com que são castigados, recebendo immediatamente
o merecido castigo pelos seos crimes e uzando-se com elles de toda
a severidade das leys, tanto a respeito dos cabeças como dos que acceitarão
o convite e que não denunciarão tal, e tão enorme crime, devendo para
o futuro constar a todos, que em tão grande attentado o bem publico
não soffre moderação alguma".
As sentenças foram exaradas em 5 de novembro
de 1799. Luiz Gonzaga das Virgens, julgado pela publicação dos papéis
sediciosos, foi condenado "a que com baraço e pregão seja levado
ao logar da forca eregida para este Supplicio, e que nelle morra morte
natural p.a sempre, sendo-lhe depois de morto decepadas as mãos e cortada
a cabeça, as quais ficarão postadas no dito logar da execução até que
o tempo as consuma". Previa-se, outrossim, o confisco de bens,
a declaração de infâmia para filhos e netos e a demolição e salgamento
da sua casa "para nunca mais se edificar". Quanto
a Domingos da Silva Lisboa, erradamente detido pela semelhança caligráfica, "como
de ambas as Devaças nada de pozetivo rezultou contra elle, julgão purgado
pela diuturnidade da prizão algum leve e remoto indicio, q. o maculasse".
Mesmo assim, apesar de haver permanecido quinze meses detido sem culpa
formada, foi, ainda, condenado nas custas do processo.
Dos inculpados no segundo processo, Lucas
Dantas de Amorim Torres, também soldado, e os alfaiates João de Deos
do Nascimento e José Faustino dos Santos Lira, cuja profissão acabaria
ligada ao nome do movimento, foram sentenciados "a que com
baraço e pregão, pelas ruas publicas desta cidade, sejão levados a
Praça da Piedade, por ser tambem uma das mais publicas della, onde
na forca, que para este supplicio se levantará, mais alta, do que a
ordinaria, morrão morte natural p.a sempre", depois do qual
seriam também esquartejados e expostos a distâncias proporcionais entre
diversos pontos da cidade. Como Luiz Gonzaga, foram condenados ao confisco, à infâmia
dos seus descendentes e à demolição e salgamento das suas casas, exceto
no caso de José Faustino, que não possuía residência certa, mas, à diferença
daquela, a sentença de João de Deos e dos alfaiates incluía explicitamente,
a referência a "hum Padrão, em q. se conserve a lembrança da
sua infamia". Às mesmas penas foi sentenciado, em ausência,
Luiz Pires, que estava foragido.
Também foi condenado à forca, infâmia
e confisco Romão Pinheiro, omitindo-se, porém, o esquartejamento e
o salgamento da residência. Apelando da decisão, foi dsclassificada
sua pena para desterro vitalício na África. Dos restantes, sete foram
condenados em açoites e desterro por vida; outros três, respectivamente,
por dez, cinco e três anos, e dois escravos, depois de receberem quinhentos
açoites, deveriam ser vendidos "p.a fora da Capitania",
o que equivalia ao desterro, sem, no entanto, lesar os direitos dos
seus donos. Três militares, bastante comprometidos, foram recluídos
por um ano na cadeia da cidade e os restantes acusados foram absolvidos
por falta de provas.
Designado para a defesa dos réus, o bacharel
José Barbosa de Oliveira - aliás, tio avô de Ruy Barbosa - insistiu
ainda, conseguindo a comutação da sentença de Pinheiro e a redução
de algumas penas de reclusão. Perdida a esperança de inocentar os principais
envolvidos, tentou, ao menos, evitar o espetáculo selvagem do esquartejamento,
mas o tribunal confirmou a sentença, mandando dar "inteira
execução". Em 8 de novembro foram executados, mas os membros
despostados não chegaram a permancer expostos "até que o tempo
os consuma". Três dias depois, o fedor era tão insuportável
que o cirurgião médico do Senado e o provedor da saúde, em atenção
ao já precário estado sanitário da cidade, solicitaram do governador
a retirada dos despojos. Os restos foram enterrados no dia 13, no cemitério
da Santa Casa da Misericórdia.
Revolução Pernambucana
O último movimento revolucionário antes
da Independência aconteceu no Recife e foi o primeiro a triunfar e
conseguir, ainda que brevemente, estabelecer um governo independente.
A maior proximidade da Coroa - estabelecida, desde 1808, no Rio de
Janeiro - tornava mais audaciosa a tentativa, mas os ideais independentistas
e revolucionários continuavam a crescer e o progresso que a presença
da corte trouxera ao Brasil limitava-se à capital, sendo escassos os
reflexos positivos visíveis nas outras capitanias.
Tal como as tentativas anteriores, a
Revolução Pernambucana circunscreveu-se a um âmbito regional, embora
pudesse ter crescido bastante, não fosse rapidamente sufocada. Pelos
planos dos conspiradores, deveria ser deflagrada em 8 de abril de 1817,
mas o sistema português de estímulo às delações provou, mais uma vez,
a sua eficácia. Avisado do que se tramava por um comerciante português
apelidado de "Carvalhinho", o governador, Caetano
Pinto de Miranda Montenegro, resolveu agir prontamente. Cometeu um
erro, porém, ao publicar uma ordem do dia em que dava conta da presença
de "alguns partidos, fomentados talvez por homens malvados,
com a louca esperança de tirarem algumas vantagens das desgraças alheias".
Quando, dois dias depois, ordenou a detenção
dos envolvidos, os revolucionários sabiam-se descobertos e estavam
dispostos a resistir. Incumbido da prisão, o brigadeiro Manoel Joaquim
Barbosa de Castro encontrou a morte em pleno pátio do quartel instalado
na fortaleza de Cinco Pontas, vítima da espada de José de Barros Lima,
justamente apelidado de "Leão Coroado", que, depois
de eliminar também o tenente-coronel Alexandre Tomás, ajudante de ordens
do brigadeiro, conclamou seus colegas à insurreição.
A espontânea rebelião do quartel foi
o estopim que precipitaria a revolução. Os conspiradores ganharam as
ruas, pedindo o apoio da população. O governador, refugiado no forte
do Brum, rendeu-se quase sem resistência e partiu para o Rio de Janeiro.
Comerciantes portugueses e outros membros e partidários do governo
deposto conseguiram também partir, dirigindo-se majoritariamente para
a Bahia. Enquanto isso, no Recife era constituído um governo provisório
e promulgada uma lei orgânica, que deveria vigorar até que a Constituição
fosse elaborada e proclamada. Adotava-se a forma de governo republicana
e o respeito à liberdade religiosa, de imprensa e de consciência. Vários
impostos foram abolidos e entrou em discussão a liberdade dos escravos,
mas, também nessa oportunidade, os interesses envolvidos foram mais
fortes e, apesar das declamações igualitárias, o assunto foi novamente
postergado.
Mais uma vez, a deflagração antecipada
do conflito não permitira a construção da complexa malha de relações
que deveria garantir a sobrevivência e o progresso da revolução. Já consumado
o levante, foram enviados emissários às outras capitanias e também à Argentina
e aos Estados Unidos, à procura de apoio. Mas a Bahia ficava mais perto.
Avisado da sublevação, o governador Marcos de Noronha e Brito, Conde
dos Arcos, ordenou o deslocamento de duas expedições punitivas: uma
por terra, ao mando do marechal Cogominho Lacerda, e outra por mar,
comandada pelo capitão Pires Batista. O porto do Recife foi bloqueado
e, atacada por todos os flancos, a cidade se rendeu em 19 de maio.
A insurreição já atingia Alagoas, Paraíba,
Rio Grande do Norte e beirava as fronteiras do Ceará. Os revolucionários
se entrincheiraram nos engenhos e fazendas e resistiram bravamente
mas os auxílios não chegavam e as forças enviadas à sua procura eram
demasiado poderosas. O padre João Ribeiro enforcou-se numa árvore.
Outros - os que não morreram em combate - foram presos e levados a
julgamento sumário. Mais de cem pessoas foram detidas. O Recife não
tinha estrutura adequada e uma terceira parte dos presos foi transferida
para Salvador.
O Padre Roma, Dr. José Inácio Ribeiro
de Abréu e Lima, enviado à procura do apoio da Bahia, tinha sido preso,
em 26 de março, pelo torneiro Simplício Manuel da Costa, que obteve,
em recompensa, o posto de 2º tenente honorário da Armada Real. Formou-se,
de imediato, uma comissão militar integrada pelos majores Manuel Pedro
de Freitas Guimarães e Manuel Gonçalves da Cunha, os coronéis Joaquim
José de Sousa Portugal e Antônio Frutuoso de Menezes Dória, o tenente-coronel
José Antônio de Matos e os brigadeiros Felisberto Caldeira Brant Pontes
e Manuel Joaquim de Matos. O próprio governador presidiu as deliberações,
designando como relator o Ouvidor Geral do Crime, Des. Henrique de
Melo Coutinho de Vilhena. Três dias depois da sua prisão, o padre era
arcabuzado, em frente da Casa da Pólvora de Salvador.
O mesmo destino sofreram, ja sufocada
a rebelião, Domingos José Martins, José Luiz de Mendonça e o carmelita
Miguel Joaquim de Castro, chamado "o padre Miguelinho".
Foram julgados por um tribunal especial, presidido pelo desembargador
Manuel José Batista Filgueiras, e executados às 4 horas da tarde do
dia 12 de junho. Simultaneamente, em Pernambuco, aconteciam outros
processos, igualmente sumários. Vacante a capitania pela ausência do
governador Montenegro, o Conde dos Arcos teve a sua autoridade ampliada,
passando a oficiar também de interventor no Recife. Vários revolucionários,
entre eles Domingos Teotônio e o "Leão Coroado", foram
também executados.
Passado o perigo imediato e executadas
sumariamente as principais cabeças da insurreição, as devassas prosseguiram
na forma da lei. Os cárceres continuavam lotados de prisioneiros e
dia a dia novos cúmplices eram identificados e detidos. As investigações
concluíram, de maneira um tanto imprevista, em 6 de fevereiro de 1818.
Falecida a rainha louca, D. João, ainda príncipe regente, foi, por
fim, aclamado rei e, querendo dar uma amostra da sua magnificência,
mandou suspender as devassas e "proceder sem outra demora a
julgar os culpados pelo que por ellas já constar, e segundo as suas
culpas merecerem". Não se tratava de um indulto, como equivocadamente
interpretaram alguns autores. O texto não deixa lugar a dúvidas ao
determinar "que não permitte a Justiça, que crimes tão horrorosos
fiquem impunidos". No entanto, a medida limitava o julgamento
aos réus já presos, mandando não "prender, ou sequestrar a
mais nenhum Réo, ainda que pelas mesmas Devassas já se lhe tenhão formalizado
culpas, excepto tendo sido dos Cabeças da Rebellião".
Embora não tivesse nenhum efeito legal
sobre os réus já presos, essa disposição teve a virtude de afrouxar
as condições de detenção. Além da ajuda tradicionalmente prestada pela
Santa Casa da Misericórdia, as freiras do convento de Santa Clara do
Desterro foram autorizadas a levarem roupas e alimentos para os prisioneiros.
Foram permitidas, também, as visitas e o fornecimento de livros aos
detentos. Preso na cadeia da Câmara de Salvador, Joaquim do Amor Divino
Rabelo, conhecido como Frei Caneca, organizou uma escola, onde cada
um dos detentos ensinava sua especialidade aos colegas. Iniciaram-se
aulas de francês, inglês, direito natural e civil, geografia, aritmética, álgebra,
geometria e cálculo. Como não podia ser de outra maneira, essa liberalidade
permitiria a entrada e saída das idéias e projetos revolucionários
e, assim, os detentos passaram a participar, mais ou menos clandestinamente,
dos novos movimentos que se preparavam na cidade.
Mas as condições políticas do reino todo
estavam mudando. Em 1820, a Revolução Liberal do Porto comovera o reino
nos seus alicerces. As Cortes, reunidas em Lisboa, exigiam o retorno
do rei e a promulgação de uma Constituição. Cedendo às pressões, D.
João aceitou voltar e, antes de partir definitivamente para Lisboa,
mandou anular o processo contra os rebeldes pernambucanos.

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