A
Suprema Corte de Justiça da Pennsylvânia em sessão.
(Detalhe de um mural existente na
sede atual da Suprema Corte) |
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Memória
da Justiça Brasileira - 2 |
Capítulo 5
Primórdios da Justiça
nas Colônias Inglesas
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Embora a Inglaterra estivesse, de longas datas,
ligada aos destinos da América - ninguém melhor do que ela podia conhecer
as viagens que escandinavos e dinamarqueses realizaram antes dos espanhóis
e já em 1497, apenas 5 anos após a chegada de Colombo, John Cabot, explorara
a costa atlântica da América do Norte - demorou bastante a mostrar vontade
política para ocupar aqueles territórios. Não seria alheia a essa atitude
a divisão hispano-portuguesa, derivada do Tratado de Tordesillas,
mais respeitado por temor ao poderio marítimo e militar dessas duas nações
do que por reconhecimento ao direito divino por elas invocado. As incursões
de navios de outras bandeiras limitaram-se, durante o século XVI, à pirataria
e à extração clandestina de materias primas nas áreas menos protegidas.
Essa aparente invulnerabilidade foi quebrada,
no caso de Portugal, pela desastrosa cruzada que terminou com a morte
de D. Sebastião e a acefalia do reino. Quanto à Espanha, beneficiária
direta da crise portuguesa, veria desaparecer o seu prestígio em 1587,
quando a que Felipe II chamou de "Invencível Armada", constante
de 135 navios, com 58.000 homens e 2.000 peças de artilharia, a maior
frota de guerra já vista, foi quase completamente destruida pelos ingleses,
menores em número, porém mais experientes nas condições enfrentadas.
As Primeiras Colônias
Mas não foi Inglaterra a primeira a aproveitar
a fraqueza evidenciada por Espanha. Antes que ela conseguisse consolidar
estabelecimentos estáveis no continente americano, os franceses, há muito
interessados nesses territórios, fundaram um entreposto comercial em Quebec.
Enquanto isso, os holandeses, com ajuda do inglês Henry Hudson, exploravam
a bacia do rio que levaria o seu nome e iniciavam uma ocupação que em
1624, mesmo depois de estabelecidas as primeiras colônias inglesas, culminaria
na fundação de Nova Amsterdam.
A partir das descobertas de Cabot, a Inglaterra
considerava-se com direito às costas americanas, desde Terranova até a
Flórida, mas as primeiras tentativas de colonização, conduzidas por Sir
Humprey Gilbert e seu meio-irmão, Sir Walter Raleigh, em 1587, não prosperaram.
Terminava, na Inglaterra, o reinado de Elisabeth I, que conduzira com
habilidade os conflitos de religião e centralizara o poder político a
expensas do Parlamento. Seu sucessor, James I, não soube, apesar da sua
origem católica, administrar esses conflitos, e erigiu-se em defensor
intransigente do anglicanismo. Politicamente, assumiu um comportamento
despótico, que mais tarde acabaria conduzindo à rebelião de Oliver Cronwell
e à morte de Charles I.
Crescia, entretanto, uma importante dissidência
religiosa, dentro mesmo da Iglesia Anglicana. Os puritanos não eram perseguidos,
como os católicos, e desfrutavam de um considerável poder econômico. Quando
a intolerância de James I se voltou contra eles, optaram por buscar outros
territórios onde pudessem viver de acordo com as suas convicções. Assim,
em 1606, um grupo de comerciantes que constituíra a Virginia Company of
London obteve do rei a licença para estabelecer uma colônia no mesmo local
da fracassada fundação de Raleigh. Chegaram à baía de Chesapeake no ano
seguinte e fundaram Jamestown, um centenar de moradores instalados em
cabanas, junto a um ancoradouro de táboas e defendidos por uma simples
empalizada. Os índios não incomodavam, mas o clima era rigoroso. Ao cabo
de um ano, o número de imigrantes estava reduzido à metade, mas os sobreviventes
persistiram e a colônia cresceu o suficiente para estimular outros empreendimentos
como o do Mayflower, navio carregado de peregrinos separatistas
que chegou a Plymouth, Massachussets, em 21 de novembro de 1620, dez dias
depois de ter assinado, em Provincetown Harbour, o chamado Mayflower
Compact, um acordo assinado por 41 passageiros para determinar
a forma de governo da nova colônia. Mas a grande expansão aconteceu a
partir da fundação de Boston, em 1630. Depois de consolidar esse primeiro
assentamento, os puritanos espalharam-se, fundando colônias em Rodhe Island,
Connecticut e New Hampshire. Simultaneamente, grupos católicos instalavam-se
em Maryland. Em 1638, a Suécia estabeleceu uma colônia, na foz do rio
Delaware, que foi tomada pelos holandeses em 1655. Em 1664, os ingleses
tomaram dos holandeses Nova Amsterdam, rebatizando-a como Nova York.
Governo e Justiça na Pennsylvania
A Pennsylvania foi povoada por suecos em 1637,
passando depois a mãos holandesas. Em 1681, William Penn obteve do rei
Charles II a concessão de uma grande extensão de terras, com autorização
para vendê-las em parcelas e estabelecer um sistema de governo, que estaria
sujeito à aprovação da Coroa. Penn é descrito como um visionário, que
considerava seu projeto como uma "experiência sagrada", onde quacres
e outros perseguidos pela intolerância religiosa poderiam encontrar refúgio.
De fato, América revelava-se como um território aberto, onde holandeses,
suecos, franceses, espanhóis e ingleses conviviam sem demasiados conflitos
e as religiões incluíam congregacionalistas, presbiterianos, batistas,
luteranos, quacres, católicos e anglicanos. Penn assinou com os seus colonos
um contrato denominado Frame of Government, que determinaria
as bases da nova colônia.
Durante a ocupação holandesa, a Pennsylvania
atingira um elevado grau de organização. Possuía justiça de primeira instância
e até uma corte de apelação, cujos membros eram chamados de "Assizes".
Penn estabeleceu, no seu lugar, o Provincial Council (Conselho
Provincial), um órgão eletivo que acumulava funções executivas, legislativas
e judiciais. O Council estava incumbido da regulação do
comércio, conduzia as negociações com as outras colônias e com as tribos
indígenas, demarcava os counties (condados), supervisionava a urbanização,
construía pontes e estradas e, até a criação da Assembly
(Assembléia), em 1701, legislava nos assuntos que a Coroa permitia regulamentar
localmente. Substituía também o governador nos casos de ausência, o que
não era infreqüente, posto que Penn passava longos períodos na Inglaterra.
À semelhança das cortes espanholas e portuguesas,
o Council misturava a jurisdição de primeira instância com
o poder revisional sobre decisões de magistrados inferiores. Essa dupla
jurisdição, unida às funções executivas e legislativas derivou numa sobrecarga
de trabalho que comprometia a eficácia do seu funcionamento e o fato de
realizar sessões exclusivamente em Philadelphia provocava protestos pela
necessidades de as partes se deslocarem até essa cidade para prosseguirem
os seus pleitos. Assim, apenas dois anos depois do estabelecimento da
colônia, foi criada a Provincial Court (Corte Provincial),
o primeiro tribunal da América inglesa, integrado por cinco juízes nomeados
pelo governador. Dois deles eram itinerantes, estando obrigados a funcionar
em Philadelphia apenas duas vezes por ano. Essa estrutura foi novamente
alterada em 1722, criando-se um tribunal mais enxuto, composto por um
Chief Justice (Chefe de Justiça) e dois juízes associados, sob
o nome de Supreme Court (Corte Suprema). A jurisdição continuava
sendo mista, podendo tanto ouvir apelações como julgar em primeira instância
os crimes capitais e algumas matérias da área cível.
O Sacrificado Dever de Julgar
Nas colônias inglesas não existia, ao que
parece, a quase divinização da figura do magistrado, procurada por espanhóis
e portugueses nas suas repectivas colônias. Apesar dos esforços centralizadores
da Coroa, Inglaterra progredira na convicção de que o poder não deriva
de Deus e sim de um contrato entre povo e governo. Por outra parte, as
colônias inglesas não eram empreendimentos da Coroa ou de aventureiros
a serviço dela. Os imigrantes eram grupos quase homogêneos de pessoas
que hoje poderíamos chamar de "classe média" e as perseguições já experimentadas
os moviam a criar autoridades à sua própria altura. Os juízes trabalhavam
em condições não apenas modestas mas, às vezes, extremamente precárias.
Durante um julgamento, em Beaver County, virtualmente a totalidade da
população do vilarejo estava presente, alguns deles pendurados "como
morcegos" das vigas do teto. Quando o juiz mandou liberar as vigas,
um homenzarrão resistiu, levando o juiz a ordenar a sua detenção; mas
no vilarejo não havia cadeia e, enquanto o sheriff procurava desocupar
um curral de porcos para cumprir essa função, o desordeiro fugiu.
Mesmo os juízes membros dos tribunais viviam
estreitamente. Até 1772, não recebiam salários, mas honorários pelas causas
que resolviam. Hugh Brackenridge, um dos mais inteligentes, porém um dos
mais excêntricos personagens da antiga corte, foi encontrado fora da cidade,
durante uma forte tormenta, cavalgando nu, sem nada além do seu chapéu
e suas botas. Perguntado sobre as causas desse comportamento, explicou
que, ao perceber a chegada da chuva, despira-se e guardara as roupas sob
a sela porque, tendo apenas um terno, não poderia permitir que a chuva
o estragasse.
Sem casas de estudos nas colônias e sem condições
econômicas para freqüentá-las na Inglaterra, a maioria dos juízes de paz
e boa parte dos magistrados de maior alçada careciam de formação em leis.
Os advogados eram escassos porque a pobreza da população e a precariedade
da estrutura judiciária desestimulavam a imigração dos profissionais ingleses.
Alguns juízes aprendiam o trabalho na prática e até que não se saíam muito
mal. Os que podiam, viajavam a Londres para concorrer aos Inns of
Court (sociedades voluntárias para hospedagem e treinamento dos
estudantes de leis), onde aproveitavam para assistir aos julgamentos e
tomar anotações que seriam invocadas como jurisprudência em futuros pleitos.
Em alguns casos, essas anotações eram impressas. Os que não tinham condições
de viajar, procuravam empregar-se como secretários ou escreventes para
aprender o ofício.
Fora as anotações pessoais, eram poucas as
fontes de jurisprudência, mas existia uma razoável bibliografia sobre
princípios gerais de Direito e legislação, embora normalmente dispersa,
em mãos de particulares, incluindo autores como Swinburne, Wood, Hawkins,
Tremaine e o Law Dictionary de Jacobs. Uma das obras de
maior influência era Commentaries on the Law of England,
de William Blackstone, que chegou a vender perto de mil exemplares da
edição inglesa e foi reimpressa em Philadelphia, em 1771, numa edição
especial de 1.400 exemplares. Jurisprudência própria não houve até 1790,
ano em que Alexander Dallas publicou Reports of Cases Ruled and
Adjudicated in the Courts of Pennsylvania. Apesar da vida modesta
dos magistrados, alguns deles chegavam a constituir importantes acervos
particulares. James Logan, Chief Justice de 1731 a 1739, faleceu
em 1751, deixando à Philadelphia Library uma coleção de três mil volumes.
Durante os primeiros anos, os julgamentos
eram feitos em casas particulares. Em 1705, foi construída uma casa de
dois andares, que seria compartilhada com as autoridades municipais até
a construção da sua sede própria. O prédio conhecido como Independence
Hall foi construído em 1743. Ali foi declarada a independência
dos Estados Unidos de América. A Supreme Court, no entanto,
continuou a funcionar nesse prédio até 1790.

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