Conquista do Perú.
Conquista do Perú.
(Detalhe de um mapa da época)
  Memória
da Justiça Brasileira - 2
Capítulo 4

Governo e Justiça
nas Colônias Espanholas

Antes de entrar definitivamente no assunto específico deste volume - ou seja, na consolidação do domínio português no Brasil -, seja-nos permitido, embora já tenha sido feita uma rápida referência, considerar mais detalhadamente as estruturas de governo e justiça das vizinhas colônias espanholas.

Faz-se necessária esta digressão em virtude do estreito relacionamento que essas colônias mantiveram com as portuguesas. Não fosse a origem comum e a proximidade geográfica entre as nações dominadoras, ainda teríamos a influência direta da monarquia filipina que, além de estabelecer a organização jurídica e criar o primeiro tribunal, mandou recompilar e publicar as ordenações que, mesmo depois da Restauração Portuguesa, constituiriam a lei fundamental durante vários séculos. Por outra parte, as próprias colônias eram próximas entre si. Embora separadas por grandes áreas de selva, não faltavam pontos de contato. Fosse com Quito, através do Amazonas, com as missões jesuíticas, pela ação dos bandeirantes, ou com os portos do Rio de La Plata e do Caribe, os contatos eram mais freqüentes e intensos do que ambas as potências teriam desejado. Apesar das proibições formais, o comércio existia. Grande parte do tráfico de escravos para as colônias espanholas da América do Sul estava em mãos portuguesas e brasileiras e diversos outros gêneros eram comercializados no sentido contrário. O fluxo migratório, por outra parte, não era apenas intenso mas preocupante, posto que estava, em boa medida, constituído por populações rejeitadas ou perseguidas, que cruzavam as fronteiras à procura de melhores condições de vida. Negros fugidos do Brasil alcançavam as mais clementes colônias espanholas e se estabeleciam, chegando, às vezes, a formar bairros ou povoados da sua raça. Se eles, como populações pobres e marginais, constituíam mais um perigo para a ordem pública do que para a integridade do ideário dominante, não acontecia a mesma coisa com os judeus e outros proscritos que, conforme as perseguições, passavam de um lado a outro das fronteiras, comerciando, praticando ofícios e profissões e espalhando doutrinas nem sempre bem aceitas. Este fluxo de idéias seria particularmente importante durante a segunda metade do século XVIII e a primeira do XIX em que, refletindo as transformações iniciadas na França e nos Estados Unidos, a América fervilhava de rebeldias e sonhos autonomistas.

"Adelantados", "Gobernadores" y "Virreyes"

Tal como aconteceria, depois, nas colônias portuguesas, as estruturas iniciais de governo e justiça nas conquistas espanholas estavam intimamente associadas à iniciativa privada. Precisando a Coroa de recursos para sustentar a sua rápida expansão, optava por conceder, a câmbio do esforço bélico dos particulares, uma grande parcela da sua própria soberania sobre as terras a serem conquistadas. Apenas, no caso espanhol, os "adelantados" tinham um caráter mais militar que os capitães donatários de Portugal. Portugal perseguia, essencialmente, a expansão econômica. Os donatários eram, essencialmente, investidores à procura de estabelecimentos produtivos que, por achar-se em terras a incorporar ou recentemente incorporadas, deveriam ser defendidos militarmente. Os adelantados, pelo contrário, eram conquistadores, militares em essência, surgidos como avançada do poder real na luta contra os mouros. As vantagens perseguidas, se econômicas, eram mais derivadas do saque inicial e do posterior governo sobre aqueles que, sim, iriam produzir. A despeito dessas diferentes orientações, adelantados e donatários tinham, na prática, bastante semelhança. Eram comuns a ambos as funções militares, administrativas e políticas. Tal como os donatários portugueses, os adelantados receberam, inicialmente, amplos poderes, inclusive de administração de justiça. Estavam incumbidos de zelar pela ordem pública e podiam revisar sentenças de magistrados inferiores.

Não foi Colombo um adelantado. Pelo menos, não era isso que constava no seu contrato. Nas "capitulaciones" assinadas por Isabel de Castela, eram-lhe concedidos os títulos hereditários de almirante do mar oceano, Virrey, Gobernador e Capitán General das terras que descobrisse. Nessa condição, teria direito à décima parte de todos os ingressos reais produzidos nas terras a descobrir e seria único juiz nas causas relativas ao comércio das mesmas. Ninguém tinha obtido, até então, tão grandes concessões. Durante os primeiros anos, Colombo governou com plenos poderes, mas não demorou a ficar evidente que nem ele era tão bom político quanto navegador, nem os seus governados eram gente pacífica e trabalhadeira. Não faltaram conflitos e, em 1499, o próprio almirante escreveu à Coroa solicitando o envio de um letrado para administrar justiça e a designação de duas pessoas virtuosas que pudessem atuar como um conselho assessor. A resposta foi o envio de Francisco de Bobadilla, Comendador da Ordem de Calatrava, como "Juez Pesquisidor". Longe de apoiar o almirante, Bobadilla investigou e concluiu pela sua culpabilidade, enviando-o, preso, à península e assumindo seu posto como gobernador das Índias.

Todos os protestos de Colombo foram infrutíferos. Apesar do desastroso governo de Bobadilla, que foi apressadamente substituído por Nicolás de Ovando, em 1501, as suas pretensões ao governo que lhe fora concedido nas capitulações não foram atendidas. Também não tiveram aceitação as reclamações do seu filho, Diego, em 1505, apesar de o próprio almirante referendar a sua requisição. Somente depois da sua morte é que Diego, em melhor posição para negociar, por ter casado com María de Toledo, sobrinha do Duque de Alba e prima de Fernando de Aragão, conseguiu a nomeação. No entanto, apesar de Ovando ter o título de Virrey, a Diego Colombo foi concedido, pelo menos inicialmente, apenas o de Gobernador, o que prova que, na época, esses títulos estavam mais associados ao status da pessoa que ao do território a ser governado.

Juízes e Tribunais

Existiam já, nesse momento, autoridades municipais com alçada para julgar em primeira instância. Por outra parte, o território americano começava a ser conhecido e outros governos eram criados. Em 1508, a Coroa esclareceu que as apelações judiciais desses governos deviam ser ainda encaminhadas ao de Santo Domingo, confirmando, assim, uma certa precedência deste, mas por outro lado, foi claramente estabelecido que apenas a Coroa poderia designar juízes de apelação em qualquer lugar das ilhas. Nesse mesmo ano, os procuradores da Coroa em Santo Domingo solicitaram a designação de um juiz de apelações, para evitar as delongas derivadas do envio das demandas até à Espanha. A resposta veio em 1511, indicando que as apelações deveriam ser encaminhadas pelos Alcaldes (juízes municipais) ao gobernador, que deveria elevá-las ao rei ou a quem fosse por ele designado. Com esta finalidade, Fernando de Aragão estabeleceu, em Santo Domingo, o primeiro tribunal em território americano, chamado, à semelhança dos similares na península, de "Audiencia".

A Audiencia de Santo Domingo, regimentada em 15 de outubro de 1511, estava integrada por três juízes com a denominação de "Oidores", sendo os primeiros Marcelo de Villalobos, Juan Ortiz de Matienzo e Lucas Vásquez de Ayllón. A jurisdição inicial, tão indefinida quanto o conhecimento que do novo continente tinha a Coroa espanhola, foi explicitamente ampliada, em 1528, às Américas Central e do Sul. Ainda fora dessa enorme jurisdição, a nova audiencia interveio nas disputas entre Cortés, Velásquez e Garay, envolvendo Cuba, México e Honduras. Também enviou jueces pesquisidores à Venezuela e Peru.

Embora as audiencias peninsulares fossem apenas cortes de justiça, a de Santo Domingo foi investida de funções bem mais amplas, atuando, desde o seu começo, como um corpo consultor e fiscalizador que deveria funcionar estreitamente ligado aos gobernadores e virreyes. Razão fundamental dessa diferença era a enorme distância entre o rei e esses longínquos domínios que, mais ainda pela precariedade das comunicações, ficavam entregues ao arbítrio de governantes de fidelidade não sempre garantida. As instruções entregues a esse primeiro tribunal o autorizavam a conhecer - em primeira instância - nas demandas em que a Coroa fosse parte.

A Audiencia de Santo Domingo não teve presidente durante uma década, ficando intimamente ligada ao gobernador. Em 1520, após uma suspensão de três anos, foi restaurada com cinco membros: quatro oidores e um presidente, obtendo assim uma relativa independência do gobernador. Esse seria, posteriormente, o modelo assumido pelas pequenas audiencias americanas, que por essa estrutura seriam também, às vezes, chamadas de "Presidencias". No entanto, após a volta de Diego Colombo à Espanha, os cargos de presidente e gobernador ou virrey foram unidos e assim permaneceram nas audiencias posteriormente criadas. Simultaneamente, o status da audiencia foi elevado ao de "Cancilleria" (chancelaria) e, em 4 de junho de 1528, foi-lhe outorgado um novo regimento. A condição de chancelaria elevava-a a par dos tribunais superiores, habilitando-a a homologar as suas decisões com o selo real.

A desmesurada jurisdição da primeira audiencia foi progressivamente limitada, na medida em que a ocupação do continente ia criando condições e necessidade para o estabelecimento de outros tribunais, mas, ainda no século XVIII, Santo Domingo conservava autoridade revisional sobre as Antilhas, a Flórida, e a Venezuela. Enfraquecido pela criação da Audiencia de Caracas e também pela perda da Flórida para a Inglaterra e de metade do próprio território dominicano para França, o tribunal decano das Américas foi transferido definitivamente para Havana, em 1797.

A Audiencia de México, primeira em território continental, foi instalada em 1528, com jurisdição original sobre Nueva España (oeste e centro do México), Nueva Galicia (leste do México e suleste dos Estados Unidos), boa parte da América Central e, posteriormente, sobre as Ilhas Filipinas, constituídas em Capitania General em 1583. Essa jurisdição foi parcialmente limitada, em 1538, pela Audiencia de Panamá e, em 1543, pela Audiencia de los Confines, que teve sua sede inicial em Valladolid de Comayagua e foi sucessivamente transferida para Gracias a Dios (Honduras) e Santiago de los Caballeros - hoje La Antigua - (Guatemala). Panamá perdeu várias vezes a continuidade do seu tribunal, chegando até a sediar, transitoriamente, a vizinha Audiencia de los Confines. Pelo lado contrário, a Audiencia de Nueva Galicia foi instalada em 1548 em Compostela e depois transferida para Guadalajara. Tratava-se, nesse caso, de um tribunal inferior, sujeito à revisão por parte da Audiencia de México. Pelo contrário, o tribunal de Panamá foi criado com jurisdição explícita sobre toda a América do Sul, desde Nicaragua até o Estreito de Magalhães. A despeito dessa enorme autoridade, apenas quatro anos depois sucumbiu à reorganização disposta nas Leyes Nuevas ou Ordenanzas de Barcelona, que colocaram a América Central sob a jurisdição da Audiencia de los Confines e a do Sul sob a da Audiencia de Lima, instalada em 1544.

A Audiencia de Lima, inicialmente encarregada de todo o território sulamericano, teve também a sua jurisdição reduzida com a criação das audiencias de Santa Fé de Bogotá (1549), e Charcas (1559), instalada esta última na cidade de La Plata, atual Sucre, capital da Bolívia. Pouco depois, novas audiencias eram instaladas em Quito (1563) e Concepción (Chile - 1565). Como já tinha acontecido com Compostela e Valladolid de Comayagua, Concepción evidenciou-se pobre demais para abrigar um tribunal, que deveria se sustentar com as custas dos processos, sendo a audiencia suspensa em 1573 e definitivamente extinta em 1575, sendo as apelações chilenas novamente encaminhadas à Audiencia de Charcas.

Poucos tribunais foram instalados no século XVII. A conquista estava consolidada e a expansão tornava-se mais vagarosa. A Audiencia de Santiago (1609) veio a substituir, num Chile já mais estável, à corte extinta em Concepción. Em 1661, foi instalada em Buenos Aires, então uma das áreas mais pobres do império, uma audiencia que durou apenas dez anos. Como já acontecera com outros tribunais, essa audiencia fora instalada no intuito de controlar os desmandos que aconteciam em áreas de difícil controle, desta vez, para eliminar o contrabando através desse porto, que constituía um lucrativo negócio para os barcos ingleses e holandeses mas era, também, o único meio de sobrevivência da população espanhola. Logo ficou evidente que, sem essa irregular fonte de renda, nem o próprio tribunal poderia sustentar-se e a aberta oposição dos moradores tornou indispensável a sua abolição.

O tribunal portenho não foi restaurado até 1783, já perto do fim do período colonial. Além de Buenos Aires ter progredido economicamente, a Coroa temia o avanço português sobre as áreas de fronteira e as incursões francesas e inglesas sobre as Malvinas e a Patagônia. Isso levou, em 1776, à criação de um novo Virreinato. Embora Charcas tivesse sido incluída no seu território e o próprio Virrey acumulasse o título de presidente daquela Audiencia, era evidente que deveria ser criado outro tribunal mais próximo do novo centro de decisões. Venezuela, até então dividida em pequenos governos subordinados ora a Santo Domingo, ora a Nueva Granada, foi organizada, em 1777, como Capitania General e, em 1786, ganhou a sua audiencia, instalada em Caracas. A última audiencia espanhola a ser criada na América, seria a de Cuzco, instalada em 1787, pouco depois do sangrento alçamento de Tupac Amaru, com a finalidade de zelar pelos direitos dos indígenas evitando novos focos de rebelião.

"Cabildos", "Alcaldes" e "Regidores"

Cada uma dessas audiencias era, na hierarquia judiciária, o topo de uma pirâmide cuja base estava constituída pelos conselhos comunais, chamados na Espanha de "Ayuntamientos" e na América, mais freqüentemente, de "Cabildos". Eles eram, pelo menos em teoria, as únicas instituições locais relativamente autônomas e representavam, apesar de bastante desvirtuada, a herança da civitas romana, o conceito de ciudad-estado que a Espanha recebera junto com a língua e a civilização latinas. Mesmo após a queda do Império Romano, o municipium continuou oferecendo segurança aos seus moradores, numa Espanha atomizada em pequenos reinos e espremida entre os árabes e os visigodos. Mais ainda, cada município tinha o seu termo, constituindo-se no centro onde confluíam as forças das populações rurais para a defesa da região. Essa consciência de força comum é que deu vida ao espírito comunero imortalizado em Fuenteovejuna.

As conquistas americanas aplicaram essa experiência, procurando sempre o embasamento em um ou mais centros urbanos com o objetivo de consolidar a possessão espanhola em cada novo território anexado. O valor estratégico dessas povoações fica evidente ao analisar o rigor com que as fundações eram regulamentadas. Tudo estava previsto na lei, desde a escolha do local até o traçado das ruas, a divisão dos logradouros e a construção dos edifícios públicos. Por outra parte, mais ainda que na Espanha medieval, na América colonial as cidades eram a residência habitual dos espanhóis. Minas e empreendimentos agrícolas eram explorados por índios e negros, sob o controle de prepostos dos proprietários, que residiam nas cidades. Todo o poder político local concentrava-se no município.

Tradicionalmente, os ayuntamientos espanhóis eram constituídos em forma eletiva, sendo o único exemplo de democracia na Espanha medieval. Esta autonomia foi reconhecida por Carlos I aos cabildos americanos. Em 1523, regulamentou os cargos de Regidores e Alcaldes, os que, a menos que houvesse determinações específicas em contrário, seriam eleitos pelos vizinhos e proprietários do termo, os regidores com mandato de um ano e os alcaldes de dois, não podendo ser reeleitos antes de transcorrido um período similar. O número de regidores variava conforme o tamanho e importância do assentamento, oscilando entre quatro e doze. As populações menores contavam com apenas um alcalde, enquanto as cidades podiam ter dois. No auge do período colonial, as maiores cidades chegaram a possuir Alcaldes de Barrio, destinados a fornecer um controle mais estreito das diversas paróquias.

À semelhança das câmaras brasileiras, os cabildos tinham tanto funções administrativas como judiciais. Cuidavam das obras públicas, do policiamento, da regulamentação dos ofícios e fixação dos preços, da construção e manutenção das cadeias etc. O poder judicial descansava, principalmente, nos alcaldes, que atuavam como juízes de primeira instância. Nas causas cíveis inferiores a 60.000 maravedís, as apelações eram julgadas pelos próprios cabildos, em sessão plenária. Nas restantes, passavam aos gobernadores locais e, se necessário, às audiencias, exceto em Lima e México, onde as apelações eram elevadas diretamente às audiencias respectivas. Com a finalidade de manter uma certa independência, delegava-se nos cabildos a eleição dos alcaldes, mas era-lhes proibido escolher como tal um dos seus membros. As eleições deviam ser confirmadas pela audiencia ou, se ela distasse mais de quinze léguas, pelo gobernador, corregidor ou alcalde mayor. Alguns cabildos, como os de Lima e Potosí, obtiveram da Coroa, mediante pagamento, o privilégio especial de escolher um dos alcaldes dentre os seus. Os alcaldes podiam presidir as sessões nas cidades em que não existisse corregidor, gobernador ou virrey ou quando eles estivessem ausentes, mas não podiam sentar à mesa das sessões na sua presença.

Além de alcaldes e regidores, com o passar do tempo foram criados diversos cargos, tais como os de Alférez Real (arauto ou porta-estandarte do município), Alguacil Mayor, Depositario General, Fiel Ejecutor (inspetor de pesos e medidas, encarregado de garantir o abastecimento e fiscalizar os preços) e Receptor de Penas (encarregado do recolhimento das penas pecuniárias). Outros postos eram os de Síndico ou Procurador General (advogado do cabildo que, em casos especiais, podia até viajar à península para representar seu interesses) o Escribano (tabelião) e os Alcaldes de la Mesta ou de la Hermandad (magistrados de polícia para os distritos rurais). Alguns desses funcionários eram escolhidos dentre os próprios regidores. Outros, mesmo não sendo regidores, sentavam-se entre eles com voz e voto. O Alférez Real ocupava um lugar de honra, recebendo o dobro do salário dos outros regidores e substituindo o alcalde nos casos de ausência ou falecimento.

Os assentamentos de índios tinham também seus cabildos, com até quatro regidores e até dois alcaldes, dependendo das suas dimensões. Esses magistrados compartilhavam a sua jurisdição com as autoridades tradicionais das comunidades indígenas, que em muitos casos foram conservadas e integradas à estrutura de governo e eram eleitas anualmente em presença do Cura Doctrinero e do Corregidor ficando, durante esse mandato, dipensados de tributos e serviços pessoais. Cada Alcalde era auxiliado por um ou dois Alguaciles, também índios, e tinha autoridade para prender indígenas e até castigar infrações menores, tais como o alcoholismo e a ausência dos rituais religiosos obrigatórios, mas o julgamento dos assuntos mais sérios devia ser encaminhado às autoridades espanholas.

Autoridades Provinciais e Regionais

Como já foi mencionado, cada cabildo tinha, além dos limites urbanos, um termo que variava conforme à relativa proximidade com os assentamentos vizinhos. Na Espanha, já densamente povoada, este termo era pouco mais que uma área para plantação e pecuária circundando as cidades, mas as grandes distâncias entre os assentamentos espanhóis na América os termos assumiam dimensões regionais. A jurisdição de Buenos Aires, por exemplo, prolongava-se, através dos pampas, até os limites com Córdoba (483 km.) e Santa Fé (273 km.), envolvendo totalmente as atuais províncias de Buenos Aires e La Pampa. Apesar disso, o próprio virreinato era tão grande que exigia a constituição de autoridades provinciais, necessárias, por outra parte, à centralização do governo. Esses cargos, providos pela Coroa, surgiram, em princípio, como uma extrapolação da própria estrutura dos cabildos, o que se reflete nas designações de Corregidor e Alcalde Mayor, confusamente utilizadas durante o período colonial para determinar funções essencialmente similares. Felipe II parece ter atribuído, nas Ordenanzas para los Nuevos Descubrimientos, Conquistas y Pacificaciones, um nível hierárquico mais elevado ao alcalde mayor, mas essa diferença não parece ter sido respeitada na prática.

Outro cargo que freqüentemente se confunde com aqueles é o de gobernador, embora este último pareça estar mais explicitamente associado a um conceito de região ou província, enquanto os anteriores dependem ainda de localizações urbanas, podendo ser, às vezes, entendidos como autoridades municipais de cidades particularmente importantes. Por outra parte, eram habituais a concessão aos conquistadores do título de gobernador das áreas que conseguissem dominar e a nomeação de gobernadores para áreas de fronteira onde a posição da Coroa precisasse ser consolidada, o que sugere uma assimilação desse cargo com a já mencionada designação de adelantado.

A despeito dessas diferenças, os três cargos obedeciam a regulamentações essencialmente semelhantes. Inicialmente, a designação era feita pelos virreyes, gobernadores, adelantados ou presidentes de audiencias, mas depois passou a ser prerrogativa direta da Coroa podendo aqueles funcionários fazer designações interinas desde que fossem posteriormente ratificadas pelo Consejo de Indias. A designação pela Coroa era, habitualmente, pelo prazo de cinco anos, se o candidato se encontrasse em Europa, ou por três, caso já estivesse morando na América. As designações feitas pelos virreyes tinham menor duração mas podiam, às vezes, ser renovadas se a necessidade subsistisse e a conduta do funcionário fosse condizente.

Rigorosas limitações controlavam a escolha e conduta posterior desses funcionários para garantir a sua isenção e, essencialmente, a sua fidelidade. Diferentemente das autoridades municipais, nenhum indivíduo poderia ocupar tais cargos em local em que residisse habitualmente ou tivesse encomiendas ou propriedades de terras ou minas. Os virreyes, presidentes ou gobernadores não podiam designar para esses cargos familiares seus até o quarto grau nem pessoas que já estivessem ocupando postos importantes na sua administração. Durante o seu mandato, os corregidores e alcaldes mayores estavam proibidos de comerciar, participar em atividades econômicas, receber presentes ou casar sem licença da Coroa.

Os corregidores e alcaldes mayores podiam julgar, em primeira instância, alguns crimes, mas não podiam ouvir apelações dos alcaldes ordinarios (municipais) nem fazer com que os presos a eles submetidos lhes fossem cedidos para julgamento. Era tradicional, na península, que os corregidores fossem letrados. Na América, talvez pelo caráter indómito das populações, foram geralmente preferidos os corregidores "de capa y espada", isto é, com mais virtudes militares do que letras. Nesses casos, era convocado um assessor ou conselheiro legal para ajudá-los nas questões judiciais.

Uma das funções essenciais dos corregidores, aquela que, de fato, transcendia à ordem municipal, projetando-se sobre toda a província posta aos seus cuidados, era a de viajar pelo seu termo, informando-se das condições de justiça e governo, ouvindo queixas e remediando o que fosse preciso, inspecionando postas (abrigos para viajantes), mercados e hospitais e informando de todo o visto e atuado à audiencia correspondente. Particularmente, esta função aproximava o conceito de corregidor dos de corregedor e correição existentes nas colônias portuguesas. No entanto, nas colônias espanholas, essas viagens eram chamadas de "visitas".

Além da justiça municipal e dos mandatários provinciais ou regionais, existiam, na América hispânica, numerosas jurisdições especiais, chamadas de "fueros": do Tesorero Real, do Superintendente del Tesoro, da Casa de la Moneda, do Tribunal de Contabilidad, da Casa de Aduanas etc. Também possuíam tribunais especiais os grêmios, tais como a Mesta (dos criadores), o Protomedicato (dos médicos), o Consulado (dos comerciantes) etc. No México, existiu, a partir de 1710, o Tribunal de la Acordada, presidido por um magistrado, com o título de Juez ou Capitán de la Acordada, secundado por juízes locais, a cujo mando chegaram a atuar até 2.500 homens, na sua maioria, sem pagamento. Tinha como finalidade o combate ao banditismo e se caracterizava pelas ações rápidas e os julgamentos sumários, sendo os condenados executados na forca ou à ponta de flecha, sem direito a apelação. Posteriormente, atendendo parcialmente aos protestos da audiencia pela restauração desse direito, foi instaurado um processo de revisão, também sumário, por parte do virrey, assistido por um conselho especial.

Estrutura e Funcionamento das "Audiencias"

As audiencias, principais órgãos de apelação, estavam constituídas por um número variável de oidores coordenados por um presidente ou - nas principais capitais - pelo virrey ou gobernador, em cujo caso eram chamadas de audiencias pretorianas. A Audiencia de México, constituída originalmente por quatro ouvidores e um presidente, no século XVII contava já com uma câmara cível, integrada por oito ouvidores, e uma criminal, constituída por quatro Alcaldes del Crimen. Existiam também dois Fiscales ou advogados da Coroa - um para as causas cíveis e outro para as criminais -, um Canciller, um Alto Alguacil e um Capellán, além de relatores, escreventes, assistentes dos advogados e um defensor para os pobres. No final do século XVIII, existiam já duas câmaras cíveis, totalizando dez ouvidores, e uma câmara criminal, com cinco alcaldes del crimen. Fora incorporado, também, mais um fiscal, incumbido exclusivamente dos assuntos do tesouro.

De tribunais com funções exclusivamente judicantes, que eram na península, as audiencias cresceram, nas colônias, para desenvolver atividades bem mais complexas, compartilhando as funções dos governantes e mesmo revisando os seus atos. Com freqüência, as sessões eram conduzidas pelo virrey, gobernador ou capitán general, mas a audiencia podia também ouvir queixas contra eles e, nesses casos, as deliberações deviam ser realizadas sem a sua presença. Da mesma maneira, a audiencia podia ouvir queixas sobre procedimentos abusivos dos prelados e magistrados eclesiásticos.

A função essencial das audiencias consistia em revisar as sentenças dos alcaldes ordinários, alcaldes mayores, corregidores, gobernadores e tribunais inferiores. As suas decisões eram inapeláveis em matéria criminal. No cível, cabia apelação ao Consejo de Indias, dentro de um ano da data da sentença, das causas superiores a 10.000 pesos de ouro. As audiencias possuíam jurisdição original, em primeira instância, nos chamados "casos de corte" (feitos criminais acontecidos na cidade onde estava sediada ou a menos de cinco léguas de distância dela) e em todas as causas onde estivesse envolvido o interesse da Coroa. Também era da sua competência exclusiva o julgamento de crimes cometidos por clérigos, disputas entre ordens religiosas e controvérsias sobre dízimas e propriedades eclesiásticas. A proteção dos interesses dos índios era, inicialmente, da sua especial incumbência, estando reservados dois dias por semana para o atendimento das suas queixas e designados advogados para defendê-los sem custo, mas essas atividades foram, posteriormente, delegadas a uma corte especial: o Juzgado de Indios.

Fora as atribuições comuns e específicas da Corte, os ouvidores desenvolviam, eventualmente, outras tarefas, recebendo por elas compensações adicionais. Entre elas as de Comisario General, Subdelegado de la Santa Cruzada (entendia nas controvérsias derivadas do recolhimento desse imposto), Juez Validado (supervisionava a administração de bens de defuntos), Inspector de Flotas y Armadas e Juez de Apelaciones del Consulado.

Mais específica era a obrigação de proceder a visitaciones trienais. Eram atividades de correição em que um ouvidor, designado pelo virrey ou presidente, visitava as diversas áreas da sua jurisdição, investigando as condições econômicas, religiosas e judiciais, o trato dispensado aos naturais, a conduta dos encomenderos e dos magistrados locais etc., descendo a minúcias tais como o estado dos remédios nas farmácias. Durante esse percurso, podia multar ou suspender autoridades menores encontradas em infração, ações que poderiam ser posteriormente revistas pela audiencia, a pedido dos interessados. Na sua volta, esperava-se que apresentasse informes e sugestões para o melhoramento da administração pública na região.

Nos aspectos administrativos e políticos, cada audiencia realizava, sob a coordenação do virrey, gobernador ou presidente, reuniões deliberativas chamadas "acuerdos", chegando a decisões conhecidas como "autos acordados". Desta maneira, as audiencias americanas complementavam não apenas à autoridade dos mandatários como também, no específico das suas jurisdições, ao poder legiferante dos conselhos peninsulares. Além desse poder, exercitava numerosas tarefas administrativas de rotina: administrava as propriedades dos que morriam sem testamento ou longe dos seus herdeiros, supervisionava a inspeção e censura de livros, verificava que as bulas, breves e outras publicações eclesiásticas estivessem devidamente autorizadas pelo Consejo de Indias e revisava os títulos habilitantes dos clérigos e prelados.

Os oidores podiam manter correspondência direta com a Coroa, o que os isentava, até certo ponto, do controle dos virreyes, gobernadores e capitanes generales e os convertia em potenciais supervisores da sua conduta. Inicialmente, as audiencias pretorianas substituíam os virreyes, nos casos de morte ou incapacidade, até a Coroa prover um novo mandatário, mas essa prática cessou com a instituição do "pliego de mortaja", uma carta selada que o virrey recebia, no ato da sua nomeação, entregando-a em depósito ao presidente da audiencia. Esse documento continha o nome da pessoa que deveria fazer a substituição de emergência - obviamente, uma pessoa que estivesse permanentemente próxima da capital do virreinato - e deveria permanecer fechado enquanto a situação de acefalia não acontecesse.

Tal como os virreyes, corregidores e outras autoridades, os membros das audiencias estavam sujeitos a diversas limitações, tendentes a garantir-lhes a independência a respeito dos seus jurisdicionados. Quase todos eram espanhóis peninsulares. Os poucos americanos eram normalmente destinados a audiencias distantes dos seus lugares de origem e residência. Nem eles nem os seus filhos podiam ter atividade econômica ou possuir propriedades na sua jurisdição e não podiam casar, nela, sem licença da Coroa, sendo, nesse caso, transferidos a outra audiencia para evitar o vínculo familiar com seus jurisdicionados. Tal como acontecia com os desembargadores portugueses, as restrições desciam a aspectos aparentemente insignificantes, como a proibição de visitar, ter afilhados ou assistir a bodas e funerais.

Não existia apelação de uma audiencia para outra, exceção feita do curto período inicial em que as decisões tomadas em Guadalajara podiam ser revistas em México. A distinção hierárquica entre as audiencias pretorianas e as subordinadas pode ser feita apenas atendendo às suas atribuições políticas e administrativas. Judicialmente, todas elas eram igualmente soberanas e suas decisões só podiam ser revistas pelo Consejo de Indias.

O "Consejo de Indias"

O Real y Supremo Consejo de Indias era o centro da administração colonial espanhola, exercendo uma autoridade equivalente à dos conselhos de Castilla e de Portugal. Como eles, administrava, em teoria, reinos independentes, posto que não foram oficialmente conquistados por Espanha, ou mesmo por Castela, mas pelos seus reis, conforme as capitulaciones assinadas por Isabel e Colombo. Essa distinção era tão explícita que, pelo menos até a morte de Isabel, os aragoneses estavam proibidos de ir às Índias sem licença real. Esse controle foi aliviado a partir de 1506, ocupando Fernando de Aragão o trono de Castela, mas a equiparação explícita de direitos só viria a acontecer noventa anos depois, na Recopilação de Leyes de las Indias.

O Consejo de Indias foi regulamentado em 1524, embora já existisse informalmente, subordinado, até esse momento, ao Consejo de Castilla. Estava integrado por quatro ou cinco Consejeros - normalmente letrados ou clérigos -, um secretário, um fiscal ou advogado da Coroa, um relator, um encarregado da contabilidade e um porteiro. Em 1528, foi criado o cargo de Gran Canciller, posto apenas honorífico, cujas obrigações eram cumpridas por um representante. Posteriormente, ingressaram um tesoureiro, três contadores, dois advogados auxiliares do fiscal, um advogado e um defensor de pobres, dois relatores, um capelão e outros servidores. Em 1571 foi criado o cargo de Cosmógrafo y Cronista Mayor, expressão do vivo interesse de Felipe II no conhecimento científico da América.

Embora a autoridade última sobre as Índias residisse na pessoa do rei, o Consejo era responsável de mantê-lo informado dos acontecimentos, redigir as leis, propor os funcionários a serem designados etc. Para isso, mantinha constante correspondência com as autoridades residentes nas colônias, exigindo informes pormenorizados, não apenas das ações executadas mas, também, da geografia, população, economia, recursos e necessidades das regiões administradas. Judicialmente, tinha alçada final para as apelações vindas das colônias e julgava, em primeira instância, as causas surgidas na península que tivessem relação com as Índias. Exercia também o poder de censura, devendo ser por ele autorizadas as publicações que tratassem sobre as colônias americanas ou que nelas pretendessem circular. Periodicamente, enviava visitadores para verificar o estado de governo e justiça nas diversas regiões e tomava conhecimento, ao término dos mandatos, das residencias de virreyes, gobernadores e outras autoridades. Inicialmente possuía considerável autoridade na área econômica, mas essas funções foram depois atribuídas ao Consejo de Finanzas e às cortes de auditoria estabelecidas em Lima, México e Bogotá.

Problemas de Governo e Justiça

A organização jurídica e administrativa das colônias, incipiente com Fernando, o Católico, e Carlos I, alcançou a sua madurez durante o reinado de Felipe II, crescendo em integrantes mas diminuindo em eficácia nos períodos posteriores. Com Felipe IV, apesar das guerras e da crise econômica, o Consejo de Indias chegou a ter dezenove conselheiros, vários deles "de capa y espada", e o conjunto dos funcionários triplicava o quadro original de 1524. A administração, nas colônias, estava excessivamente burocratizada, eternizava-se nas decisões e esgotava-se em conflitos por efeito das múltiplas jurisdições concorrentes. Essas concorrências tinham sido estimuladas pela Coroa como um meio de fortalecer o seu controle sobre domínios tão distantes mas acabava, não raro, paralisando a administração e privilegiando o governo dos medíocres. As grandes distâncias favoreciam os maiores abusos e governadores, corregidores e outros enviados da Coroa aproveitavam seus postos para enriquecer, em prejuízo dos seus jurisdicionados.

De todas essas instituições, as mais desvirtuadas eram os cabildos. À época da conquista, a instituição comunal se achava em crise na península. A autonomia e a democracia, que foram baluartes da defesa do território durante a luta contra os mouros, transformaram-se, com o fim da guerra, numa limitação à centralização do poder em mãos da Coroa e as freqüentes desordens na administração dos ayuntamientos foram aproveitadas para justificar uma intervenção crescente da autoridade real. Por outra parte, muitas comunas estavam em franca decadência. O poder, outrora democrático, transformara-se numa instituição corporativa onde os cargos eram comprados e vendidos, herdados ou revezados ciclicamente entre umas poucas famílias. Os reis iniciaram a prática de outorgar esses cargos como recompensa por serviços prestados à Coroa, primeiro, "mientras le placiera al rey", depois, de por vida e, por fim, hereditariamente, conforme cresciam os serviços aos que a Coroa aspirava. Finalmente, Felipe II, colocou os postos à venda. À abdicação de seu pai, recebera o reino virtualmente falido e achou na venda dos cargos públicos uma fonte adicional de renda, começando pelos de escribano e alférez real (1559) e seguindo com os de depositário e receptor de penas (1581) e de alguacil mayor e fiel ejecutor (1591). As instruções impartidas mandavam vender os postos "a los precios pagados usualmente y que parezcan justos" - o que comprova que a venda era já uma prática costumeira - e admitiam, inclusive, a criação de cargos "en la cantidad que pareciera adecuada de acuerdo con la calidad de esos pueblos y el número de vecinos".

É verdade que as ordens ressalvavam que deveria ser considerada a capacidade dos candidatos e, sempre que possível, dada preferência aos colonos originais e seus descendentes mas, ainda admitindo que essas limitações fossem corretamente observadas - o que não iria ser a regra na muito mais permissiva administração dos seus sucessores -, seria impossível controlar as derivações posteriores, posto que a propriedade sobre os cargos adquiridos era hereditária e alienável. Assim, nos últimos séculos da colônia, os cabildos estavam desacreditados e corruptos, excetuando uns poucos em que as próprias comunidades compraram da coroa os cargos, com a finalidade de conservar a elegibilidade, e outros em que a pobreza intrínseca dos termos desestimulava a aquisição por parte de particulares.

Essa situação de decadência persistiu, com poucas variantes, até o fim da dinastia dos Habsburgo. Os Borbons, no entanto, não tinham compromisso algum com as monarquias primitivas, e introduziram na Espanha critérios governamentais mais modernos. Eles acabaram com a distinção entre as propriedades de uma ou outra coroa e com o conceito de consejo como corpo de aconselhamento dos reis, únicos habilitados a julgar e legislar. A condução política passou a residir em ministérios, ficando os consejos subordinados a eles, com funções meramente administrativas. Assim, em 1714 foi criado o Ministerio de Marina e Indias, encarregado do governo das colônias. Esse ministro designava e supervisionava os membros do consejo de Indias, chegando a acumular, com freqüência, a presidência desse órgão. Em 1787, foi designado um segundo ministro de Indias, com atribuições especificamente judiciais, mas, apenas três anos depois, os dois ministérios foram extintos e suas funções distribuídas entre os ministérios de assuntos exteriores, guerra, marinha, justiça e finanças. Progressivamente, a Espanha passava a ser entendida como uma totalidade, organizando-se a administração por áreas de atividade, e não mais por regiões ou reinos.

Nas colônias, a mudança mais notável foi a criação das Intendencias, divisões administrativas dos virreinatos a cargo de Gobernadores Intendentes designados pela Coroa que, por sua vez, indicavam subdelegados - que deveriam ser confirmados pelo virrey - para administrar os partidos em que cada intendencia era subdividida. Essa estrutura, aplicada em Cuba, a partir de 1764 e estendida a todos os virreinatos entre 1782 e 1790, viria substituir os alcaldes mayores, corregidores e gobernadores, embora alguns governadores militares tenham subsistido em territórios de fronteira. Os cabildos, estruturas de governo de caráter mais comunitário, permaneceram, mas a sua autoridade foi bastante diminuída pela considerável influência adquirida pelos subdelegados.

Legislação e Jurisprudência

Como era previsível, a legislação aplicada inicialmente nas colônias americanas foi a que vigorava em Castela, mas não demorou a ficar evidente que o continente apresentava cenários tão diferentes e variados que se tornava necessária uma legislação nova, não apenas para a América, mas para cada uma das suas regiões. Era preciso um conhecimento prévio das condicionantes geográficas e culturais, mais ainda considerando que os índios já tinham as suas próprias leis e os primeiros espanhóis construíram um acervo apreciável de normas consuetudinárias, nem sempre condizentes com a legislação peninsular. José Matienzo, Oidor da Audiencia de Charcas, indicou que era desaconselhável "cambiar abruptamente las costumbres y hacer nuevas leyes y ordenanzas, hasta conocer las condiciones y costumbres de los nativos del país y de los españoles que viven ahí, porque como el país es vasto, las costumbres y los temples difieren". E aconselhava: "Uno debe primero acomodarse a las costumbres de aquellos a quienes uno desea gobernar y proceder amablemente con ellos hasta que, después de haberse ganado su confianza y buena opinión, con la autoridad así asegurada, uno pueda emprender el cambio de las costumbres".

De fato, boa parte da ação das autoridades coloniais estava baseada em leis consuetudinárias ou na generalização de decisões tomadas pela Coroa ou seus magistrados na solução de situações particulares.

Pequenas compilações de ordenanzas foram realizadas entre os séculos XVI e XVII, entre elas as referentes à Casa de Contratación, ao comércio e à navegação. Vasco de Puga, Oidor da Audiencia de México, publicou o Cedulario, uma coleção cronológica das disposições da Coroa que vigoravam dentro da sua jurisdição, mas existia a necessidade de uma compilação mais geral, a que foi encomendada por Felipe II, em 1570, a Juan de Ovando, membro do Conselho da Inquisição, que acabava de realizar uma detalhada inspeção do Consejo de Indias. Ovando informara que esse órgão registrava as disposições à medida em que eram emitidas ou recebidas, em ordem cronológica e sem nenhum tipo de organização por assuntos. Nas audiencias, provavelmente, a situação fosse ainda pior, porque cada uma delas recebia, normalmente, apenas aquelas que se referissem à sua jurisdição. Ovando revisou, aproximadamente, duzentos volumes de livros de registros e elaborou uma catalogação temática dividida em sete volumes, dos quais chegou a terminar apenas um, referente à organização eclesiástica, e parte do segundo, sobre a nova estrutura do Consejo de Indias, que foi aprovada em 1571. A partir desse momento, Ovando foi designado presidente, e delegou a continuação da sua obra a outros conselheiros, que negligenciaram a tarefa e acabaram abandonando o projeto.

Nova tentativa foi feita, a partir de 1582, por Diego de Encinas, escribano do Consejo, que, ao cabo de dez anos, conseguiu publicar uma coleção de quatro volumes, embora em edição muito limitada e deficientemente organizada. A compilação definitiva iniciada em 1624, foi obra de Antonio León Pinelo, ex-advogado da Audiencia de Lima, sob a coordenação de Juan de Solórzano Pereira, que fora Oidor do mesmo tribunal e, depois, membro do Consejo de Indias. O trabalho foi concluído em 1635, mas só viria a ser publicado em 1681, sob o título de Recopilación de Leyes de las Indias. A publicação, integrada por 6.400 leis distribuídas em nove volumes, foi enviada aos virreyes, presidentes e gobernadores e distribuída a todos os cabildos, passando a constituir um instrumento fundamental no governo das colônias. León Pinelo e Solórzano escreveram, ainda, duas obras importantes de jurisprudência, respectivamente: o Tratado das Confirmaciones Reales e a Política Indiana.


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