Pelourinho monumental no Largo do Rocio.
Pelourinho monumental no Largo do Rocio, atual praça Tiradentes.
(Gravura de Jean Baptiste Debret)
  Memória
da Justiça Brasileira - 2
Capítulo 13

Rio:
Ouvidores e Relação

Formando parte, inicialmente, do segundo quinhão outorgado pela Coroa a Martim Afonso de Sousa, a Baía da Guanabara chegou, nesse período, a sediar uma fortificação, mas não teve estabelecimentos permanentes que lhe garantissem uma vida social e econômica duradoura. Isso facilitaria, em 1555, a invasão francesa, liderada por Nicolas Durand de Villegaignon e motivaria, em conseqüência da incapacidade de o donatário recuperar o terreno perdido, a reação militar da Coroa, personificada nas forças a mando do governador Mem de Sá.

Saindo da Bahia, Sá conseguiu expulsar os franceses em 1560, mas essa expulsão não bastava para garantir a segurança de uma área tentadora e muito vulnerável. Era preciso assegurar as pretensões portuguesas - juridicamente fundamentadas no Tratado de Tordesilhas - com uma presença efetiva e permanente que desestimulasse novas tentativas. Isso já tinha sido sugerido por Tomé de Souza - quem chegou até a sugerir a instalação, nessa área, de uma segunda Ouvidoria Geral - e foi concretizado, em 1565, por Estácio de Sá, que, a mando do seu tio e governador, se estabeleceu no Morro do Castelo, fundando a cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro.

Ouvidores Gerais: Capitania e Repartição

Desvinculada, por obra das circunstâncias, do domínio de Souza, a nova cidade passou a ser sede de um governo designado pela Coroa e, como tal, assistido por justiças reais, entre as quais o primeiro Ouvidor Geral, nomeado por Mem de Sá em 9 de março de 1568. Não se pensava, então, na reunião das capitanias vizinhas, submetidas ainda à autoridade quase exclusiva dos seus respectivos donatários.

Essa reunião aconteceu, já iniciado o século XVII, por obra de um outro Souza, Francisco, mencionado no primeiro volume desta série por sua particular alcunha de "Francisco das Manhas". Os assombrosos tesouros encontrados nas colônias espanholas e a demanda crescente provocada pelo mercantilismo em expansão estimulavam a cobiça da Coroa, pronta para acreditar em quem quer que fosse oferecer-lhe a possibilidade de um achado semelhante.

Talvez Sousa, governador do Brasil de 1591 a 1602, tivesse efetivamente recolhido, durante a sua administração, indícios suficientes da existência de ouro e pedras preciosas. Talvez - como o seu apelido sugere - fosse manhoso o suficiente para tirar proveito da credulidade e da ambição dos seus superiores. Talvez, finalmente, ele mesmo estivesse iludido com as fantásticas histórias dos que voltavam dos sertões. O certo é que, com a promessa de descobrir riquezas, obteve o Governo Geral das capitanias do sul - constituídas numa repartição especial, independente do governo da Bahia - e a autoridade exclusiva, em assuntos de minas, sobre todas as capitanias do Brasil.

Condição indispensável para consolidar essa autonomia era obtê-la também no aspecto judicial, e Souza foi, neste ponto, tão ambicioso que chegou a pedir o estabelecimento de um Tribunal de Relação, num momento em que nem o da Bahia funcionava ainda.

Mesmo iludida com a perspectiva de abocanhar enormes riquezas, não era do feitio da Coroa portuguesa outorgar aos seus prepostos tal grau de autonomia. Separada dos seus súditos por um oceano, fazia da desconfiança e vigilância mútua dos seus funcionários o mais eficaz meio de controle. O tribunal requisitado por Francisco de Souza não foi concedido e só depois do estabelecimento da Relação da Bahia foi-lhe outorgada a criação de uma Ouvidoria Geral, com jurisdição nas três capitanias submetidas ao seu governo.

Fora as considerações de ordem geográfica e comunicacional, a desconfiança da Coroa ficava evidente no fato de o Ouvidor Geral do Sul estar submetido à Relação da Bahia, não apenas acolhendo recursos de suas decisões como aceitando lhe fosse tomada, a cada três anos, residência por um desembargador desse Tribunal. Por outra parte, as buscas de Francisco de Souza não obtiveram os resultados esperados, e a primeira reunião das capitanias do sul acabou sem pena nem glória.

A Ouvidoria Geral da Repartição do Sul foi reinstalada em 11 de março de 1669. Tinha jurisdição cível e criminal direta sobre 15 léguas em volta do Rio de Janeiro e indireta, em grau de apelação, sobre as outras capitanias. A sua alçada era de 100 mil-reis, sem apelação nem agravo, devendo, acima desse limite, o recurso ser encaminhado à Relação da Bahia.

Embora as grandes empresas mineradoras continuassem, ainda, no terreno das hipóteses, o regimento incumbia expressamente o Ouvidor Geral de visitar as minas de ouro e verificar que fossem eficazmente exploradas e que os tributos fossem adequadamente recolhidos.

Por fim... as minas

As tão sonhadas minas começavam a concretizar-se. Em 1663, pouco antes do restabelecimento da Ouvidoria Geral, tinham sido descobertas jazidas em Caeté, o que novamente estimulava as mais ambiciosas projeções. Mas o ouro era esquivo. Aflorava aqui e ali, sem que as esperanças de rápido enriquecimento terminassem de concretizar-se. No final do século, com os descobrimentos em Rio de Contas e Itaberaba (1694) e Ouro Preto (1700), o ouro passaria a ser a maior atividade econômica da colônia.

A exploração aurífera brasileira foi essencialmente diferente da acontecida nas colônias espanholas. Nelas, o ouro concentrava-se em profundas minas que, após o saqueio do metal já extraído e purificado pelas populações indígenas dominadas, demandou grandes empreendimentos, dependentes principalmente do capital de uns poucos grandes senhores e da experiência dos índios, que continuaram a explorá-las para proveito dos seus novos amos. Não se registra um grande crescimento da população branca nos distritos mineiros hispano-americanos. A mineração baseava-se no holocausto de grandes contingentes de índios semi-escravizados - apesar das humanitárias declarações em contrário - e servia a poderosos industriais que, à semelhança dos magnatas do açúcar do nordeste brasileiro, administravam verdadeiros feudos, tirando o provento dos seus vultosos investimentos.

Pelo contrário, o ouro brasileiro era esparso e superficial. Uma vez encontrado, não requeria grandes esforços para sua extração, feita, principalmente, pelo processo de lavagem, nos leitos dos rios. Pelas mesmas razões, não provocava a acumulação de grandes fortunas nem marginalizava os empreendedores sem recursos. Também não dependia da propriedade da terra, em geral ainda não devassada nem utilizada em outras atividades econômicas.

Essa facilidade de acesso provocou um verdadeiro êxodo em direção aos territórios mineiros. A economia brasileira estava em crise. A cultura do açúcar, que sucedera, no litoral nordestino, à atividade extrativa do pau brasil, enfrentava a concorrência cada vez mas perigosa das possessões inglesas e holandesas que, com tecnologia mais avançada e critérios mais modernos de administração, derrubavam os preços no mercado internacional. As populações marginalizadas da outrora próspera região açucareira dirigiram-se em massa às áreas de mineração. Outros, que, por falta de capital ou conhecimento, nem tentaram dirigir-se a ela, tomavam coragem diante da aparentemente fácil ascensão social e econômica que o ouro lhes oferecia. Isso se fizera ainda mais claro em Portugal, onde grandes setores pauperizados por sucessivas crises optaram por buscar na América as oportunidades que a sua própria terra lhes negava.

Essas condições derivaram num crescimento demográfico sem precedentes. Durante o século XVIII, a população de origem européia cresceu mais de dez vezes. Portugal chegou a tomar medidas drásticas para limitar a emigração. Estima-se que de 500 a 800 mil pessoas - de um total de dois milhões de habitantes - abandonaram a península nesse período. Os índios, já muito reduzidos em número, não tinham experiência de mineração, e a expansão aurífera demandou grandes contingentes de escravos africanos, o que contribuiu para dinamizar o tráfico e elevar os preços. Essa elevação penalizou, principalmente, à economia açucareira, cuja crise se aprofundou consideravelmente, incrementando mais ainda o êxodo em direção às áreas mineradoras.

Nesse contexto, o deslocamento dos centros de decisão era uma conseqüência lógica. Rapidamente, a região sul passou a concentrar as maiores densidades populacionais e o maior dinamismo econômico. Fosse para melhor atender aos seus habitantes ou para controlar mais de perto a produção e o recolhimento de impostos, era imprescindível a instalação de novas estruturas de governo. Assim, foram criadas as novas capitanias de Minas Gerais (1720), Goiás e Mato Grosso (1749) e, em 1763, a própria sede do Governo Geral foi deslocada de Salvador para o Rio de Janeiro.

Não era alheia a esse deslocamento da capital a mudança das fronteiras, empurradas por sucessivas incursões e assentamentos muito além da linha originalmente definida pelo Tratado de Tordesilhas. As novas fronteiras, legalizadas pelos tratados de Madri e Santo Ildefonso, estendiam-se, principalmente, ao oeste, mas, em termos geopolíticos, muito mais importante era a expansão para o sul, à procura da bacia do Prata.

A cidade do Rio de Janeiro, estrategicamente importante desde a sua origem, vira-se potencializada pela expansão aurífera e pelo avanço das fronteiras. Semi-isolados no interior do continente, os distritos mineiros dependiam dos portos para o embarque do mineral e a recepção das importações, que não se limitavam aos equipamentos de produção, incluindo uma vasta gama de artigos cujo consumo a repentina prosperidade tornara possível. O ouro e, depois, os diamantes, ocupavam todos os esforços, e os insumos mais simples e corriqueiros deviam ser importados. Distantes, as jazidas, de Salvador e rigidamente controlados os deslocamentos para evitar o descaminho do ouro, o porto do Rio de Janeiro concentrava a maior parte desse intenso movimento comercial.

Por outra parte, fora o pólo de atração expansionista constituído por Buenos Aires e pela Colônia do Sacramento, toda a região anexada ao sul - que viria a constituir as novas capitanias de São Pedro (Rio Grande do Sul) e Santa Catarina - adquiriu uma grande importância pela produção de gado bovino, cavalar e, especialmente, muar, único meio apto para o transporte de cargas nas precárias trilhas que sulcavam as áreas de mineração. Este comércio chegou a assumir tal intensidade que, nos períodos de maior produção aurífera, superava as fronteiras mal demarcadas e se espalhava - mais ou menos clandestinamente - pelas províncias de Buenos Aires, Corrientes e Entre Rios, já nitidamente situadas do lado espanhol.

É fácil compreender, a partir destas considerações, que o centro gravitacional da colônia não mais fosse a Bahia e sim algum ponto mais ao sul, capaz de cuidar de perto dessas regiões novas e dinâmicas que assumiam a liderança histórica da mais rica possessão portuguesa.

A segunda Relação

As primeiras tentativas de instalar uma Relação no Rio de Janeiro datam de 1734. Porém, apenas em 1751 uma disposição da Coroa viria definitivamente consolidar a criação do novo tribunal. Conforme uma carta dirigida em 21 de março pelo Secretário de Estado ao Governador da Capitania, a decisão teria sido tomada em 16 de fevereiro desse ano.

O regimento, baseado, em linhas gerais, nos outorgados às Relações já existentes, foi assinado em 13 de outubro de 1751 e o novo tribunal foi instalado em 15 de julho de 1752. Participaram da instalação Matias Coelho de Sousa - que substituía, por ausência, o governador Gomes Freire de Andrada -, João Pereira de Vasconcelos - empossado como o primeiro chanceler -, os desembargadores Agostinho Telles dos Santos Capello e Manoel da Fonseca Brandão - deslocados de suas funções na Relação da Bahia para orientar a instalação e que portaram, com essa finalidade, uma cópia do Livro Dourado daquele tribunal - e os desembargadores Mathias Pinheiro da Silveira Botelho, José Cardoso de Azevedo, Miguel José Vieira Pedro Monteiro Furtado de Mendonça e Inácio da Cunha, enviados da península para integrar a nova Corte.

O preâmbulo do Regimento declarava atender a representações elevadas pelos "Póvos da parte do Sul do Estado do Brasil", aduzindo que "por ficar em tanta distancia a Relação da Bahia, não podem seguir nella as suas Causas, e Requerimentos, sem padecer grandes demoras, despezas e perigos".

A necessidade de uma corte de apelação mais próxima era tal que "os ditos Póvos se oferecião a manter á sua custa". O Rei mandou estudar a matéria no Conselho Ultramarino, e no Desembargo do Paço, que "se conformarão no mesmo parecer", sendo, da confecção do Regimento, "encarregada a dita Mesa do Desembargo do Paço". Apesar da oferta dos moradores, o Rei declara evitar que "para este effeito sejão gravados com novos impóstos", ordenando que a criação e instalação sejam feitas "por conta da Minha Fazenda, e das despezas da dita Relação", o que, no fundo, não deixa de incluir o pagamento de despesas pelos moradores mas o limita às custas cobradas dos que efetivamente se apresentarem com pleitos perante o tribunal.

Resulta evidente, no texto do regimento, a imobilidade que as estruturas judiciárias padeceram durante todo o período colonial. O art. 9º, do título I, por exemplo, reproduz, quase literalmente, o trecho correspondente dos regimentos da Relação da Bahia (1609 e 1652), indicando que: "Antes de entrarem em despacho, se dirá todos os dias Missa por hum Capellão, que o Governador para isso escolher, e será pago á custa das despezas da Relação, e acabada a Missa, começarão a despachar, em que se demorarão ao menos quatro horas por hum relogio, que estará na Mesa, em que o Governador estiver". Para esclarecer de vez qualquer dúvida que porventura pudesse ocorrer, o regimento determina que "Na casa do despacho haverá as mesmas mesas, a mesma ordem de assentos, e a mesma fórma de ornato que ha na casa da Relação da Cidade do Salvador da Bahia, tomando o Governador, e Ministros os lugares, que lhes competirem, segundo a formalidade observada naquella Relação".

As mesmas formalidades... as mesmas prescrições. Até mesmo a bibliografia parece não ter progredido ao longo de quase um século e meio. Como se nada de novo houvesse no direito mais recente, o regimento de 1751 limita-se a indicar "as Ordenações do Reino, com seus Repertorios", complementadas, apenas, por "hum jogo de Textos de Leis, com as Glossas de Acursio, e outro de Canones; como tambem hum jogo de Bartholos da ultima edição".

Apenas detalhes menores, como a conformação do tribunal, a distribuição das respectivas incumbências e o pessoal de apoio que o alvará determina, diferem ligeiramente dos regimentos anteriores. Já em 1652, razões de economia levaram à extinção dos desembargadores extravagantes, reduzindo a Relação da Bahia a oito membros. Embora uma disposição posterior tenha restaurado a composição original de dez magistrados, a função de extravagante parece haver desaparecido definitivamente. No tribunal sulino, o número inicial volta a ser de dez desembargadores mas, promissoramente, cinco deles são agravistas, o que parece sugerir uma concepção mais dinâmica dos tribunais regionais, privilegiando, na sua conformação, a presença de magistrados experientes e habilitados a resolver expeditivamente.

Dentro do mesmo título, o art. 10 delimita a jurisdição do novo tribunal, abrangendo "todo o territorio, que fica ao Sul do Estado do Brasil, em que se comprehendem treze Comarcas a saber, Rio de Janeiro, S. Paulo, Ouro preto, Rio da mortes, Sabará, Rio das Velhas, Serro do Frio, Cuyabá, Guyazes, Pernaguá, Espirito Santo, Itacazes, e Ilha de Santa Catharina, incluindo todas as Judicaturas, Ouvidorias, e Capitanias, que se houverem creado, ou de novo se crearem no referido ambito, que Hei por bem separar inteiramente do districto, e jurisdicção da Relação da Bahia".

"O despacho" - sempre conforme o alvará de regimento - seria feito "na casa que tenho ordenado", ou seja, na antiga Casa da Câmara e Cadeia da cidade, sita à Rua da Prainha, que seria reformada no que a nova utilização tornasse necessário. O próprio regimento mandava verificar "se a cadeia da dita Cidade de São Sebastião he forte, e segura para que os prezos estejão nella a bom recado, porque sendo de outra sorte, se ordenará outra cadeia com a extensão, accommodado, e instrumentos que convém". A cadeia foi, efetivamente, reavaliada, e sofreu diversas adaptações, mas continuou localizada no mesmo prédio, que foi também acrescido de uma capela, consagrada ao Espírito Santo, imprescindível à realização das missas que o regimento determinava.

Embora não estivesse presente à sua instalação, o governador Gomes Freire de Andrada, conde de Bobadela, presidiu, como regedor, os doze primeiros anos da Relação, totalizando, somadas as atividades anteriores, quase trinta anos de governo, num dos períodos mais dinâmicos pelos quais a cidade haja passado. Falecido em 1763, foi substituído por uma junta integrada, entre outros, pelo chanceler João Alberto de Castelo Branco, que governou a Repartição do Sul de 2 de janeiro a 19 de outubro desse ano.

O novo regedor, Antonio Alvares da Cunha, foi, também, o primeiro vice-rei do Brasil estabelecido no Rio de Janeiro. Artífice final da transferência da capital, governou durante apenas quatro anos, mas realizou uma obra fecunda, reconstruindo adequadamente os edifícios públicos - entre eles a Relação e a Cadeia -. O Palácio da Relação subsistiu durante o século XIX, chegando a ser ocupado pelo Senado do Império e sendo, posteriormente, demolido para possibilitar a construção do Palácio Tiradentes.




Capítulo Anterior próximo capítulo