Altos de Coimbra, vendo-se a igreja da Sé e os prédios da Universidade.
(Detalhe de uma planta do século XVII.) |
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Memória
da Justiça Brasileira - 2 |
Capítulo 12
Os Filhos de Coimbra
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Durante todo o período colonial, a justiça
portuguesa manteve, apesar das grandes diferenças regionais e do caráter
disperso da legislação, uma surpreendente uniformidade. Dois fatores principais
explicam essa coerência: O primeiro, as Ordenações, que,
apesar da copiosa legislação extravagante, proporcionavam ao reino uma
base constitucional única. O segundo, Coimbra, berço de todos os magistrados
portugueses. Os candidatos podiam ser originários do Brasil, da África,
da Índia, mas possuíam, em todos os casos, uma experiência em comum: os
anos passados em Coimbra.
Coimbra não era, apenas, uma casa de estudos.
Para os seus formandos era, geralmente, a primeira experiência de administração
e governo. Afastados das suas famílias, mergulhados num ambiente que,
embora fosse a referência em que todas as colônias se espelhavam, não
deixava de parecer estranho à sua experiência habitual, os estudantes
optavam por formar associações para a mútua proteção e chegavam, através
delas, a participar do governo da Universidade. Não era infreqüente, ainda,
terem ativa participação na política geral do reino, do que temos expressiva
amostra nos convulsionados primeiros anos da Restauração.
Bolonha: Mãe das Universidades
Essas características da Universidade estavam
enraizadas nas próprias origens da instituição. A primeira universidade,
fundada em Bolonha entre os séculos XI e XII, consistia num conjunto de
escolas relativamente autônomas. Cada escola constituía uma societas,
onde os alunos - socii - eram chefiados por um mestre: o dominus,
pago diretamente pelos alunos numa operação chamada collectæ.
Essa estrutura surgira como uma forma de mútua
proteção. As oportunidades de estudo eram escassas. Paris, Pisa e Ravena
viraram pólos de atração para estudantes de Direito, que se reuniam espontaneamente
em volta de um doctor legis e providenciavam os meios para o próprio
sustento e o do improvisado professor. Em Bolonha, sabe-se da existência
de escolas de direito desde 1067. Já existia, na época, uma escola episcopal
de artes liberais e, a partir de 1088, várias novas disciplinas foram
acrescentadas tendendo, pela primeira vez, à universalidade do conhecimento.
A nova universidade foi reconhecida pela Coroa
entre os anos 1111 e 1115, mas a cidade - a pesar de beneficiar-se economicamente
com a afluência desses estudantes - não estava totalmente disposta a reconhecer
seus direitos. Potencialmente turbulentos e, em geral, estrangeiros -
não apenas do ponto de vista atual mas, principalmente, na visão da época,
que, com freqüência, assemelhava os municípios aos conceitos de estado
e nação -, os estudantes não eram bem-vindos a uma sociedade bastante
fechada que, se aceitava a sua presença, era apenas visando a possibilidade
de uma exploração indiscriminada.
Enquanto os estudantes das artes liberais
contavam com a proteção do clero, os restantes não tinham outra defesa
exceto a sua própria união. Assim surgiram agrupações regionais, chamadas
de "nações", identificadas pelos locais de origem, que zelavam
pela defesa dos seus membros, e cuidavam de facilitar o acesso à alimentação
e à hospedagem, a preços razoáveis. "Esta nova confraria -diz a
ata de compromisso da nação alemã - fomenta a mútua caridade, a consolação
dos estudantes enfermos e a ajuda aos necessitados. Compromete-se a tomar
parte em seus enterros, a fomentar a extirpação dos rancores e contendas
e acompanhar nosso doutorandos ao lugar do exame. Outrossim, se compromete
a festejá-los depois da promoção".
Essas agrupações mantinham colégios
ou domus, que não eram outra coisa que albergues para estudantes
pobres vindos de fora da cidade. Por razões facilmente compreensíveis,
essas instituições beneficentes contavam quase sempre com a proteção da
autoridade eclesiástica e não apenas proporcionavam abrigo e alimento
mas também ajuda em dinheiro. O colégio de Avignon, fundado em Bolonha,
em 1256, para auxiliar os estudantes dessa origem, distribuía a cada estudante
24 libras bolonhesas anuais, podendo o beneficiado contar com essa ajuda
durante um máximo de cinco anos. Existiam também domus sem distinção
de nacionalidade, como o fundado por Guilherme de Brescia, arcediago de
Bolonha, que admitia estudantes pobres de qualquer origem.
As nações e outras associações estudantis
intervinham, também, na escolha, contratação e pagamento dos professores,
chegando, em caso de conflitos internos, a gerar secessões que originavam
novos assentamentos estudantis, como aconteceu em 1222 com a Universidade
de Pádua.
Mas os conflitos entre as escolas e o município
adquiriram tal intensidade que os estudantes, inspirados pelas imunidades
dos seus colegas da escola episcopal, resolveram apelar ao imperador Frederico
Barba Ruiva, que lhes outorgou, em 1158, as primeiras imunidades e privilégios.
A Universidade obteve, assim, um direito de jurisdição interna que a subtraía
à jurisdição civil da Comuna, e isentava os estudantes dos impostos, contribuições
e serviços que gravitavam sobre os demais cidadãos. Esses privilégios
seriam incorporados ao Corpus Juris Civilis e estendidos
a todas as universidades italianas, passando a constituir um modelo para
os outros países.
Embora boa parte dos seus membros fossem religiosos,
a Universidade não mantinha, ainda, conexão formal com a Igreja e se concentrava,
originalmente, no estudo do Direito Civil. No entanto, a importância do
Direito Canônico crescia juntamente com a fama da Universidade. Entre
os anos 1141 e 1150, Graciano, camáldulo do Mosteiro de São Félix de Bolonha,
elaborou o seu célebre Decreto, incorporando ao direito
eclesiástico a metodologia, oriunda do romano, que era normalmente aplicada
ao estudo do Direito Civil. Era, inicialmente, uma coleção particular,
mas iniciou um movimento de estudos que iria conduzir a outras compilações.
Uma delas - a terceira pela ordem cronológica - foi enviada a Bolonha
por Inocêncio III, em 1210. Outra - a quinta - foi enviada por Honório
III a Tancredo, jurista da mesma Universidade. Implicitamente, os papas
davam às compilações valor de leis e à Universidade o papel de difundi-las.
Esse interesse crescente motivou uma intervenção direta dos papas nos
assuntos internos da Universidade. Desde Alexandre III, foram estreitas
as relações com as corporações de estudantes e, em 1219, Honório III atribuiu
ao arcediago a concessão da licentia docendi, desvinculando essa
prerrogativa do município, que tendia a controlá-la.
Imersa nesse triplo jogo de poder, a Universidade
de Bolonha constituía, essencialmente, uma corporação estudantil e era
presidida por um parlamento, formado por um ou dois conselheiros eleitos
por cada nação, os que, por sua vez, elegiam o rector societatum,
autoridade máxima da instituição. Dessa maneira a Universitas Scholarium
participava do seu próprio governo. Como requisitos mínimos, o reitor
devia ser clérigo, com idade não inferior aos 24 anos, cursar o quinto
ano de leis e usar hábito talar. O parlamento estava dividido em dois
grupos: os citramontani - que hoje poderiam ser chamados, simplesmente,
de italianos - e os ultramontani, originários dos países além da
barreira natural constituída pelos Alpes. Junto a essas associações maiores,
proliferavam grupos menos poderosos, chamados de societatus scholarum,
que imitavam, em menor escala, a organização das corporações principais.
Origens da Universidade de Coimbra
A exemplo de Bolonha, outras universidades
começaram a surgir em Parma (1165), Módena (1175), Pádua (1222) e Paris
(1256). Em Portugal, no entanto, a cultura era precária. Mesmo entre o
clero - a classe menos ignorante - era comum encontrar presbíteros, cônegos
ou párocos completamente analfabetos. Não existia uma língua claramente
estabelecida. Os documentos oficiais eram uma mistura de palavras anarquicamente
reproduzidas de línguas diversas e a ortografia era, praticamente, inexistente.
Espremido entre os leoneses e os mouros, D. Afonso Henriques não tinha
muitas oportunidades para pensar em cultura. Através de séculos, a península
estivera fanaticamente dividida entre os muçulmanos - eles, sim, cultos,
porém inimigos políticos e religiosos - e uma profusão de reinos e feudos
cristãos, mais preocupados na guerra contra os infiéis e em seus próprios
conflitos internos que no estabelecimento de uma classe dirigente esclarecida.
Uma reviravolta nessa situação ocorreu quando
o papa Inocêncio III pôs término à anarquia que imperava no reinado de
D. Sancho II. D. Afonso, seu irmão e sucessor forçado, era homem esclarecido.
Durante muito tempo morara na França, onde casara com a condessa de Bolonha.
Antes de deixar Paris, jurou "dar a cada um o seu, sem haver respeito
a grandes ou pequenos, pobres ou ricos" e respeitar os direitos e
privilégios concedidos ao clero, nobreza e povo. Estava implícito, nessas
promessas, o controle dos abusos da nobreza, que extrapolara, durante
o reinado de D. Sancho, a sua participação no poder, tradicionalmente
limitada desde os tempos de D. Afonso Henriques.
Essa intromissão provocou uma guerra civil
e exigiu esforços não apenas militares mas, principalmente, políticos.
As cortes reassumiram a sua importância primitiva, a chancelaria real
foi reativada, a atividade correcional foi reorganizada e as inquirições
percorreram todo o país. A necessidade de um governo forte supunha a de
uma burocracia organizada e coesa. O novo rei cercou-se de homens ilustrados,
alguns deles transportados da França para disseminar a cultura em Portugal.
A educação do príncipe herdeiro, D. Dinis, foi encomendada aos homens
mais cultos do seu tempo. A austera vida feudal transformou-se, florescendo
a poesia cortesã. O velho romance latino foi proscrito e a língua nacional
passou a ser utilizada claramente nos documentos públicos.
Esse florescimento cultural criou o clima
necessário para o nascimento da primeira universidade, inicialmente sediada
em Lisboa. Até então, os poucos portugueses que alcançavam estudos superiores
o faziam na França ou na Itália. Em 12 de novembro de 1288, D. Dinis reuniu,
em Montemór-o-Novo, vários prelados que aceitaram solicitar a vênia do
papa. Já então, os mosteiros destinavam boa parte dos seus recursos ao
custeio da educação superior dos seus melhores alunos. Alcobaça, Santa
Cruz de Coimbra, São Vicente de Lisboa e Santa Maria de Guimarães assumiram
o compromisso de destinar essa verba à manutenção de uma universidade
local.
O indulto apostólico foi concedido a 12 de
agosto de 1290, pela bula de confirmação De statu Portugaliæ.
Criada por Nicolau IV como "pontifícia", a Universidade receberia
do papa a garantia das imunidades e da Igreja o seu sustento, aceitando
apenas honorificamente a proteção dos reis. Contaria com mestres de decretais,
leis e medicina, além de professores de dialética e gramática. O ensino
de teologia ficaria a cargo dos religiosos de São Domingos e São Francisco.
Em 1308, confirmada pelo papa Clemente V, foi transferida para Coimbra,
talvez para resolver as pendências surgidas entre os estudantes e a população
de Lisboa. Em 1309 recebeu os primeiros estatutos que, à semelhança das
universidades francesas e italianas, lhe garantiam privilégios extraordinários.
Em 1338 foi novamente transferida a Lisboa, para retornar a Coimbra em
1354. Em 1375, ao tempo que, mais uma vez, a Universidade era transferida
para Lisboa, D. Fernando I obteve do papa Gregório II a bula que autorizava
a conferir graus de bacharel, licenciado e doutor.
Grande benfeitor da Universidade foi o infante
D. Henrique, o Navegador, que doou casas para o estabelecimento de cursos
de geometria e astronomia. Ainda em Lisboa, a Universidade recebeu novos
estatutos durante os reinados de D. José I e D. Manuel I, que lhe cedeu
os cômodos restaurados do antigo palácio real e mandou concentrar nela
o ensino de teologia, até então ministrado nos conventos. A Universidade
foi definitivamente assentada em Coimbra em 1537, durante o reinado de
D. João III. Esse rei foi responsável pela internacionalização da Universidade,
contratando ilustres professores estrangeiros e enviando os estudantes
mais brilhantes aperfeiçoarem-se nas universidades de Paris, Bolonha,
Oxford e Salamanca.
Inseparável do progresso da Universidade era
o da jurisprudência, visível na obra de João das Regras, provável discípulo
de Bartholdo, em Bolonha, e grande artífice da coroação de D. João I.
Ele foi o impulsionador do trabalho de compilação das ordenações que,
por terem sido terminadas e publicadas durante o reinado de D. Afonso
V, passariam à história como Ordenações Afonsinas.
Não se conservam obras teóricas desses juristas.
Tudo o que resta é a legislação que elaboraram e compilaram. A falta dessas
obras poderia dever-se à urgência de sistematizar as normas necessárias
à consolidação do poder real, mas, analisada no seu contexto, não deixa
de evidenciar uma excessiva fidelidade aos glosadores clásicos, de cujas
interpretações ninguém se atrevia a duvidar. Essa situação intelectualmente
servil subsistiu até o século XVI, em que o progresso das letras possibilitou
uma abordagem mais crítica. A tendência renovadora parece ter sido estimulada,
externamente, pela obra de António de Gouvêa, jurisconsulto português
formado e atuante nas Universidades da França e Sabóia, mas não tardou
em interessar outros juristas, que aderiram à escola cujaciana
e participaram ativamente na reforma da Universidade de Coimbra.
Mesmo assim, a Universidade não se preocupava
demasiadamente com as leis portuguesas. Importava mais ensinar os princípios
gerais, derivados principalmente do direito romano, os que eram lidos
e interpretados, ora à luz dos glosadores, ora à da crítica mais recente,
mas sempre tidos como valores potencialmente universais. As leis e ordenações
eram consideradas apenas como direito aplicativo, resultante dos princípios
gerais e incapaz de gerar conhecimento novo.
Esse desinteresse pelo estudo da legislação
existente levou os juristas ao desprezo do abundante direito consuetudinário
contido nos forais, que garantia os privilégios da nobreza e os direitos
dos conselhos municipais - única expressão orgânica dos setores populares
- e definia o equilíbrio de poder que caracterizou o Portugal dos primeiros
séculos. Direito civil e direito canônico partiam, respectivamente, dos
poderes absolutos do rei e do papa, formas modernas do direito imperial
romano, e não foram alheios à consolidação das monarquias absolutistas
do século XVIII.
Apesar disso, não era infreqüente que, em
épocas de crise, os juristas se colocassem contra a autoridade dos reis
e preconizassem a sua substituição, invocando os direitos do povo. Assim
aconteceu com as sublevações que levaram ao trono a D. João I e D. João
IV, iniciando, respectivamente, as dinastias de Avis e Bragança. É, também,
altamente significativo que Pombal, principal impulsionador do absolutismo
de D. José I, entrasse em conflito com os jesuítas, que controlavam as
universidades, o que levaria à reforma de Coimbra e à extinção de Évora.
Coimbra e a Aclamação de D. João IV
A notícia da Restauração chegou a Coimbra
através de uma carta dos governadores do Reino, informando que D. Filipe
III tinha sido deposto e D. João de Bragança convidado a aceitar a Coroa.
Os governadores pediam ao reitor - o que, aliás, indica a importância
que a Universidade tinha em Coimbra - "que nessa Cidade fação o mesmo
apellidando ao Duque por Rey [...] procedendo com toda quietação
particularm.te nos estudantes".
Imediatamente, o reitor reuniu, em Claustro
Pleno, os lentes, deputados e conselheiros e, para dar mais brilho, convidou
a nobreza das escolas e os reitores dos colégios. Leu o aviso que recebera
e "levantado em pé discuberto, disse em voz alta por tres vezes: Viva
Elrey nosso Senhor Dõ Ioão Quarto", saudação que foi coreada pela
assembléia, declarando-se, a seguir, demitido da sua função por dever
a sua nomeação ao monarca deposto "a que todo o Claustro respondeo
em alta voz que em nome Delrey nosso Senhor Dom Ioão o Quarto o esstivesse
servindo, e elle o aceitou no dito nome, em quanto não viesse ordem sua".
Fora a propaganda desenvolvida por seus principais
professores, os estudantes - que, através dos séculos, parecem cumprir
recorrentemente esse papel - se engajaram ativamente na euforia revolucionária.
A crônica indica que "arrebatados de um grande ardor, deixadas as capas,
começaram com grande estrondo de vozes a dizer: Viva El-rey Dom Ioão o
Quarto nosso Senhor. Viva o famoso Rey, que nos liberta, e com o mesmo
ardor forão pellas ruas, repetindo muitas vezes estes applausos".
Entusiasmado, um vereador, montado a cavalo e carregando a bandeira da
cidade, colocou-se à cabeça dos estudantes gritando: "Real, Real, por
Elrey Dom Ioão o Quarto de Portugal". Seguiram, depois, para a igreja
de S. Jerónimo, onde o reitor, lentes e doutores participavam da festa
de São Nicolau, tradicional comemoração da Universidade. Os estudantes
entraram dando vivas, "respondendo todos Lentes e Doutores Viva Viva,
e tomãdo ramos nas mãos, e o Reytor hua palma, com varias demonstrações
de alegria, o acompanharão até a Capella Real, donde se cantou o Te Deum
Laudamus".
Também o reitor ficou no cargo. A partir do
Claustro Pleno, permaneceu apenas na condição de interino, mas, 18 dias
depois, o próprio rei lhe escreveria, agradecendo o seu apoio e autorizando-o
a continuar "com as obrigações desse cargo como ategora fizestes".
Durante o período filipino, Coimbra recebera novos estatutos, em 1597,
que foram reformados em 1612. D. João IV limitou-se, também, a confirmar
esses estatutos. A difícil situação do reino não encorajava grandes reformas
e, tal como acontecera com as Ordenações, o rei achou mais
vantajoso prolongar a validade da regulamentação existente.
De fato, apesar das festas e jogos que caracterizaram
a aclamação, a situação era de guerra iminente. Em janeiro, as Cortes
de Lisboa aventaram a possibilidade de fechar, por cinco anos, todas as
instituições de ensino, destinando-se os recursos assim poupados ao esforço
militar. Ressalvava-se, apenas, a Universidade de Coimbra, cuja continuidade
parecia imprescindível. Simultaneamente, o próprio rei dirigia-se novamente
ao reitor, ordenando "que a gente dessa Vniversidade se arme e adestre
como conuem". O mesmo reitor foi incumbido do recrutamento de soldados
nas terras da Universidade.
O longo conflito haveria de consumir boa parte
dos recursos humanos e materiais da Universidade. Em dezembro de 1644,
todos os estudantes foram mobilizados para acudir ao socorro de Elvas,
mas a ação não foi concretizada porque os espanhóis levantaram o sítio
e se recolheram a Badajoz. Em outubro de 1645, seiscentos e trinta estudantes
lutaram no Alentejo e foram efusivamente louvados pelo rei. Francisco
Teixeira Bahia, lente de Leis, mereceu uma carta especial pelos seus méritos
na frente de batalha. Paralelamente, a décima dos rendimentos das terras
e coutos sob jurisdição universitária era recolhida pela Coroa e grandes
quantidades de madeira eram extraídas para a construção de navios.
A falta de recursos e a discontinuidade geradas
por esse esforço bélico iriam, evidentemente, comprometer o nível dos
estudos, que, a partir dessa época, caiu sensivelmente. Por outra parte,
os estatutos de 1597/1612 referiam-se, principalmente, a aspectos administrativos,
sem alterar profundamente os padrões de ensino e as ações posteriores,
não inovaram substancialmente nessa situação. Talvez por descaso, talvez
por respeito à auto-gestão que caracterizara tradicionalmente a vida universitária,
os reis não participavam da regulamentação dos aspectos especificamente
docentes. No final do século XVII, o ensino se tornara rotineiro, repetitivo
e sem relação alguma com os avanços intelectuais da sua época.
A Reforma de 1772
Já na primeira metade do século XVIII, a disciplina
caíra tanto que poucos estudantes assistiam às aulas com regularidade.
Descontando-se, dos cento e nove dias letivos, os préstitos, as festas
religiosas e outros feriados acadêmicos, ficavam noventa dias de aulas
efetivamente realizadas. Mesmo assim, a presença dos estudantes costumava
restringir-se aos períodos de matrícula - três vezes por ano -. Quanto
às aulas restantes, a freqüência era atestada pela apresentação das apostilas
ditadas e rubricadas pelo mestre, as que, não raro, eram compradas. Apenas
nos últimos anos do curso havia provas e os assuntos eram, muitas vezes,
conhecidos com antecedência. Assim, alunos que nunca cursaram regularmente
faziam-se preparar para as provas, doutorando-se sem nenhum conhecimento
sólido.
A mais incisiva descrição desses formandos
foi feita na Arte de Furtar: O anônimo crítico social indica
que: "Andam na sua terra, matando cãis, e escrevem, a seu tempo, ao
amigo, que os aprovem lá na matrícula, representando suas figuras ou nomes;
e daqui vêm as sentenças lastimosas que cada dia vemos dar a julgadores,
que não sabem qual é a sua mão direita, mais que para embolsarem espórtulas
e ordenados, como se foram Bartolos e Covas-Rubias". Não surpreende,
então, que seja tão freqüente a menção de desmandos e arbitrariedades
praticados pelos magistrados formados nesse período.
Não deve considerar-se que todas as autoridades
anteriores a Pombal fossem omissas quanto à situação da Universidade.
Francisco Carneiro de Figueroa, lente de Leis e reitor desde 1722, tentou
honestamente moralizar e modernizar a Universidade, mas a deterioração
das estruturas íntimas da instituição era tão grande que não podia ser
resolvida com simples reformas, por muito bem-intencionadas que elas fossem.
Na verdade, a restruturação da Universidade
de Coimbra tornou-se imprescindível quando os jesuítas, principais responsáveis
pela continuidade da cambaleante estrutura acadêmica, foram expulsos de
Portugal. Coimbra era, ainda, a única universidade disciplinarmente completa.
Évora, fundada como Casa Pia pelo Cardeal D. Henrique, em 1551, fora transformada
em universidade por bula de Paulo IV, em 1558, com expressa exclusão dos
cursos de Medicina, Ciências Naturais, Direito Civil e da parte contenciosa
do Direito Canônico. As duas últimas disciplinas foram autorizadas por
D. João V, mas tiveram vida curta. À diferença de Coimbra, Évora era explícita
e exclusivamente jesuítica, e a expulsão da ordem provocaria o seu fechamento
definitivo.
Não era somente nas universidades que os jesuítas
eram indispensáveis. Mesmo sem considerar a sua vasta obra ultramarina,
eles mantinham, apenas no território continental português, vinte e quatro
colégios e dezessete casas de residência. Subitamente ausentes, deixavam,
no ensino português, um vazio que demandaria décadas para ser preenchido.
Mas a reação contra eles se preparava desde várias décadas atrás.
De fato, o ensino público era dominado pelos
jesuítas desde 1555. Esse predomínio era condizente com o espírito laborioso
e missionário que orientava a Companhia e com a sua sólida formação intelectual.
Mas os jesuítas de 1759 não eram mais os mesmos e, muito menos, o mundo
em que agiam. A austeridade que os caracterizara fora, aos poucos, relaxando
com a sedentariedade e as riquezas geradas por suas fabulosas propriedades.
Não que se deva dar crédito absoluto às afirmações interessadas de Pombal
e seus prosélitos mas se faz evidente que a intensa mobilização anti-jesuítica
que agitava vários países não era totalmente infundada. Por outra parte,
o vanguardismo intelectual também cedera à rotina e começavam a temer
o progresso da ciência, que ameaçava à integridade dos dogmas religiosos.
Em 1746, o Colégio das Artes determinou que "nos exames, ou lições,
conclusões públicas ou particulares se não ensine defensão ou opiniões
novas pouco recebidas, ou inúteis para o estudo das Ciências maiores como
são as de Renato Descartes, Gassendo, Newton, e outros, e nomeadamente
qualquer Ciência que defenda os átomos de Epicuro, ou negue as realidades
dos acidentes Eucarísticos ou outras quaisquer conclusões opostas ao sistema
de Aristóteles, o qual nestas escolas se deve seguir".
Contra essas posições se levantavam vozes
como a de Luís António Verney que, no mesmo ano, publicou o Verdadeiro
método de estudar. Verney contava, conforme suas próprias declarações,
com o apoio de D. João V, alegando ter "particular ordem da Corte de
iluminar a nova Nação". Também contavam com apoio de D. João V os
padres da Congregação do Oratório, que receberam dele o Real Hospício
de Nossa Senhora das Necessidades e uma dotação anual de doze mil cruzados
para o ensino de teologia, moral, filosofia, retórica, gramática latina
e das primeiras letras. Ali reuniram boa parte da juventude verdadeiramente
interessada nos estudos e consolidaram, em poucos anos, uma biblioteca
com mais de trinta mil volumes. Mesmo não conseguindo, historicamente,
equiparar a imensa obra da Companhia de Jesus, os oratorianos demonstraram
que a intelectualidade portuguesa não dependia exclusivamente dos jesuítas.
Mesmo assim, quando da expulsão dos jesuítas,
a política educacional do reino não se concentrava nas universidades.
Existia, já, desde os primeiros anos de influência de Pombal, uma ação
em prol da criação de cursos profissionalizantes, condizentes com a visão
política do ministro, que pretendia trocar uma sociedade aristocrática
e estagnada por uma de classe média, baseada na produção e no comércio.
Cada ambiciosa medida de política econômica ia ligada ao ensino dos conhecimentos
necessários à sua execução. Assim, aos estatutos da Junta do Comércio
seguiu-se a criação de um curso de comércio, regimentado em 1752, e a
Junta Administrativa da Companhia Geral da Agricultura das Vinhas do Alto-Douro
foi impulsionadora do curso de náutica da cidade do Porto.
Mas a falta dos jesuítas precipitava a tomada
de consciência sobre uma dura realidade: interrompida a sua obra educacional,
o estado português não contava com as estruturas indispensáveis para atender
à instrução pública. Em 28 de junho de 1759, mesmo antes da sua expulsão
definitiva, foram reorganizados os Estudos Menores, criando-se aulas de
Latim, Grego, Hebraico e Retórica. Em 1761, foi instalado o Colégio Real
dos Nobres, destinado a substituir o Colégio das Artes, proporcionando
instrução militar aos filhos das famílias nobres. Este colégio, que visava
à criação de uma elite fiel e coesa para controlar as perigosas pretensões
das grandes famílias e proporcionar uma base mais estável ao poder absoluto
da Coroa, foi o responsável pela introdução do estudo das ciências modernas
em Portugal.
Em 1768, foi estabelecida a Real Mesa Censória,
inicialmente um órgão de censura, destinado a concentrar sob o controle
da Coroa o policiamento ideológico, até então exercido pelo Santo Ofício,
que, pelo alvará de 4 de junho de 1771, foi incumbido da administração
dos estudos menores em todo o reino e domínios. Esse organismo foi o mentor,
em 1772, do subsídio literário, um imposto destinado a melhorar
as condições do ensino, que iria viabilizar a realização de obras de grande
importância, tanto no território continental quanto nas colônias. No Brasil,
seriam instituídas dezessete aulas de ler e escrever, quinze de gramática
latina, seis de retórica, três de grego e três de filosofia.
A reforma da Universidade começou em 23 de
dezembro de 1770 com a criação da Junta de Providência Literária, integrada
pelo reitor, Francisco de Lemos de Faria Pereira Coutinho, seu irmão,
João Pereira Ramos de Azeredo Coutinho, que já anteriormente tinha realizado
uma reforma menor, restrita aos estudos jurídicos, os doutores José Ricalde
Pereira de Castro, José de Seabra da Silva e Francisco Antônio Marques
Giraldes, e o Bispo de Beja, D. Frei Manuel do Cenáculo, presidente da
Real Mesa Censória. Supervisionavam os trabalhos o próprio Marquês de
Pombal e o Cardeal da Cunha, Inquisidor Geral e Regedor das Justiças.
A primeira medida dos reformadores foi fazer
um diagnóstico da situação da Universidade, que, com o devido tempero
político, deu como resultado o Compendio Historico do Estado da
Universidade de Coimbra no tempo da invasão dos denominados Jesuitas e
dos estragos feitos nas siencias e nos professores e directores que a
regiam pelas maquinações, e publicações dos novos estatutos por elles
fabricados. O rei louvou a Junta pelo "grande e frutuoso disvelo"
com que trabalhara e mandou que lhe fossem remetidos "as Minutas dos
Estatutos, e Cursos Scientificos, para sobre elles determinar o que entender".
Uma rara oportunidade de penetrar no processo
de criação dos novos estatutos nos é dada pelo diário de Frei Manuel.
Ele nos revela que as reuniões eram feitas na própria casa do Marquês
e, em ausência dele, na do Cardeal. Pelo menos a partir da realizada em
27 de fevereiro, tudo quanto "a Junta resolve e se compõe vae logo
para a impressão [...] para que quando acabem as conferencias esteja
tudo estampado". Os assuntos da área jurídica eram derivados "a
João Pereira Ramos para ver pelo que pertence á materia, porque elle é
o compositor, e coordenador", enquanto que "a seu irmão o Reitor
da Universidade se incumbiu coordenar e ajuntar o que pertence a Mathematica,
Philosophia, Theologia e Medicina".
Frei Manuel nos revela também os nomes dos
principais colaboradores: o "Dr. Gualter Wade", o "Dr. Sacchetti"
e o "Dr. Cieira, Prefeito do Collegio dos Nobres", "José Antonio
da Gama" e "Luiz Manoel de Menezes". Não faltam indiscrições,
como os comentários sobre José de Seabra da Silva, que, na opinião do
bispo, "é a alma desse negocio, que faz as trancinhas com elles e com
o Regedor para conduzirem o Marquez, que vae de boa fé, no que um delles
propõe, e os outros se fazem de novas, e confirmam, e assim vão levando
o Marquez como querem". Não eram alheias a essas apreciações as rixas
internas da Junta, da qual o bispo, aparentemente o único membro alheio
à Universidade, se sentia marginalizado.
Sobre os estudos jurídicos, Frei Manuel anota,
em 3 de julho: "Conferiu-se a materia dos Estatutos para os cinco annos
de Direito Canonico e Civil". No dia 10, acrescenta: "tendo-se
feito escolha dos livros para o curso Juridico, era necessario ou mandal-os
vir de fóra, ou fazel-os estampar cá, com toda a diligencia; e porque
de fóra não viriam os necessarios e tardariam, etc., resolveu-se occupar
as imprensas de Coimbra e de Lisboa, distribuindo por todas as Summas,
que se hão de estampar; de sorte que vençam até Outubro o que poderem,
e vão continuando a imprimir, porque sendo preciso usariam da ametade
os estudantes até o Natal, e pelo Natal se lhes daria o resto para se
encadernar então tudo junto".
Em 10 de junho aparecem novas referências
a esse curso. D. Manuel informa que foi lido "o ultimo capitulo do
quinto anno Juridico civil. Falta o 3.º, 4.º e 5.º e o 6.º que é para
ambos os Direitos, e ácerca dos Actos" Acrescenta que "diz Ramos
que brevissimamente se acabam, porque será este trabalho com remissões
ao Direito civil e Theologia que já estão feitos". Na quarta, 8 de
julho, registra que "se começou a ler o que pertence á Philosophia,
Medicina e Mathematica; e se leu o fim do 3.º anno de Canones, que é o
que pertence ao Decreto". Aparentemente, as rixas e/ou irregularidades
não acabaram, porque D. Manuel acusa "que as folhas depois de virem
correctas pelo Marquez para se imprimirem, João Pereira Ramos as faz ir
para sua casa onde faz o que mais lhe parece".
Em 25 de setembro, o vice-reitor da Universidade,
Frei Pedro Tomás Sanches, os lentes e o Claustro foram notificados da
iminente proclamação dos novos estatutos e da suspensão das atividades
acadêmicas, com a advertência de que não deveriam ser abertos juramentos
ou matrículas até nova ordem. Em 28 de agosto, foram aprovados os estatutos
e nomeado visitador o Marquês de Pombal, que recebeu plenos poderes para
conduzir a reforma. Francisco de Lemos, já reitor, foi designado Reformador
da Universidade. Os estatutos foram proclamados no dia seguinte, e Pombal
permaneceu ainda um mês em Coimbra, zelando junto a Lemos pela adequada
implementação da reforma.
As Faculdades Jurídicas continuaram divididas
em dois cursos: Direito Civil (Leis) e Direito Canônico (Cânones), os
dois durando cinco anos.
O curso de Leis incluía duas cadeiras elementares,
uma cadeira subsidiária (História Civil dos Povos e Direitos Romano e
Português), três sintéticas - duas delas de direito civil romano e uma
de direito português - e duas analíticas, ambas de direito civil, romano
e português.
O curso de Cânones integrava uma cadeira elementar
(Instituições de Direito Canônico), uma subsidiária (História da Igreja
Universal e Portuguesa), três sintéticas - uma do Decreto de Graciano
e duas de Decretais - e duas analíticas, ambas de direito canônico.
Comum a ambas as faculdades era a cadeira
de Direito Natural Público Universal e das Gentes, totalizando nove no
curso de Leis e oito no de Cânones.
As reformas e, principalmente, o nível de
exigência da nova estrutura provocaram não pouca oposição por parte dos
estudantes, acostumados a uma vida mais descansada. No primeiro ano, poucos
candidatos se matricularam. Pombal procurava minimizar o problema, vaticinando
que, aos já presentes, "hão de ir accrescendo muitos outros; porque
ainda o mundo não foi privado do Uzo da razão". Um ano depois, o Marquês
já celebrava o "numero de Estudantes, que se tem matriculado, e vão
concorrendo a matricular-se de novo" e acrescentava: "tão grande
numero de Moços applicados, e estudiozos nunca teve em tempo algum a Universidade
de Coimbra".
Bem melhores frutos teria dado a reforma se
continuasse na mesma linha após a queda do Marquês. Francisco de Lemos,
fiel ao ideário reformador, conseguiu permanecer no cargo de reitor até
1779. Foi substituído por D. José Francisco Miguel António de Mendonça,
principal da Igreja Patriarcal de Lisboa, quem, entre as primeiras instruções
da Coroa, recebeu as seguintes: "Tem cauzado gravissimo disprazer a
sua Magestade o saber que alguma parte da Mocidade, que se vai instruir
na Universidade, levada muitas vezes do inconsiderado ardor de querer
saber mais do que deve e he licito que saiba, se applica à Licção voluntaria
de Livros de depravada Doutrina, e perigozos para os animos incautos,
e ainda faltos de instrução; Rezultando desta desordenada e indevida applicação
precipitar-se em desatinos, e absurdos, que os levam a perigar em couzas
contrarias, e repugnantes à Nossa Santa Religião".
Como era de esperar-se, D. José Francisco
fez uma obscura administração, devida mais às instruções recebidas que
à sua própria incapacidade. Mais dinâmica foi a ação de D. Francisco Rafael
de Castro, que o substituiu em 1785, sem, contudo, conseguir restaurar
o ritmo de renovação que fora interrompido. Já encerrando o século, o
pioneiro, D. Francisco de Lemos, retomou a reitoria, mas as invasões francesas
lhe impediram concretizar a obra que certamente pretendia.

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