Chegada do Príncipe Dom João à Igreja do Rosário.
Chegada do Príncipe Dom João à Igreja do Rosário.
(Óleo de Armando Martins Viana)
  Memória
da Justiça Brasileira - 2
Capítulo 14

O Príncipe do Brasil,
no Brasil

Em 29 de novembro de 1807, D. João, Príncipe do Brasil, embarcou para a colônia, que, até o momento, só conhecia pelo seu próprio título honorífico, que - desde a segunda metade do século XVII - a tradição reservava aos herdeiros da Coroa portuguesa.

Herdeiro em virtude do falecimento do primogénito de D José I, D. João vira-se, desde cedo, na responsabilidade de conduzir os destinos do Reino. A sua mãe, D. Maria I, não suportara a perda, em curto período, do pai, do marido e do filho. Falecido D. José em 1788, três anos depois a rainha já dava claros sinais de incapacidade para governar. Submergida num quadro de psiquiastenia com delírios místicos, era evidente, ainda para os limitados conhecimentos da época, que não teria a lucidez necessária para reassumir a coroa.

Mas substituir um rei vivo era coisa muito séria. Durante oito anos, D. João despachou transitoriamente em nome da sua mãe, como se a qualquer momento ela pudesse recuperar-se de sua doença e retomar a condução do Reino. Em 1799, oficialmente declarada a demência da rainha, D. João foi proclamado Príncipe Regente, conservando ainda D. Maria, simbolicamente, o título de rainha. Nessas condições, a rainha louca iria sobreviver ainda por bastante tempo, participando passivamente da fuga e de uma boa parte dos anos de exílio da Corte no Brasil.

As tensões que provocaram a transferência da Corte também não eram novas. Ia para mais de uma década que a paz com a França só se mantinha na base de acordos vergonhosos e da proteção inglesa, que, como já acontecera anteriormente com relação à Espanha dos Felipes, se transformava numa faca de dois gumes, envolvendo Portugal nos conflitos particulares dos seus poderosos parceiros.

Assim, a fuga não parece ter sido tão covarde e precipitada como alguns autores concluíram. Já em 1803, o Conde de Linhares - com o apoio do representante inglês em Lisboa - propunha ao príncipe regente a transferência da Corte para o Brasil. Não era, como poderia pensar-se, um problema de coragem pessoal mas de razões de Estado. Muito mais que uma pessoa, a figura do rei era um elemento aglutinador da nação, o único símbolo universalmente reconhecido, indiscutível e, de certo modo, sagrado.

Apesar das transformações próprias da Idade Moderna, ainda o Estado e o Rei se confundiam. Todos os atos de governo eram tomados em seu nome. As finanças do Reino eram chamadas de "Real Fazenda", ou seja, propriedades do monarca, que graciosamente concedia a quem bem lhe servisse. Ao caráter sagrado que a Igreja emprestara às monarquias durante a Idade Média, agregava-se a concentração absolutista do poder que caracterizara o período iluminista. O patriotismo era entendido como fidelidade ao rei e a traição era chamada de "inconfidência".

Preso o rei espanhol, as suas principais colônias alcançariam a independência. Em muitos casos, os próprios governos revolucionários diriam representar o rei, ainda reconhecendo, simbolicamente, a sua autoridade, mas desconhecendo a dos governos temporários constituídos na península, cuja representatividade consideravam, no máximo, equivalente à dos formados nas colônias.

É verdade que um soberano dinâmico e enérgico, à cabeça das suas tropas, seria também um elemento aglutinante na resistência, mas - ainda sem considerar que não era esse o caso de D. João, cujo espírito contemplativo o predispunha melhor para outro tipo de contendas e que, por outra parte, não era ainda rei e carregava o lastro de uma rainha demente - os tempos não eram mais os da cavalaria. Tornava-se já evidente que, muito além da coragem dos líderes, as guerras eram vencidas pelo poderio militar, em que, mesmo considerando o apoio prestado pelos ingleses, os franceses levavam todas as vantagens. Presos o príncipe regente e a rainha, seriam convertidos em reféns dos invasores, transformando-se num sério obstáculo a qualquer tentativa de reconquista.

Por outra parte, nem a transferência da capital era idéia nova nem se relacionava necessariamente com as contingências da guerra. D. Luiz da Cunha, em 1736, e o Marquês de Pombal, em 1761, propuseram idêntica mudança. E já então o destino escolhido era o Rio de Janeiro.

Não estamos certos de que, ao partir de Lisboa, D. João estivesse a par das propostas de Cunha e Pombal, mas é indubitável que quando, em fins de 1807, Napoleão mandou Junot invadir Portugal, a fuga era já uma opção largamente planejada. Além de transportar um milhar de funcionários e - se considerarmos as críticas mais azedas - outro milhar de "validos", a esquadra inglesa, a serviço de Portugal, carregou não apenas o ouro e outros tesouros físicos como também tesouros espirituais tais como a biblioteca real, que chegou a ocupar boa parte de um andar do Convento do Carmo e acabaria ficando no Brasil. A despeito da pressa e o do temor de Junot - que só por obra da enchente do Zezere não chegou antes da partida e ainda conseguiu ver as últimas velas no horizonte - um inventário completo do carregamento da esquadra pareceria muito mais com uma transferência organizada da capital do Reino que com uma fuga atropelada e dispersa.

Órgãos de Governo e Justiça

Era imprescindível, então, reproduzir o mais fielmente possível as estruturas de governo da antiga capital.

Critica-se a D. João e aos seus conselheiros por não ter modernizado essa estrutura de governo ou por não tê-la adaptado às necessidades brasileiras. Nada mais longe das necessidades do momento. Urgia, antes de mais nada, restaurar a continuidade jurídica, deixar a população perceber que nada havia mudado e que podia confiar na sobrevivência das instituições. Não eram tempos de mudar e sim de conservar. Qualquer mudança seria opinável; poderia expor o partido governante a divisões e enfraquecer mais ainda a já frágil posição da monarquia em exílio. Por outra parte, mesmo que todo o mundo soubesse que D. Maria nunca mais iria sentar no trono, não é função de um regente reformar e sim administrar o que lhe foi encomendado.

É verdade que, passado o período inicial de adaptação e fortalecido em sua autoridade ao falecer sua mãe e ser finalmente coroado, D. João VI poderia ter arriscado em projetos mais audazes mas... por que razão deveria ser precisamente ele, se nenhum dos seus predecessores - mesmo governando em circunstâncias muito mais favoráveis - se lembrara de fazê-lo? Com efeito, desde a Restauração até as Cortes de 1820, o único rei português que ousou modificar as estruturas tradicionais foi D. José I e, mesmo assim, somente por influência de um ministro que carregava influências das cortes absolutistas centro-européias.

Quanto ao segundo questionamento, carece por completo de sentido. Nem D. João conhecia o Brasil nem tinha nenhuma razão para governar para ele. Processava-se a transferência da capital do Reino, e teria sido feita para África, para a Índia ou para qualquer das ilhas se, comparativamente, oferecesse maiores vantagens para essa finalidade. O que estava em jogo era o Reino de Portugal e não a simples colônia que iria servir-lhe temporariamente de sede.

As Primeiras Reformas

Mas não foi pela justiça que começaram as reformas de D. João. Existiam assuntos mais urgentes. O primeiro deles: a abertura dos portos.

É este outro dos feitos que uma perspectiva histórica errada costuma distorcer. Certo é que o Brasil saiu diretamente beneficiado. Certo, também, que esse benefício foi consciente e deliberadamente utilizado pelos recém-chegados para impressionar os brasileiros com a magnanimidade do príncipe. Admitamos, ainda, que realmente tenha existido uma intervenção positiva de Silva Lisboa e outros brasileiros. Nenhuma dessas razões consegue superar o fato evidente de que a abertura dos portos era inevitável.

Valha como prova, inicialmente, o fato de ser a primeira resolução importante tomada por D. João em território brasileiro, apenas quatro dias depois de desembarcar, antes mesmo de chegar à cidade que lhe serviria de destino final e sede da Corte. Medida de alcances econômicos tão sérios e globais seria tomada irrefletidamente, apenas como uma concessão graciosa ao povo brasileiro?

Mas o que não deixa dúvidas é o estudo da situação e dos interesses em jogo. Como poderia o Portugal peninsular, invadido e desorganizado, continuar monopolizando o comércio do Brasil? Como poderia o Brasil, principal fonte de renda da Coroa, continuar produzindo sem ter canais de saída para sua produção? Finalmente, como a Coroa portuguesa poderia, sem portos, cumprir os compromissos contraídos com a Inglaterra, que estava financiando toda essa aventura transatlântica? Resulta evidente, a partir desta análise, que a abertura dos portos brasileiros às "Potencias que se conservão em Paz e Harmonia com a Minha Real Coroa" era, apenas, uma forma polida de legalizar a transferência do comércio português, quase tão exilado quanto a própria Corte.

Similares motivações conduziriam à liberação das indústrias, proibidas no Brasil desde 1785. Essa medida era igualmente inevitável. Nem o comércio nem as indústrias do Reino poderiam continuar baseadas no território peninsular ocupado pela França. A necessidade era tanta que, já de passagem pela Bahia e mesmo antes da liberação geral, D. João autorizara a instalação de uma fábrica de vidros, outra de pólvora e de uma planta de fundição de artilharia. A relação evidente entre a liberação dos portos e a das indústrias permite até supor que estivessem ambas já pensadas, mas fosse a segunda reservada para mostrar à população do Rio de Janeiro um gesto de magnanimidade semelhante ao exibido na Bahia.

Se essas medidas foram efetivamente calculadas para obter apoio popular, de fato esse apoio parece ter assumido feições que não tardariam em colocar o príncipe em posição desconfortável. Não parece que tenha acontecido na Bahia - geralmente, de cunho mais conservador - mas, ao desembarcar no Rio de Janeiro, o príncipe regente de Portugal e Algarve surpreendeu-se ao ser aclamado como "imperador do Brasil".

Mas, por mais honrado que se sentisse, o príncipe não teria a temeridade de ouvir esses cantos de sereia. Já bastante pouco inclinado a assumir as funções de regente, que de modo algum poderia recusar, mal iria querer o aprazível D. João liderar o movimento revolucionário que já fermentava no povo mas teria, ainda, que esperar por seu filho. Por enquanto, o príncipe se dedicaria a reorganizar suas forças e costurar os retalhos do Reino de Portugal, que em tão convulsionadas horas lhe fora encomendado.

Ainda na Bahia, encomendou ao governador a elaboração de um plano integral de fortificação e defesa, autorizando, por enquanto, a fortificação do porto, a construção de 25 barcas canhoneiras, a organização de dois esquadrões de cavalaria e o redimensionamento da infantaria até 1.200 praças. Em outras ordens, autorizou a instalação de aulas de Cirurgia e aprovou os estatutos da primeira companhia de seguros. Não descuidando o lado político, antes de partir, visitou todos os estabelecimentos públicos e distribuiu honrarias a membros da Câmara, magistrados, clero e cidadãos proeminentes da Capitania, mas escusou-se polidamente quando requisitado a permanecer e sediar a capital do Reino em Salvador.

Já no Rio, as festivas recepções foram interrompidas pela destituição dos ministros, suspeitos de traição a partir de um boato espalhado em Lisboa antes da partida. Aparentemente, o príncipe se fez de surdo durante toda a viagem, calou ainda durante a permanência na Bahia e esperou estar seguro em seu destino para controlar a situação, demonstrando uma habilidade política nem sempre reconhecida nele.

O Conselho Militar

Normalizada a situação ministerial, a primeira providência foi a instalação do Conselho Supremo Militar e de Justiça, constituído, em verdade, por dois conselhos relativamente independentes: o Militar, "que se comporá dos Officiaes Generaes do Meu Exercito, e Armada Real, que já são Conselheiros de Guerra, e do Almirantado, e que se achão nesta Capital, e dos outros Officiaes de Huma, e outra Arma, que Eu Houver por bem Nomear, devendo estes ultimos ser Vogaes do mesmo Conselho em todas as materias, que nelle se tratarem", e o de Justiça, que "se comporá dos Conselheiros de Guerra, Conselheiros do Almirantado, e mais Vogaes, e de tres Ministros Togados que Eu Houver de Nomear".

O regimento incumbe o Conselho Supremo Militar de "todos os Negocios, em que em Lisboa entendião os Conselhos de Guerra, do Almirantado, e do Ultramar na parte Militar sómente, e todos os mais, que Eu Houver por bem encarregar-lhe: e poderá o mesmo Conselho consultar-Me tudo quanto julgar conveniente para melhor Economia, e Disciplina do Meu exercito, e Marinha", ficando na área de competência do Conselho de Justiça o "conhecimento, e decisão dos Processos Criminaes que se fórmão aos Reos, que gozão do Foro Militar, e que em virtude das Ordens Regias, se devem remetter ao Conselho de Guerra ainda sem appelação de Parte, ou por meio della."

Mais pormenorizadamente, deveriam ser submetidos ao Conselho de Justiça "todos os Conselhos de Guerra, que se formarem nos Corpos Militares desta Capitanía, e de todas as mais do Brazil, a excepção do Pará, e Maranhão, e dos Dominios Ultramarinos, pela grande distancia e dificuldade da navegação para esta Capital". Também, excepcionalmente, deveria reunir-se "nas quintas feiras, quando para este fim for avisado, e requerido pelo Juiz Relator do mesmo Conselho, para julgar em ultima Instancia da validade das prezas feitas por Embarcações de Guerra da Armada Real, ou por Armadores Portuguezes".

Complemento necessário - no âmbito interno - da instalação desses conselhos era a criação da Intendência Geral de Policia da Corte e do Estado do Brasil, efetivada quatro dias depois. Chefiada provisoriamente por Luiz José de Carvalho e Mello, desembargador do Paço, foi logo provido o cargo de Intendente, sendo nomeado, a 10 de abril de 1808, o conselheiro Paulo Fernandes Vianna, desembargador e ouvidor geral do crime, que permaneceria no cargo até o fim do período colonial.

Ainda dentro do âmbito militar, uma realização de grande transcendência, não apenas pela utilidade imediata como pelas suas derivações científicas e culturais, foi a criação do Arquivo Militar, anexo às repartições de Guerra, Marinha e Fazenda, com a incumbência de conservar toda a documentação cartográfica de Portugal, do Brasil e dos demais domínios ultramarinos. À coleção, trazida na viagem, se agregariam engenheiros e desenhistas que lhe dessem continuidade, iniciando a realização de um manual topográfico e geodésico, plantas de fortificação e defesa, projetos para portos e estradas etc.

Os Tribunais Superiores

Em 22 de abril foram instituídos o Desembargo do Paço e a Mesa da Consciência e Ordens, conjugados num único tribunal sob a denominação de "Meza do Desembargo do Paço, e da Consciencia e Ordens". Não se pretendia substituir os tribunais peninsulares. Pese a, historicamente, sempre terem acompanhado os reis, nas atuais circunstâncias não era prudente nem politicamente aconselhável desativar os assentamentos tradicionais "por serem dos meus Vassallos, que habitão aquellas partes dos Meus Dominios, e que são Ultramarinos respectivamente a este Estado do Brazil".

Era importante conservar, no território invadido, a máxima impressão de continuidade jurídica que fosse possível. Era como dizer "El-Rei está simplesmente a viajar e pode retornar a qualquer momento". Embora alguns dos seus membros já o tivessem acompanhado até o Brasil, D. João preferiu conservar as estruturas de governo que ficaram para atrás e criar novos órgãos para acompanhá-lo na sua nova capital.

Seja por razões de economia de guerra ou por considerar que seriam apenas órgãos temporários, os novos tribunais seriam mais enxutos. O Conselho Militar e de Justiça - como já foi apontado - veio a substituir vários órgãos. Da mesma maneira, o Desembargo do Paço e a Mesa da Consciência, que eram independentes e autônomos, passaram a ser representados por um único tribunal, "composto de hum Presidente, e dos Desembargadores, que Eu Houver por bem Nomear, que entenderão em todos os negocios, que nelle se tratarem" além de "Deputados da Meza da Consciencia e Ordens, que só entenderão nos Negocios della". O funcionamento deveria acontecer pelas manhãs de todos os dias úteis, reservando-se as quartas e sextas-feiras para as matérias próprias da Mesa da Consciência.

Já existiam, nas relações, mesas do Desembargo do Paço, encarregadas de ali despachar certas matérias que formalmente eram de competência dessa instituição. A do Rio tornava-se desnecessária frente à existência do novo tribunal, e foi abolida na mesma hora, conservando-se, entretanto, a da Bahia, "em atenção aos inconvenientes, que podem resultar aos Meus Vassallos habitantes no districto della da demora das viagens, e a que os mais delles exigem brevidade".

Embora o regimento deixe propositadamente indefinido o número e especialidades dos desembargadores, alguns cargos específicos são definidos. Entre eles o de Chanceler Mor do Estado do Brasil, "o qual exercerá a mesma Jurisdicção, que exercia o do Reino", e o de Chanceler das Três Ordens Militares. Também eram criados um cargo de Procurador Geral "para fiscalizar, e promover os negocios, e direitos das Tres Ordens Militares, que como Gram-Mestre, e Perpetuo Administrador Desejo manter, e conservar" e outro de Promotor, incumbido de fiscalizar "a arrecadação da Fazenda dos Defuntos, e Auzentes".

Também, para "conhecer por Appellação das Causas Crimes dos Cavaleiros das ordens Militares", cria-se um cargo de Juiz dos Cavalheiros. Este era um velho problema nunca eficientemente resolvido. Por privilégio, os membros das ordens militares não podiam ser julgados pelos magistrados comuns e nem mesmo se sentiam obrigados a respeitá-los. Para atenuar esta situação, era freqüente se conceder aos chanceleres das Relações a Cruz da Ordem de Cristo, colocando-os, pelo menos, em igualdade formal de honrarias. Mas nunca houve, no Brasil, um Juiz dos Cavalheiros. Em 1801, os Ouvidores Gerais do Crime das Relações do Rio de Janeiro e Bahia foram autorizados para conhecer dessas causas, mas se tratava, ainda, de uma medida emergencial.

A designação do Juiz dos Cavalheiros dava, por fim, uma solução completa e, assim, o próprio regimento se encarrega de deixar sem efeito o alvará de 1801. Entretanto, à diferença do ocorrido com relação às mesas do Desembargo do Paço, das quais a da Bahia foi conservada, neste ponto o regimento é sucinto, e o alvará é derrogado, sem nenhuma ressalva.

A Casa da Suplicação do Brasil

Ainda com mais razão que no caso dos tribunais superiores, não havia nenhuma utilidade em fechar a Casa da Suplicação de Lisboa. Embora este tribunal tivesse acompanhado, tradicionalmente, a pessoa do monarca, havia já séculos que não era presidido por ele, funcionando, em verdade, sob a coordenação de um regedor. De fato, virara uma Corte de Justiça profissionalizada, onde se julgava conforme as leis e que não se diferenciava essencialmente - a não ser nas dimensões e na proximidade com a Coroa - das outras Relações do Reino. Ainda sem levar em conta o seu valor simbólico como expressão da sobrevivência das instituições, fechá-la seria como fechar a Relação do Porto ou a da Bahia. Deixaria uma região da maior importância desprovida do seu tribunal.

Mas também não era aceitável que a cidade onde o rei morava "que deve por isso ser considerada a Minha Corte actual" não contasse com uma Casa da Suplicação. Isso, agregado a que, enquanto durasse a invasão "por estar interrompida a communicação com Portugal, e ser por isto impraticavel seguirem-se os Aggravos ordinarios, e Appellações, que até aqui se interpunhão para a Casa da Supplicação de Lisboa" viriam "a ficar os pleitos sem decisão ultima com manifesto detrimento dos litigantes, e do Público".

Mas uma Casa da Suplicação, no Rio de Janeiro, originaria uma sobreposição de funções com a Relação já existente, razão pela qual se optou, simplesmente, por elevar a hierarquia dessa Relação, complementando-a com os magistrados e serviços auxiliares necessários à sua nova condição.

Assim, o primeiro artigo do regimento, dado em 10 de maio de 1808, dispõe: "A Relação desta Cidade se denominará Casa da Supplicação do Brazil, e será considerada como Superior Tribunal de Justiça; para se findarem ali todos os pleitos em ultima Instancia, por maior que seja o seu valor, sem que das ultimas sentenças proferidas em qualquer das Mezas da sobredita Casa se possa interpor outro recurso, que não seja o das Revistas nos termos restrictos do que se acha disposto nas Minhas Ordenações, Leis, e mais Disposições. E terão os Ministros a mesma alçada que tem os da Casa da Supplicação de Lisboa".

E o artigo segundo acrescenta: "Todos os Aggravos Ordinarios, e de Appellações do Pará, Maranhão, Ilhas dos Açôres, e Madeira, e da Relação da Bahia, que se conservará no estado, em que se acha, e se considerará como immediata á desta Cidade, [...] serão daqui em diante interpostos para o Brazil".

O terceiro - evidentemente uma disposição transitória - determina que todos os pleitos "que se não remetterão; e todos os que sendo remettidos, não tiverão ainda final decisão" deverão ser julgados no Rio de Janeiro "huns pelos proprios autos, e outros pelos traslados, que ficárão".

A nova Casa da Suplicação deveria estar composta "além do Regedor, que Eu houver por bem Nomear, do Chanceller da Casa, de oito Desembargadores dos Aggravos, de hum Corregedor do Crime da Corte e Casa, de hum Juiz dos Feitos da Coroa e Fazenda, de hum Procurador dos Feitos da Coroa e Fazenda, de hum Corregedor do Civel da Corte, de hum Juiz da Chancellaria, de hum Ouvidor do Crime, de hum Promotor da Justiça, e de mais seis Extravagantes". Da mesma forma que nos regimentos das Relações, indica-se que "servirão todos os Ministros de Adjuntos huns dos outros, como for necessario no Despacho do Expediente, e entrarão tambem nas serventias dos Lugares vagos, ou impedidos, quando não hajão para isto Extravagantes por occupados em outras serventias". Era uma medida de economia para impedir o crescimento desmesurado do número de magistrados.

Sempre tomando como modelo a Casa da Suplicação de Lisboa, o regimento introduz a possibilidade da promoção interna dos magistrados, "para serem promovidos aos [lugares] mais distinctos, e graduados, os Ministros, que forem de maior graduação nos Despachos, que já tinhão, e tiverem maior antiguidade, prestimo, e serviços". Essa disposição viria auxiliar a tarefa dos historiadores. A partir dessa data, são freqüentes as elevações de listas - autenticadas pelo chanceler ou regedor - dos magistrados dessa Corte, relacionados por ordem de antigüidade para determinar essa precedência.

O regimento não menciona o local em que o novo órgão iria funcionar. Considerando que não era tão novo assim, pode presumir-se que, pelo menos inicialmente, continuasse ocupando a sede da antiga Relação que, como já foi mencionado, funcionava na que, até 1751, fora Casa da Câmara e Cadeia, à Rua da Prainha. Entretanto, há constâncias de a Casa da Suplicação ter funcionado posteriormente à Rua do Lavradio Nº 42, próximo ao Largo do Rocio (atual Praça Tiradentes).

A Casa da Suplicação do Brasil foi instalada em 30 de julho de 1808, data em que tomaram posse José de Oliveira Pinto Botelho e Mosqueira, como Procurador dos Feitos da Coroa e Fazenda, Luiz José de Carvalho e Mello, como Corregedor do Crime da Corte e Casa, Joaquim d’Amorim Castro, como Ouvidor do Crime, Francisco de Souza Guerra Godinho, Francisco Lopes de Souza de Faria Lemos e Francisco Baptista Rodrigues, como desembargadores agravistas, e Pedro Alvares Diniz, Jacinto Manoel Oliveira, Antonio Ramos da Silva Nogueira, José Albano Fragoso e José Duarte da Silva Negrão Coelho, como desembargadores extravagantes.

Aos poucos, os outros cargos iriam sendo providos. Em 6 de agosto assume o Promotor da Justiça, Des. José Fortunato de Brito Abreu Souza e Meneses; em 13 de setembro, o Juiz dos Feitos da Coroa e Fazenda, Des. Bernardo Teixeira Coutinho Alves de Carvalho. Cedo, começam as substituições: Em 22 de novembro, José de Queiroz Botelho de Almeida e Vasconcellos substitui Amorim Castro como Ouvidor do Crime. Em 26 do mesmo mês, o mesmo acontece com Faria Lemos que, tendo ingressado como agravista, passa a ocupar o cargo de Corregedor do Crime da Corte e Casa, em substituição de Carvalho e Mello. Tal vez a instabilidade geral da situação explique essas novas posses.

Já entrado o ano de 1809, em 11 de abril é provido o cargo de Juiz da Chancelaria, ocupado pelo Des. Manoel Ignacio Pereira Cabral. O de Corregedor do Cível da Corte só aparece em 9 de maio, outorgado a Claudio José Pereira da Costa sob protesto do Promotor da Justiça, que se julga com maior antigüidade para ocupar esse cargo.

Abundam as posses de agravistas e extravagantes. Inicialmente, os três agravistas empossados parecem completar - com os cinco já existentes na Relação do Rio - o número de oito, definido no alvará, mas logo aparecem novos desembargadores, tanto agravistas como extravagantes, ultrapassando bastante o limite definido nesse instrumento. Isso fica mais notório no caso dos extravagantes que, por não terem existido na antiga Corte, constituem um número absoluto que não permite confusão.

Um caso ainda mais complexo envolve o regedor e o chanceler. Acompanhava o rei o regedor da Casa da Suplicação de Lisboa, Des. José de Vasconcellos e Sousa, Conde de Pombeiro, mas não parece levá-lo em conta quando, no regimento, se refere ao regedor "que Eu houver por bem Nomear". Paulo Paranhos - baseado nos almanaques para a cidade do Rio de Janeiro de 1813 e 1817 e em indicação do Des. Vieira Ferreira referente ao ano de 1821 - arrisca a hipótese de Botelho e Mosqueira ter ocupado o cargo de regedor, pelo menos, entre essas datas, o que parece uma conclusão bastante razoável, mas, posteriormente, erra ao escrever: "Conforme o livro de posse dos Desembargadores daquela Casa, o Regedor nomeado era José de Oliveira Pinto Botelho e Mosqueira".

Revisamos cuidadosamente o livro de posses sem encontrar nenhuma referência à suposta nomeação. Antes, por ocasião da instalação do tribunal, o mencionado desembargador toma posse como "Procurador dos Feitos da Coroa e Fazenda" e quando, em 26 de novembro de 1808, jura como Chanceler, o faz com expressa retenção do seu cargo anterior, como a tratar-se, simplesmente, de um interinato numa função superior, sem perda do cargo que efetivamente lhe corresponde.

Por outra parte, na biografia resenhada pelo próprio Paranhos, não se mencionam antecedentes prévios a 1808. Todos os cargos e distinções - inclusive o hábito e a comenda da Ordem de Cristo, que costumavam preceder as designações de chanceleres e regedores para evitar a perda de autoridade frente à nobreza e aos membros das Ordens Militares - são posteriores a essa incumbência oficial. Ora... como se explicaria que um brasileiro, (Botelho era natural de Minas Geraes) sem antecedentes conhecidos, fosse escolhido pelo Príncipe Regente, que acabava de chegar de Lisboa, para presidir a sua máxima Corte de Justiça?

Por outra parte, não apenas não aparece a referida nomeação como não há nenhuma referência ao cargo de Regedor até que, em 7 de agosto de 1821, se registra o termo de posse e juramento de Francisco de Assis Mascarenhas, Marquês de São João da Palma, aliás, destacado o bastante para se pensar que, se não há outro registro como esse, só pode ser porque nunca o houve.

Não parece provável que o Conde de Pombeiro, que já em 1786 era Regedor da Casa da Suplicação, continuasse no cargo até 1821. Talvez, sendo já idoso ou doente, houvesse intenção de conservá-lo, mas não tenha podido tomar posse, o que explicaria a estranha omissão. Botelho e Mosqueira, já substituindo o Chanceler, teria ido ocupando, informalmente, também as funções de Regedor, o que explicaria o registro dos almanaques e a referência de Vieira Ferreira.

Descentralização da Justiça

Pouco durou em Portugal a presença de Junot, mas a situação de beligerância demoraria a ficar definitivamente controlada. Um deslocamento das proporções do efetuado em 1807 não poderia ser repetido a cada avanço ou recuo das tropas francesas e, como já foi mencionado, o Brasil era cogitado como sede da monarquia desde muito tempo antes do perigo napoleônico. Perdido o seu poderio marítimo, dependendo dos ingleses até mesmo para conduzir o rei, Portugal não era, na Europa, senão um país menor, vivendo da intermediação dos produtos das colônias que ainda conseguira conservar.

A mudança de fato, da capital do Reino, colocou em evidência uma nova situação: Territorialmente, o Brasil sobrepujava a qualquer país europeu. Economicamente, apesar da sujeição colonial, já demonstrara uma capacidade de produção igualmente respeitável. Uma coroa baseada nele poderia contar-se entre as grandes potências do mundo. Isso ficou evidente em 1815, quando, pressionado pelas circunstâncias, D. João optou por elevar o Brasil à categoria de Reino e redefinir os seus domínios como "Reino Unido de Portugal, e do Brazil, e Algarves".

Muito além do reconhecimento à população que lhe dera asilo, a medida visava redefinir o jogo do poder entre as grandes potências que deveriam participar do Congresso de Viena, onde se acertaria a paz européia. Como representantes de Portugal e Algarves, os ministros portugueses seriam apenas ouvidos, sem participação nem voto nas discussões gerais. Como ministros do novo Reino Unido, conseguiram sentar-se entre as grandes potências.

Não parece ter sido D. João o autor da idéia, atribuída ao ministro francês Charles Maurice de Talleyrand-Périgord. Representante de uma potência vencida e de uma monarquia precariamente restaurada, Talleyrand teria procurado, através dessa mudança, aumentar o seu próprio campo de manobra incrementando o poder de decisão dos seus aliados. faz-se evidente, entretanto, que o príncipe regente se encontrava cada vez mais à vontade no Brasil.

Passado o período inicial de adaptação e restauração das instituições básicas, essa proximidade entre D. João e seus súditos brasileiros começaria a render frutos. Não houve grandes reformas de base (como não seria de esperar, dadas a precariedade da situação - o príncipe governava, ainda, como regente, em nome da sua mãe - e a pouca disposição de D. João para os atos de governo), mas a presença da Corte no Brasil possibilitou inúmeras incorporações, que poderiam ser consideradas de rotina mas demoravam a acontecer quando se dependia da Península.

Novas comarcas foram instaladas, novas vilas foram fundadas ou elevadas a essa categoria, a partir de povoados pré-existentes. Cargos de juiz de fora foram criados, ainda em 1808, em Santo Antônio da Sé, Magé, Angra dos Reis, Parati, Goiana e Porto Alegre. Em 1810 chegou a vez da Bahia, onde foram criados juízos de fora em Jaguaribe, Maragogipe, Santo Amaro, São Francisco e Rio de Contas. No mesmo ano, o ouvidor da comarca dos Ilhéus passou a acumular o recém-criado cargo de Juiz Conservador das Matas.

Também em 1810 foram instalados juízos de fora em Bom Sucesso, Minas Gerais, e Fortaleza, no Ceará. Em 1811 foi a vez de Marajó, Parnaíba, Campo Maior, São João d’El Rei, Sabará, Vila Rica e Vila do Príncipe. Nos anos posteriores, talvez por ter sido já posto em dia o que já eram necessidades atrasadas, o ritmo cai, registrando-se, apenas, uma ou duas instalações por ano.

Embora não sejam criados novos tribunais, várias medidas, neste período, visam à descentralização da justiça e ao desafogamento das cortes superiores. Além da instalação de juízos de fora, dotados de maior alçada que os ordinários, novas juntas de justiça são criadas nas capitanias de Mato Grosso e Rio Grande do Sul e restaurada a que fora desativada em São Paulo.

Eram essas juntas reuniões, convocadas conforme a necessidade, para julgar agravos e apelações que, sem elas, deveriam ser encaminhados às relações, julgando "breve, e summariamente os Réos de todos, e quaesquer crimes, salvo os de Leza Magestade de primeira cabeça, e que não forem Ecclesiasticos, ou Militares, que gozem do Privilegio do Foro". Estavam compostas do governador, como Presidente, do ouvidor da comarca, como Juiz Relator e dos juízes de fora da cidade sede, e das vilas vizinhas. Na falta de juízes de fora, seriam convocados advogados conceituados ou vereadores, "vindo sempre a ser formada de seis votos, e vencendo-se as Condemnações de dez annos de Degredo para cima por quatro votos conformes, e por tres em todos os casos".

Em São Luiz do Maranhão, foi instalado um Conselho de Justiça Militar "composto do Governador e Capitão General como Presidente, [...] de tres Officiaes da Maior Patente e antiguidade da Tropa de Linha, [...] e de tres Desembargadores da Relação, sendo o Relator o Ouvidor Geral do Crime, ou quem seu Lugar servir, e adjuntos os dous mais antigos da mesma Relação".

Existia já um conselho similar na Bahia, instalado em 1806, e existira mais um no Rio de Janeiro, absorvido pelo Conselho Superior em 1808. Era função de todos eles o julgamento, em caráter de recurso, dos delitos cometidos por militares e apreciados em primeira instância pelos conselhos de guerra.

Com a mesma finalidade de descentralizar os julgamentos e desafogar os órgãos centrais, foram instaladas, em Goiás e Mato Grosso, Juntas do Desembargo do Paço, compostas "do Governador e Capitão General, do Ouvidor da Comarca [...] e do Juiz de Fóra" com funções semelhantes às das Mesas do Desembargo do Paço que existiam nas Relações. Além de considerar e conceder graças e perdões habitualmente reservados a essa instituição, tinham como missão apurar as pautas, nomeando "os competentes Vereadores, e mais Officiaes da Camara, [...] da Villa Capital, e das outras em que houverem Juizes de Fóra; devendo ser nomeados por Pelouros nas outras em que os não houverem".

Justiças Privativas

Até a vinda do príncipe D. João, a estrutura judiciária da colônia era bastante genérica. Na ordem municipal, estava representada pelos juízes ordinários - já substituídos, em algumas cidades, por juízes de fora - e pelos juízes de vintena. Numa ordem mais elevada, achavam-se os ouvidores de comarca, os ouvidores gerais e, por fim, as relações, todos eles julgando qualquer tipo de feitos e apenas diferenciando-se pela sua jurisdição e alçada. Embora setoriais, os juízes do povo eram, mais do que verdadeiros juízes, representantes políticos e agentes de auto-regulação, posto que, cometendo um delito comum, os seus jurisdicionados saíam da sua competência.

Na ordem econômica, a mineração atingiu, principalmente no século XVIII, uma transcendência capaz de justificar, pelo próprio interesse da Coroa, o estabelecimento de uma jurisdição particularizada. Entretanto, não chegou a motivar a designação de juízes especializados e sim, apenas, a atribuição de funções judiciais a autoridades essencialmente administrativas, tais como os Intendentes do Ouro e dos Diamantes, que estavam habilitados para conduzir devassas, pronunciar e sentenciar os réus de delitos especificamente relacionados à atividade de mineração. Pretendia-se, essencialmente, evitar o descaminho do ouro, que entrava clandestinamente no mercado sem o pagamento dos devidos impostos.

Os nobres, tradicionalmente diferenciados perante a legislação e à Justiça, demoraram vários séculos para conseguir, na América, o juízo privativo que derivava da sua condição de privilegiados. Poucos seriam os fidalgos de origem, predominando, entre os imigrantes de maior condição, os chamados fidalgos da casa d’El Rei, ou seja, homens sem linhagem nobre, que adquiriam seus títulos como reconhecimento por serviços especialmente meritórios ou como complemento necessário ao exercício de funções na alta administração do Reino.

De fato, não havia uma Justiça privativa de determinados indivíduos ou setores, porque não existiam, na colônia, esses indivíduos ou setores em número e importância suficiente para motivar da Coroa - longínqua e desinteressada - o estabelecimento e regulamentação desses privilégios. Apenas os donatários - pela sua particular condição de investidores e conquistadores - receberam, no período inicial, imunidades excepcionais para si e jurisdição quase absoluta sobre os seus subordinados.

É verdade que a Igreja reivindicava - e, em muitos aspectos, conseguia - a plena jurisdição sobre os seus membros e até mesmo sobre as causas com leigos onde algum clérigo estivesse envolvido, mas isso era uma prática geral, já existente na legislação peninsular e aplicada de forma tão genérica quanto a jurisdição civil. A Justiça eclesiástica alcançava a Igreja toda, entendida como instituição universal, e não apenas a determinados órgãos ou membros que tivessem recebido privilégios especiais.

A transferência da Corte iria alterar essa situação. Não apenas um número considerável de nobres e validos partilhou da fuga da família real, como grandes interesses comerciais e financeiros acompanharam a mudança de sede da monarquia. Mesmo confiando numa rápida restauração, os juízos privativos já existentes na península não poderiam atender satisfatoriamente as causas iniciadas no Brasil. Tornava-se imprescindível criar outros, mais próximos, capazes de julgar in situ os litígios, cada vez mais numerosos.

O primeiro cargo a ser criado - antes mesmo da instalação da Casa da Suplicação - foi o de Juiz Conservador dos Ingleses, regimentado por alvará real de 4 de maio de 1808. Não poderia ser de outra maneira. Desde que D. João IV se apoiara na Inglaterra para consolidar a Restauração de 1640, a influência desse país sobre Portugal foi não apenas constante como sempre crescente. Quando o futuro D. João VI embarcou para o Brasil, não apenas boa parte das finanças do Reino estava em mãos inglesas como foi uma esquadra dessa nacionalidade que lhe deu condução e escolta até chegar ao Rio de Janeiro. Nessas circunstâncias, mais do que a concessão de uma graça ou privilégio, a nomeação, no Brasil, de um Juiz Conservador dos Ingleses - cargo, aliás, já há muito tempo existente na península - tornava-se uma obrigação e uma necessidade política e diplomática.

Como todos os magistrados a serviço da Coroa, o Juiz Conservador dos Ingleses, devia ser, necessariamente, português, mas a sua fidelidade aos interesses britânicos era garantida pela forma de escolha. O candidato era apontado pelos súditos ingleses domiciliados na sua jurisdição e confirmado pelo embaixador ou ministro da Grã Bretanha. Ao rei cabia, apenas, nomear ou vetar o indicado e, nesse último caso, nova eleição deveria ser feita - sempre à escolha da comunidade britânica - até se encontrar um candidato que fosse aceito pelo soberano português.

Ainda em 1808, foram criadas, no Rio de Janeiro, duas vagas de Juiz do Crime, com atribuições semelhantes às dos juízes de fora, mas com jurisdição exclusivamente criminal e acumulando a responsabilidade do policiamento da Capital. Posteriormente, o mesmo cargo seria criado na Bahia. Embora não represente, como o de juiz conservador, uma jurisdição de privilégio, a sua criação é, também, um sinal da especialização da Justiça que, ganhando em complexidade, começava a exigir a criação de órgãos de competência mais diferenciada.

Outro cargo relativamente especializado foi o de Juiz das Sesmarias, criado por alvará de 25 de janeiro de 1809. À diferença dos anteriores, limitados, inicialmente, à cidade do Rio de Janeiro, esses juízes deveriam atuar em todo o território, sendo nomeados pelas mesas do Desembargo do Paço ou pelos governadores a partir de listas tríplices propostas pelas câmaras e mesas de vereação. Eram providos por três anos e competia-lhes a medição e demarcação das sesmarias, ressalvando-se, entretanto, o direito das partes a submeter os conflitos à justiça ordinária se assim o achassem conveniente. Das suas decisões podiam ocorrer recursos para os ouvidores das comarcas.

Mas o maior grau de especialização acontecia quando um magistrado era considerado competente para conhecer, com exclusividade, as causas que envolvessem um determinado órgão ou instituição. Em geral, não era constituída uma vaga exclusivamente com essa finalidade. A incumbência era dada, cumulativamente, a um desembargador membro da Casa da Suplicação ou de alguma das Relações que, por sua proximidade, resultasse mais adequada.

Assim, em 8 de julho de 1811, foi criado o cargo de Juiz Privativo dos Feitos da Santa Casa da Misericórdia do Rio de Janeiro, sendo incumbido dessa tarefa o Corregedor do Crime da Casa da Suplicação, desembargador Francisco Lopes de Souza de Faria Lemos, que assumiu a nova responsabilidade em 3 de setembro desse mesmo ano. Governava-se pela competência atribuída, nas Ordenações Filipinas, ao Juiz dos Feitos da Misericórdia e Hospital de Todos os Santos de Lisboa. Com similares critérios foi criado, em 29 de maio de 1815, o cargo de Juiz Conservador do Hospital dos Lázaros.

Mas eram outros privilegiados que iriam motivar o maior número de nomeações. Além do Juiz dos Cavalheiros, criado na Mesa do Desembargo do Paço e da Consciência e Ordens para julgar privativamente os membros das ordens militares, diversos cargos se tornaram necessários pelo acelerado desenvolvimento da atividade econômica.

Pelo alvará de 14 de agosto de 1809, foram criados os cargos de Juiz dos Falidos, Conservador dos Privilegiados e Superintendente Geral dos Contrabandos, integrando a organização da Junta de Comércio, Agricultura, Fábricas e Navegação mas sendo exercidos por desembargadores membros da Casa da Suplicação. Ao Juiz dos Falidos competia processar e julgar, civil e criminalmente, as falências dos comerciantes matriculados. O Conservador dos Privilegiados entendia privativamente nas causas cíveis entre negociantes da Junta. Já o Superintendente Geral dos Contrabandos conhecia das fraudes na importação e exportação de mercadorias e do descaminho de direitos e retenções. Embora fossem três cargos relativamente independentes, era comum decidirem juntos ou com a ajuda de outros desembargadores designados pelo Regedor.

Também o Banco do Brasil chegou a ter o seu Juiz Privativo das Causas e Dependências, criado pelo alvará de 20 de outubro de 1812. Esse cargo, também reservado aos membros da Casa da Suplicação, foi confiado ao desembargador José Caetano de Paiva Pereira, empossado em 22 de dezembro de 1812. Critério semelhante, no que refere à hierarquia dos magistrados, seria adotado no cargo de Juiz Privativo da Caixa de Desconto da Bahia, criado em 16 de fevereiro de 1816. Entretanto, atendendo à distância e à existência de um outro tribunal no local, o cargo foi confiado ao chanceler da Relação da Bahia.

Além dessas instituições de maior destaque, outros privilegiados tinham, também, seus juízes conservadores. Contavam-se entre eles os concedidos aos moedeiros e às companhias de lavras de Minas e Cuiabá, em 16 de janeiro e 12 de agosto de 1817. Havia também um conservador para cuidar das questões levantadas sobre os contratos reais de dízimas, um juiz de minas, com sede em Ipanema, um conservador da fábrica de ferro e outros.

O juízo por arbitragem foi contemplado no regulamento da Casa de Seguros, aprovado em 3 de outubro de 1812. Era obrigatório em todas as causas sobre seguros e permitia recurso para a Junta de Comércio, Agricultura, Fábricas e Navegação.

Finalmente, já na regência de D. Pedro e faltando menos de três meses para a Declaração da Independência, os recém-nascidos delitos de imprensa motivaram a aparição de uma estrutura judicante absolutamente nova. Até a chegada de D. João VI, não existira no Brasil imprensa alguma. As poucas tentativas feitas para importar ou construir máquinas impressoras foram sempre duramente combatidas pela Coroa, que considerava perigosa e de difícil controle a produção de materiais impressos nas colônias. Mas a situação inverteu-se radicalmente quando, estabelecida a Corte no Rio de Janeiro, essa cidade passou a ser, de fato, a capital do reino.

Em 1822, a imprensa era já um arma temível e, enfrentando o Príncipe as decisões das Cortes de Lisboa, encontrava-se no meio de uma luta entre facções virtualmente irreconciliáveis, brigando a uma pela restauração do domínio colonial enquanto a outra tentava consolidar as conquistas alcançadas, chegando a prognosticar a Independência, e até mesmo a República.

Quinze dias antes, em 3 de junho, D. Pedro convocara uma Assembléia Geral Constituinte e Legislativa com claras tendências independentistas. O controle da imprensa transformara-se, a partir desse momento, num problema vital para a consolidação dos seus projetos. Mas os tempos tinham mudado e não era prudente "offender a liberdade bem entendida da imprensa [...] que tantos bens tem feito á causa sagrada da liberdade brazilica".

Assim, procurando "fazer applicaveis [...] instituições liberaes adoptadas pelas nações cultas", em 18 de junho um decreto com a rubrica do Príncipe instituía um tribunal popular, constituído por "vinte e quatro cidadãos escolhidos entre os homens bons, honrados, intelligentes e patriotas", para apreciar, como "Juízes de Facto", as causas de abuso da liberdade de imprensa.

Esse recurso, baseado numa seleção de cidadãos leigos, dos quais se esperava não um julgamento tecnicamente avalizado, mas uma apreciação espontânea e representativa do sentir da comunidade - e, na circunstância específica, também um julgamento político que aventasse as acusações de absolutismo -, é o primeiro precedente, em território brasileiro, do procedimento hoje conhecido como Tribunal do Júri.

As ações eram iniciadas pelo Procurador da Coroa e Fazenda que, a partir desse decreto, passou a acumular funções de censor, ficando os impressores obrigados a encaminhar as publicações para sua apreciação.

No Rio de Janeiro, a escolha dos "Juízes de Facto" era feita pelo Corregedor do Crime da Corte "que por este nomeio Juiz de Direito nas causas de abuso da liberdade de imprensa". Na Bahia, Maranhão e Pernambuco, que contavam com tribunais instalados, essa função caberia aos Ouvidores do Crime das respectivas Relações, ficando, no resto do Brasil, por conta dos Ouvidores das Comarcas.

Dos vinte e quatro escolhidos, podia o acusado recusar dezesseis, ficando o júri constituído pelos oito restantes. Além de nomear os jurados, o magistrado incumbido presidia as sessões "como se procede nos Conselhos militares de investigação, e accommodando-se sempre ás fórmas mais liberaes, e admittindo-se o réo á justa defeza que he de razão, necessidade e uso".

A missão dos jurados era, exclusivamente, determinar se o acusado era ou não culpado daquilo que lhe era imputado. Chegando-se a um veredicto de culpabilidade, era o magistrado quem, atendendo às leis em vigor, determinava a pena a ser imposta.

As leis antigas, consideradas "muito duras e improprias das idéas liberaes dos tempos em que vivemos", foram substituídas, para esse fim, pelos artigos 12 e 13 do título 2° das Cortes de Lisboa de 1821 "que mando nesta unica parte applicar ao Brazil". Entretanto, os autores "de pasquins, proclamações incendiarias, e outros papeis não impressos" seriam, ainda, "processados e punidos na fórma prescripta pelo rigor das leis antigas".


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