Chegada do Príncipe Dom João à Igreja do Rosário.
(Óleo de Armando Martins Viana) |
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Memória
da Justiça Brasileira - 2 |
Capítulo 14
O Príncipe do Brasil,
no Brasil
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Em 29 de novembro de 1807, D. João, Príncipe
do Brasil, embarcou para a colônia, que, até o momento, só conhecia pelo
seu próprio título honorífico, que - desde a segunda metade do século
XVII - a tradição reservava aos herdeiros da Coroa portuguesa.
Herdeiro em virtude do falecimento do primogénito
de D José I, D. João vira-se, desde cedo, na responsabilidade de conduzir
os destinos do Reino. A sua mãe, D. Maria I, não suportara a perda, em
curto período, do pai, do marido e do filho. Falecido D. José em 1788,
três anos depois a rainha já dava claros sinais de incapacidade para governar.
Submergida num quadro de psiquiastenia com delírios místicos, era evidente,
ainda para os limitados conhecimentos da época, que não teria a lucidez
necessária para reassumir a coroa.
Mas substituir um rei vivo era coisa muito
séria. Durante oito anos, D. João despachou transitoriamente em nome da
sua mãe, como se a qualquer momento ela pudesse recuperar-se de sua doença
e retomar a condução do Reino. Em 1799, oficialmente declarada a demência
da rainha, D. João foi proclamado Príncipe Regente, conservando ainda
D. Maria, simbolicamente, o título de rainha. Nessas condições, a rainha
louca iria sobreviver ainda por bastante tempo, participando passivamente
da fuga e de uma boa parte dos anos de exílio da Corte no Brasil.
As tensões que provocaram a transferência
da Corte também não eram novas. Ia para mais de uma década que a paz com
a França só se mantinha na base de acordos vergonhosos e da proteção inglesa,
que, como já acontecera anteriormente com relação à Espanha dos Felipes,
se transformava numa faca de dois gumes, envolvendo Portugal nos conflitos
particulares dos seus poderosos parceiros.
Assim, a fuga não parece ter sido tão covarde
e precipitada como alguns autores concluíram. Já em 1803, o Conde de Linhares
- com o apoio do representante inglês em Lisboa - propunha ao príncipe
regente a transferência da Corte para o Brasil. Não era, como poderia
pensar-se, um problema de coragem pessoal mas de razões de Estado. Muito
mais que uma pessoa, a figura do rei era um elemento aglutinador da nação,
o único símbolo universalmente reconhecido, indiscutível e, de certo modo,
sagrado.
Apesar das transformações próprias da Idade
Moderna, ainda o Estado e o Rei se confundiam. Todos os atos de governo
eram tomados em seu nome. As finanças do Reino eram chamadas de "Real
Fazenda", ou seja, propriedades do monarca, que graciosamente concedia
a quem bem lhe servisse. Ao caráter sagrado que a Igreja emprestara às
monarquias durante a Idade Média, agregava-se a concentração absolutista
do poder que caracterizara o período iluminista. O patriotismo era entendido
como fidelidade ao rei e a traição era chamada de "inconfidência".
Preso o rei espanhol, as suas principais colônias
alcançariam a independência. Em muitos casos, os próprios governos revolucionários
diriam representar o rei, ainda reconhecendo, simbolicamente, a sua autoridade,
mas desconhecendo a dos governos temporários constituídos na península,
cuja representatividade consideravam, no máximo, equivalente à dos formados
nas colônias.
É verdade que um soberano dinâmico e enérgico,
à cabeça das suas tropas, seria também um elemento aglutinante na resistência,
mas - ainda sem considerar que não era esse o caso de D. João, cujo espírito
contemplativo o predispunha melhor para outro tipo de contendas e que,
por outra parte, não era ainda rei e carregava o lastro de uma rainha
demente - os tempos não eram mais os da cavalaria. Tornava-se já evidente
que, muito além da coragem dos líderes, as guerras eram vencidas pelo
poderio militar, em que, mesmo considerando o apoio prestado pelos ingleses,
os franceses levavam todas as vantagens. Presos o príncipe regente e a
rainha, seriam convertidos em reféns dos invasores, transformando-se num
sério obstáculo a qualquer tentativa de reconquista.
Por outra parte, nem a transferência da capital
era idéia nova nem se relacionava necessariamente com as contingências
da guerra. D. Luiz da Cunha, em 1736, e o Marquês de Pombal, em 1761,
propuseram idêntica mudança. E já então o destino escolhido era o Rio
de Janeiro.
Não estamos certos de que, ao partir de Lisboa,
D. João estivesse a par das propostas de Cunha e Pombal, mas é indubitável
que quando, em fins de 1807, Napoleão mandou Junot invadir Portugal, a
fuga era já uma opção largamente planejada. Além de transportar um milhar
de funcionários e - se considerarmos as críticas mais azedas - outro milhar
de "validos", a esquadra inglesa, a serviço de Portugal, carregou
não apenas o ouro e outros tesouros físicos como também tesouros espirituais
tais como a biblioteca real, que chegou a ocupar boa parte de um andar
do Convento do Carmo e acabaria ficando no Brasil. A despeito da pressa
e o do temor de Junot - que só por obra da enchente do Zezere não chegou
antes da partida e ainda conseguiu ver as últimas velas no horizonte -
um inventário completo do carregamento da esquadra pareceria muito mais
com uma transferência organizada da capital do Reino que com uma fuga
atropelada e dispersa.
Órgãos de Governo e Justiça
Era imprescindível, então, reproduzir o mais
fielmente possível as estruturas de governo da antiga capital.
Critica-se a D. João e aos seus conselheiros
por não ter modernizado essa estrutura de governo ou por não tê-la adaptado
às necessidades brasileiras. Nada mais longe das necessidades do momento.
Urgia, antes de mais nada, restaurar a continuidade jurídica, deixar a
população perceber que nada havia mudado e que podia confiar na sobrevivência
das instituições. Não eram tempos de mudar e sim de conservar. Qualquer
mudança seria opinável; poderia expor o partido governante a divisões
e enfraquecer mais ainda a já frágil posição da monarquia em exílio. Por
outra parte, mesmo que todo o mundo soubesse que D. Maria nunca mais iria
sentar no trono, não é função de um regente reformar e sim administrar
o que lhe foi encomendado.
É verdade que, passado o período inicial de
adaptação e fortalecido em sua autoridade ao falecer sua mãe e ser finalmente
coroado, D. João VI poderia ter arriscado em projetos mais audazes mas...
por que razão deveria ser precisamente ele, se nenhum dos seus predecessores
- mesmo governando em circunstâncias muito mais favoráveis - se lembrara
de fazê-lo? Com efeito, desde a Restauração até as Cortes de 1820, o único
rei português que ousou modificar as estruturas tradicionais foi D. José
I e, mesmo assim, somente por influência de um ministro que carregava
influências das cortes absolutistas centro-européias.
Quanto ao segundo questionamento, carece por
completo de sentido. Nem D. João conhecia o Brasil nem tinha nenhuma razão
para governar para ele. Processava-se a transferência da capital do Reino,
e teria sido feita para África, para a Índia ou para qualquer das ilhas
se, comparativamente, oferecesse maiores vantagens para essa finalidade.
O que estava em jogo era o Reino de Portugal e não a simples colônia que
iria servir-lhe temporariamente de sede.
As Primeiras Reformas
Mas não foi pela justiça que começaram as
reformas de D. João. Existiam assuntos mais urgentes. O primeiro deles:
a abertura dos portos.
É este outro dos feitos que uma perspectiva
histórica errada costuma distorcer. Certo é que o Brasil saiu diretamente
beneficiado. Certo, também, que esse benefício foi consciente e deliberadamente
utilizado pelos recém-chegados para impressionar os brasileiros com a
magnanimidade do príncipe. Admitamos, ainda, que realmente tenha existido
uma intervenção positiva de Silva Lisboa e outros brasileiros. Nenhuma
dessas razões consegue superar o fato evidente de que a abertura dos portos
era inevitável.
Valha como prova, inicialmente, o fato de
ser a primeira resolução importante tomada por D. João em território brasileiro,
apenas quatro dias depois de desembarcar, antes mesmo de chegar à cidade
que lhe serviria de destino final e sede da Corte. Medida de alcances
econômicos tão sérios e globais seria tomada irrefletidamente, apenas
como uma concessão graciosa ao povo brasileiro?
Mas o que não deixa dúvidas é o estudo da
situação e dos interesses em jogo. Como poderia o Portugal peninsular,
invadido e desorganizado, continuar monopolizando o comércio do Brasil?
Como poderia o Brasil, principal fonte de renda da Coroa, continuar produzindo
sem ter canais de saída para sua produção? Finalmente, como a Coroa portuguesa
poderia, sem portos, cumprir os compromissos contraídos com a Inglaterra,
que estava financiando toda essa aventura transatlântica? Resulta evidente,
a partir desta análise, que a abertura dos portos brasileiros às "Potencias
que se conservão em Paz e Harmonia com a Minha Real
Coroa" era, apenas, uma forma polida de legalizar
a transferência do comércio português, quase tão exilado quanto a própria
Corte.
Similares motivações conduziriam à liberação
das indústrias, proibidas no Brasil desde 1785. Essa medida era igualmente
inevitável. Nem o comércio nem as indústrias do Reino poderiam continuar
baseadas no território peninsular ocupado pela França. A necessidade era
tanta que, já de passagem pela Bahia e mesmo antes da liberação geral,
D. João autorizara a instalação de uma fábrica de vidros, outra de pólvora
e de uma planta de fundição de artilharia. A relação evidente entre a
liberação dos portos e a das indústrias permite até supor que estivessem
ambas já pensadas, mas fosse a segunda reservada para mostrar à população
do Rio de Janeiro um gesto de magnanimidade semelhante ao exibido na Bahia.
Se essas medidas foram efetivamente calculadas
para obter apoio popular, de fato esse apoio parece ter assumido feições
que não tardariam em colocar o príncipe em posição desconfortável. Não
parece que tenha acontecido na Bahia - geralmente, de cunho mais conservador
- mas, ao desembarcar no Rio de Janeiro, o príncipe regente de Portugal
e Algarve surpreendeu-se ao ser aclamado como "imperador do Brasil".
Mas, por mais honrado que se sentisse, o príncipe
não teria a temeridade de ouvir esses cantos de sereia. Já bastante pouco
inclinado a assumir as funções de regente, que de modo algum poderia recusar,
mal iria querer o aprazível D. João liderar o movimento revolucionário
que já fermentava no povo mas teria, ainda, que esperar por seu filho.
Por enquanto, o príncipe se dedicaria a reorganizar suas forças e costurar
os retalhos do Reino de Portugal, que em tão convulsionadas horas lhe
fora encomendado.
Ainda na Bahia, encomendou ao governador a
elaboração de um plano integral de fortificação e defesa, autorizando,
por enquanto, a fortificação do porto, a construção de 25 barcas canhoneiras,
a organização de dois esquadrões de cavalaria e o redimensionamento da
infantaria até 1.200 praças. Em outras ordens, autorizou a instalação
de aulas de Cirurgia e aprovou os estatutos da primeira companhia de seguros.
Não descuidando o lado político, antes de partir, visitou todos os estabelecimentos
públicos e distribuiu honrarias a membros da Câmara, magistrados, clero
e cidadãos proeminentes da Capitania, mas escusou-se polidamente quando
requisitado a permanecer e sediar a capital do Reino em Salvador.
Já no Rio, as festivas recepções foram interrompidas
pela destituição dos ministros, suspeitos de traição a partir de um boato
espalhado em Lisboa antes da partida. Aparentemente, o príncipe se fez
de surdo durante toda a viagem, calou ainda durante a permanência na Bahia
e esperou estar seguro em seu destino para controlar a situação, demonstrando
uma habilidade política nem sempre reconhecida nele.
O Conselho Militar
Normalizada a situação ministerial, a primeira
providência foi a instalação do Conselho Supremo Militar e de Justiça,
constituído, em verdade, por dois conselhos relativamente independentes:
o Militar, "que se comporá dos Officiaes Generaes do Meu Exercito,
e Armada Real, que já são Conselheiros de Guerra, e do Almirantado, e
que se achão nesta Capital, e dos outros Officiaes de Huma, e outra Arma,
que Eu Houver por bem Nomear, devendo estes ultimos ser Vogaes do mesmo
Conselho em todas as materias, que nelle se tratarem", e o de Justiça,
que "se comporá dos Conselheiros de Guerra, Conselheiros do Almirantado,
e mais Vogaes, e de tres Ministros Togados que Eu Houver de Nomear".
O regimento incumbe o Conselho Supremo Militar
de "todos os Negocios, em que em Lisboa entendião os Conselhos de Guerra,
do Almirantado, e do Ultramar na parte Militar sómente, e todos os mais,
que Eu Houver por bem encarregar-lhe: e poderá o mesmo Conselho consultar-Me
tudo quanto julgar conveniente para melhor Economia, e Disciplina do Meu
exercito, e Marinha", ficando na área de competência do Conselho de
Justiça o "conhecimento, e decisão dos Processos Criminaes
que se fórmão aos Reos, que gozão do Foro Militar, e que em virtude das
Ordens Regias, se devem remetter ao Conselho de Guerra ainda sem appelação
de Parte, ou por meio della."
Mais pormenorizadamente, deveriam ser submetidos
ao Conselho de Justiça "todos os Conselhos de Guerra, que se formarem
nos Corpos Militares desta Capitanía, e de todas as mais do Brazil, a
excepção do Pará, e Maranhão, e dos Dominios Ultramarinos, pela grande
distancia e dificuldade da navegação para esta Capital". Também, excepcionalmente,
deveria reunir-se "nas quintas feiras, quando para este fim for avisado,
e requerido pelo Juiz Relator do mesmo Conselho, para julgar em ultima
Instancia da validade das prezas feitas por Embarcações de Guerra da Armada
Real, ou por Armadores Portuguezes".
Complemento necessário - no âmbito interno
- da instalação desses conselhos era a criação da Intendência Geral de
Policia da Corte e do Estado do Brasil, efetivada quatro dias depois.
Chefiada provisoriamente por Luiz José de Carvalho e Mello, desembargador
do Paço, foi logo provido o cargo de Intendente, sendo nomeado, a 10 de
abril de 1808, o conselheiro Paulo Fernandes Vianna, desembargador e ouvidor
geral do crime, que permaneceria no cargo até o fim do período colonial.
Ainda dentro do âmbito militar, uma realização
de grande transcendência, não apenas pela utilidade imediata como pelas
suas derivações científicas e culturais, foi a criação do Arquivo Militar,
anexo às repartições de Guerra, Marinha e Fazenda, com a incumbência de
conservar toda a documentação cartográfica de Portugal, do Brasil e dos
demais domínios ultramarinos. À coleção, trazida na viagem, se agregariam
engenheiros e desenhistas que lhe dessem continuidade, iniciando a realização
de um manual topográfico e geodésico, plantas de fortificação e defesa,
projetos para portos e estradas etc.
Os Tribunais Superiores
Em 22 de abril foram instituídos o Desembargo
do Paço e a Mesa da Consciência e Ordens, conjugados num único tribunal
sob a denominação de "Meza do Desembargo do Paço, e da Consciencia
e Ordens". Não se pretendia substituir os tribunais peninsulares.
Pese a, historicamente, sempre terem acompanhado os reis, nas atuais circunstâncias
não era prudente nem politicamente aconselhável desativar os assentamentos
tradicionais "por serem dos meus Vassallos, que habitão aquellas partes
dos Meus Dominios, e que são Ultramarinos respectivamente a este Estado
do Brazil".
Era importante conservar, no território invadido,
a máxima impressão de continuidade jurídica que fosse possível. Era como
dizer "El-Rei está simplesmente a viajar e pode retornar a qualquer
momento". Embora alguns dos seus membros já o tivessem acompanhado
até o Brasil, D. João preferiu conservar as estruturas de governo que
ficaram para atrás e criar novos órgãos para acompanhá-lo na sua nova
capital.
Seja por razões de economia de guerra ou por
considerar que seriam apenas órgãos temporários, os novos tribunais seriam
mais enxutos. O Conselho Militar e de Justiça - como já foi apontado -
veio a substituir vários órgãos. Da mesma maneira, o Desembargo do Paço
e a Mesa da Consciência, que eram independentes e autônomos, passaram
a ser representados por um único tribunal, "composto de hum Presidente,
e dos Desembargadores, que Eu Houver por bem Nomear, que entenderão em
todos os negocios, que nelle se tratarem" além de "Deputados da
Meza da Consciencia e Ordens, que só entenderão nos Negocios della".
O funcionamento deveria acontecer pelas manhãs de todos os dias úteis,
reservando-se as quartas e sextas-feiras para as matérias próprias da
Mesa da Consciência.
Já existiam, nas relações, mesas do Desembargo
do Paço, encarregadas de ali despachar certas matérias que formalmente
eram de competência dessa instituição. A do Rio tornava-se desnecessária
frente à existência do novo tribunal, e foi abolida na mesma hora, conservando-se,
entretanto, a da Bahia, "em atenção aos inconvenientes, que podem resultar
aos Meus Vassallos habitantes no districto della da demora das viagens,
e a que os mais delles exigem brevidade".
Embora o regimento deixe propositadamente
indefinido o número e especialidades dos desembargadores, alguns cargos
específicos são definidos. Entre eles o de Chanceler Mor do Estado do
Brasil, "o qual exercerá a mesma Jurisdicção, que exercia o do Reino",
e o de Chanceler das Três Ordens Militares. Também eram criados um cargo
de Procurador Geral "para fiscalizar, e promover os negocios, e direitos
das Tres Ordens Militares, que como Gram-Mestre, e Perpetuo Administrador
Desejo manter, e conservar" e outro de Promotor, incumbido de fiscalizar
"a arrecadação da Fazenda dos Defuntos, e Auzentes".
Também, para "conhecer por Appellação das
Causas Crimes dos Cavaleiros das ordens Militares", cria-se um cargo
de Juiz dos Cavalheiros. Este era um velho problema nunca eficientemente
resolvido. Por privilégio, os membros das ordens militares não podiam
ser julgados pelos magistrados comuns e nem mesmo se sentiam obrigados
a respeitá-los. Para atenuar esta situação, era freqüente se conceder
aos chanceleres das Relações a Cruz da Ordem de Cristo, colocando-os,
pelo menos, em igualdade formal de honrarias. Mas nunca houve, no Brasil,
um Juiz dos Cavalheiros. Em 1801, os Ouvidores Gerais do Crime das Relações
do Rio de Janeiro e Bahia foram autorizados para conhecer dessas causas,
mas se tratava, ainda, de uma medida emergencial.
A designação do Juiz dos Cavalheiros dava,
por fim, uma solução completa e, assim, o próprio regimento se encarrega
de deixar sem efeito o alvará de 1801. Entretanto, à diferença do ocorrido
com relação às mesas do Desembargo do Paço, das quais a da Bahia foi conservada,
neste ponto o regimento é sucinto, e o alvará é derrogado, sem nenhuma
ressalva.
A Casa da Suplicação do Brasil
Ainda com mais razão que no caso dos tribunais
superiores, não havia nenhuma utilidade em fechar a Casa da Suplicação
de Lisboa. Embora este tribunal tivesse acompanhado, tradicionalmente,
a pessoa do monarca, havia já séculos que não era presidido por ele, funcionando,
em verdade, sob a coordenação de um regedor. De fato, virara uma Corte
de Justiça profissionalizada, onde se julgava conforme as leis e que não
se diferenciava essencialmente - a não ser nas dimensões e na proximidade
com a Coroa - das outras Relações do Reino. Ainda sem levar em conta o
seu valor simbólico como expressão da sobrevivência das instituições,
fechá-la seria como fechar a Relação do Porto ou a da Bahia. Deixaria
uma região da maior importância desprovida do seu tribunal.
Mas também não era aceitável que a cidade
onde o rei morava "que deve por isso ser considerada a Minha Corte
actual" não contasse com uma Casa da Suplicação. Isso, agregado a
que, enquanto durasse a invasão "por estar interrompida a communicação
com Portugal, e ser por isto impraticavel seguirem-se os Aggravos ordinarios,
e Appellações, que até aqui se interpunhão para a Casa da Supplicação
de Lisboa" viriam "a ficar os pleitos sem decisão ultima com manifesto
detrimento dos litigantes, e do Público".
Mas uma Casa da Suplicação, no Rio de Janeiro,
originaria uma sobreposição de funções com a Relação já existente, razão
pela qual se optou, simplesmente, por elevar a hierarquia dessa Relação,
complementando-a com os magistrados e serviços auxiliares necessários
à sua nova condição.
Assim, o primeiro artigo do regimento, dado
em 10 de maio de 1808, dispõe: "A Relação desta Cidade se denominará
Casa da Supplicação do Brazil, e será considerada como Superior Tribunal
de Justiça; para se findarem ali todos os pleitos em ultima Instancia,
por maior que seja o seu valor, sem que das ultimas sentenças proferidas
em qualquer das Mezas da sobredita Casa se possa interpor outro recurso,
que não seja o das Revistas nos termos restrictos do que se acha disposto
nas Minhas Ordenações, Leis, e mais Disposições. E terão os Ministros
a mesma alçada que tem os da Casa da Supplicação de Lisboa".
E o artigo segundo acrescenta: "Todos os
Aggravos Ordinarios, e de Appellações do Pará, Maranhão, Ilhas dos Açôres,
e Madeira, e da Relação da Bahia, que se conservará no estado, em que
se acha, e se considerará como immediata á desta Cidade, [...] serão
daqui em diante interpostos para o Brazil".
O terceiro - evidentemente uma disposição
transitória - determina que todos os pleitos "que se não remetterão;
e todos os que sendo remettidos, não tiverão ainda final decisão"
deverão ser julgados no Rio de Janeiro "huns pelos proprios autos,
e outros pelos traslados, que ficárão".
A nova Casa da Suplicação deveria estar composta
"além do Regedor, que Eu houver por bem Nomear, do Chanceller da Casa,
de oito Desembargadores dos Aggravos, de hum Corregedor do Crime da Corte
e Casa, de hum Juiz dos Feitos da Coroa e Fazenda, de hum Procurador dos
Feitos da Coroa e Fazenda, de hum Corregedor do Civel da Corte, de hum
Juiz da Chancellaria, de hum Ouvidor do Crime, de hum Promotor da Justiça,
e de mais seis Extravagantes". Da mesma forma que nos regimentos das
Relações, indica-se que "servirão todos os Ministros de Adjuntos huns
dos outros, como for necessario no Despacho do Expediente, e entrarão
tambem nas serventias dos Lugares vagos, ou impedidos, quando não hajão
para isto Extravagantes por occupados em outras serventias". Era uma
medida de economia para impedir o crescimento desmesurado do número de
magistrados.
Sempre tomando como modelo a Casa da Suplicação
de Lisboa, o regimento introduz a possibilidade da promoção interna dos
magistrados, "para serem promovidos aos [lugares] mais distinctos,
e graduados, os Ministros, que forem de maior graduação nos Despachos,
que já tinhão, e tiverem maior antiguidade, prestimo, e serviços".
Essa disposição viria auxiliar a tarefa dos historiadores. A partir dessa
data, são freqüentes as elevações de listas - autenticadas pelo chanceler
ou regedor - dos magistrados dessa Corte, relacionados por ordem de antigüidade
para determinar essa precedência.
O regimento não menciona o local em que o
novo órgão iria funcionar. Considerando que não era tão novo assim, pode
presumir-se que, pelo menos inicialmente, continuasse ocupando a sede
da antiga Relação que, como já foi mencionado, funcionava na que, até
1751, fora Casa da Câmara e Cadeia, à Rua da Prainha. Entretanto, há constâncias
de a Casa da Suplicação ter funcionado posteriormente à Rua do Lavradio
Nº 42, próximo ao Largo do Rocio (atual Praça Tiradentes).
A Casa da Suplicação do Brasil foi instalada
em 30 de julho de 1808, data em que tomaram posse José de Oliveira Pinto
Botelho e Mosqueira, como Procurador dos Feitos da Coroa e Fazenda,
Luiz José de Carvalho e Mello, como Corregedor do Crime da Corte e
Casa, Joaquim d’Amorim Castro, como Ouvidor do Crime, Francisco
de Souza Guerra Godinho, Francisco Lopes de Souza de Faria Lemos e Francisco
Baptista Rodrigues, como desembargadores agravistas, e Pedro Alvares
Diniz, Jacinto Manoel Oliveira, Antonio Ramos da Silva Nogueira, José
Albano Fragoso e José Duarte da Silva Negrão Coelho, como desembargadores
extravagantes.
Aos poucos, os outros cargos iriam sendo providos.
Em 6 de agosto assume o Promotor da Justiça, Des. José Fortunato
de Brito Abreu Souza e Meneses; em 13 de setembro, o Juiz dos Feitos
da Coroa e Fazenda, Des. Bernardo Teixeira Coutinho Alves de Carvalho.
Cedo, começam as substituições: Em 22 de novembro, José de Queiroz Botelho
de Almeida e Vasconcellos substitui Amorim Castro como Ouvidor do Crime.
Em 26 do mesmo mês, o mesmo acontece com Faria Lemos que, tendo ingressado
como agravista, passa a ocupar o cargo de Corregedor do Crime da Corte
e Casa, em substituição de Carvalho e Mello. Tal vez a instabilidade
geral da situação explique essas novas posses.
Já entrado o ano de 1809, em 11 de abril é
provido o cargo de Juiz da Chancelaria, ocupado pelo Des. Manoel
Ignacio Pereira Cabral. O de Corregedor do Cível da Corte só aparece
em 9 de maio, outorgado a Claudio José Pereira da Costa sob protesto do
Promotor da Justiça, que se julga com maior antigüidade para ocupar esse
cargo.
Abundam as posses de agravistas e extravagantes.
Inicialmente, os três agravistas empossados parecem completar - com os
cinco já existentes na Relação do Rio - o número de oito, definido no
alvará, mas logo aparecem novos desembargadores, tanto agravistas como
extravagantes, ultrapassando bastante o limite definido nesse instrumento.
Isso fica mais notório no caso dos extravagantes que, por não terem existido
na antiga Corte, constituem um número absoluto que não permite confusão.
Um caso ainda mais complexo envolve o regedor
e o chanceler. Acompanhava o rei o regedor da Casa da Suplicação de Lisboa,
Des. José de Vasconcellos e Sousa, Conde de Pombeiro, mas não parece levá-lo
em conta quando, no regimento, se refere ao regedor "que Eu houver
por bem Nomear". Paulo Paranhos - baseado nos almanaques para a cidade
do Rio de Janeiro de 1813 e 1817 e em indicação do Des. Vieira Ferreira
referente ao ano de 1821 - arrisca a hipótese de Botelho e Mosqueira ter
ocupado o cargo de regedor, pelo menos, entre essas datas, o que parece
uma conclusão bastante razoável, mas, posteriormente, erra ao escrever:
"Conforme o livro de posse dos Desembargadores daquela Casa, o Regedor
nomeado era José de Oliveira Pinto Botelho e Mosqueira".
Revisamos cuidadosamente o livro de posses
sem encontrar nenhuma referência à suposta nomeação. Antes, por ocasião
da instalação do tribunal, o mencionado desembargador toma posse como
"Procurador dos Feitos da Coroa e Fazenda" e quando, em 26 de novembro
de 1808, jura como Chanceler, o faz com expressa retenção do seu cargo
anterior, como a tratar-se, simplesmente, de um interinato numa função
superior, sem perda do cargo que efetivamente lhe corresponde.
Por outra parte, na biografia resenhada pelo
próprio Paranhos, não se mencionam antecedentes prévios a 1808. Todos
os cargos e distinções - inclusive o hábito e a comenda da Ordem de Cristo,
que costumavam preceder as designações de chanceleres e regedores para
evitar a perda de autoridade frente à nobreza e aos membros das Ordens
Militares - são posteriores a essa incumbência oficial. Ora... como se
explicaria que um brasileiro, (Botelho era natural de Minas Geraes) sem
antecedentes conhecidos, fosse escolhido pelo Príncipe Regente, que acabava
de chegar de Lisboa, para presidir a sua máxima Corte de Justiça?
Por outra parte, não apenas não aparece a
referida nomeação como não há nenhuma referência ao cargo de Regedor
até que, em 7 de agosto de 1821, se registra o termo de posse e juramento
de Francisco de Assis Mascarenhas, Marquês de São João da Palma, aliás,
destacado o bastante para se pensar que, se não há outro registro como
esse, só pode ser porque nunca o houve.
Não parece provável que o Conde de Pombeiro,
que já em 1786 era Regedor da Casa da Suplicação, continuasse no cargo
até 1821. Talvez, sendo já idoso ou doente, houvesse intenção de conservá-lo,
mas não tenha podido tomar posse, o que explicaria a estranha omissão.
Botelho e Mosqueira, já substituindo o Chanceler, teria ido ocupando,
informalmente, também as funções de Regedor, o que explicaria o
registro dos almanaques e a referência de Vieira Ferreira.
Descentralização da Justiça
Pouco durou em Portugal a presença de Junot,
mas a situação de beligerância demoraria a ficar definitivamente controlada.
Um deslocamento das proporções do efetuado em 1807 não poderia ser repetido
a cada avanço ou recuo das tropas francesas e, como já foi mencionado,
o Brasil era cogitado como sede da monarquia desde muito tempo antes do
perigo napoleônico. Perdido o seu poderio marítimo, dependendo dos ingleses
até mesmo para conduzir o rei, Portugal não era, na Europa, senão um país
menor, vivendo da intermediação dos produtos das colônias que ainda conseguira
conservar.
A mudança de fato, da capital do Reino, colocou
em evidência uma nova situação: Territorialmente, o Brasil sobrepujava
a qualquer país europeu. Economicamente, apesar da sujeição colonial,
já demonstrara uma capacidade de produção igualmente respeitável. Uma
coroa baseada nele poderia contar-se entre as grandes potências do mundo.
Isso ficou evidente em 1815, quando, pressionado pelas circunstâncias,
D. João optou por elevar o Brasil à categoria de Reino e redefinir os
seus domínios como "Reino Unido de Portugal, e do Brazil, e Algarves".
Muito além do reconhecimento à população que
lhe dera asilo, a medida visava redefinir o jogo do poder entre as grandes
potências que deveriam participar do Congresso de Viena, onde se acertaria
a paz européia. Como representantes de Portugal e Algarves, os ministros
portugueses seriam apenas ouvidos, sem participação nem voto nas discussões
gerais. Como ministros do novo Reino Unido, conseguiram sentar-se entre
as grandes potências.
Não parece ter sido D. João o autor da idéia,
atribuída ao ministro francês Charles Maurice de Talleyrand-Périgord.
Representante de uma potência vencida e de uma monarquia precariamente
restaurada, Talleyrand teria procurado, através dessa mudança, aumentar
o seu próprio campo de manobra incrementando o poder de decisão dos seus
aliados. faz-se evidente, entretanto, que o príncipe regente se encontrava
cada vez mais à vontade no Brasil.
Passado o período inicial de adaptação e restauração
das instituições básicas, essa proximidade entre D. João e seus súditos
brasileiros começaria a render frutos. Não houve grandes reformas de base
(como não seria de esperar, dadas a precariedade da situação - o príncipe
governava, ainda, como regente, em nome da sua mãe - e a pouca disposição
de D. João para os atos de governo), mas a presença da Corte no Brasil
possibilitou inúmeras incorporações, que poderiam ser consideradas de
rotina mas demoravam a acontecer quando se dependia da Península.
Novas comarcas foram instaladas, novas vilas
foram fundadas ou elevadas a essa categoria, a partir de povoados pré-existentes.
Cargos de juiz de fora foram criados, ainda em 1808, em Santo Antônio
da Sé, Magé, Angra dos Reis, Parati, Goiana e Porto Alegre. Em 1810 chegou
a vez da Bahia, onde foram criados juízos de fora em Jaguaribe, Maragogipe,
Santo Amaro, São Francisco e Rio de Contas. No mesmo ano, o ouvidor da
comarca dos Ilhéus passou a acumular o recém-criado cargo de Juiz Conservador
das Matas.
Também em 1810 foram instalados juízos de
fora em Bom Sucesso, Minas Gerais, e Fortaleza, no Ceará. Em 1811 foi
a vez de Marajó, Parnaíba, Campo Maior, São João d’El Rei, Sabará, Vila
Rica e Vila do Príncipe. Nos anos posteriores, talvez por ter sido já
posto em dia o que já eram necessidades atrasadas, o ritmo cai, registrando-se,
apenas, uma ou duas instalações por ano.
Embora não sejam criados novos tribunais,
várias medidas, neste período, visam à descentralização da justiça e ao
desafogamento das cortes superiores. Além da instalação de juízos de fora,
dotados de maior alçada que os ordinários, novas juntas de justiça
são criadas nas capitanias de Mato Grosso e Rio Grande do Sul e restaurada
a que fora desativada em São Paulo.
Eram essas juntas reuniões, convocadas conforme
a necessidade, para julgar agravos e apelações que, sem elas, deveriam
ser encaminhados às relações, julgando "breve, e summariamente os Réos
de todos, e quaesquer crimes, salvo os de Leza Magestade de primeira cabeça,
e que não forem Ecclesiasticos, ou Militares, que gozem do Privilegio
do Foro". Estavam compostas do governador, como Presidente,
do ouvidor da comarca, como Juiz Relator e dos juízes de fora da
cidade sede, e das vilas vizinhas. Na falta de juízes de fora, seriam
convocados advogados conceituados ou vereadores, "vindo sempre a ser
formada de seis votos, e vencendo-se as Condemnações de dez annos de Degredo
para cima por quatro votos conformes, e por tres em todos os casos".
Em São Luiz do Maranhão, foi instalado um
Conselho de Justiça Militar "composto do Governador e Capitão
General como Presidente, [...] de tres Officiaes da Maior Patente e antiguidade
da Tropa de Linha, [...] e de tres Desembargadores da Relação, sendo o
Relator o Ouvidor Geral do Crime, ou quem seu Lugar servir, e adjuntos
os dous mais antigos da mesma Relação".
Existia já um conselho similar na Bahia, instalado
em 1806, e existira mais um no Rio de Janeiro, absorvido pelo Conselho
Superior em 1808. Era função de todos eles o julgamento, em caráter de
recurso, dos delitos cometidos por militares e apreciados em primeira
instância pelos conselhos de guerra.
Com a mesma finalidade de descentralizar os
julgamentos e desafogar os órgãos centrais, foram instaladas, em Goiás
e Mato Grosso, Juntas do Desembargo do Paço, compostas "do Governador
e Capitão General, do Ouvidor da Comarca [...] e do Juiz de Fóra"
com funções semelhantes às das Mesas do Desembargo do Paço que existiam
nas Relações. Além de considerar e conceder graças e perdões habitualmente
reservados a essa instituição, tinham como missão apurar as pautas, nomeando
"os competentes Vereadores, e mais Officiaes da Camara, [...] da
Villa Capital, e das outras em que houverem Juizes de Fóra; devendo ser
nomeados por Pelouros nas outras em que os não houverem".
Justiças Privativas
Até a vinda do príncipe D. João, a estrutura
judiciária da colônia era bastante genérica. Na ordem municipal, estava
representada pelos juízes ordinários - já substituídos, em algumas cidades,
por juízes de fora - e pelos juízes de vintena. Numa ordem mais elevada,
achavam-se os ouvidores de comarca, os ouvidores gerais e, por fim, as
relações, todos eles julgando qualquer tipo de feitos e apenas diferenciando-se
pela sua jurisdição e alçada. Embora setoriais, os juízes do povo eram,
mais do que verdadeiros juízes, representantes políticos e agentes de
auto-regulação, posto que, cometendo um delito comum, os seus jurisdicionados
saíam da sua competência.
Na ordem econômica, a mineração atingiu, principalmente
no século XVIII, uma transcendência capaz de justificar, pelo próprio
interesse da Coroa, o estabelecimento de uma jurisdição particularizada.
Entretanto, não chegou a motivar a designação de juízes especializados
e sim, apenas, a atribuição de funções judiciais a autoridades essencialmente
administrativas, tais como os Intendentes do Ouro e dos Diamantes, que
estavam habilitados para conduzir devassas, pronunciar e sentenciar os
réus de delitos especificamente relacionados à atividade de mineração.
Pretendia-se, essencialmente, evitar o descaminho do ouro, que entrava
clandestinamente no mercado sem o pagamento dos devidos impostos.
Os nobres, tradicionalmente diferenciados
perante a legislação e à Justiça, demoraram vários séculos para conseguir,
na América, o juízo privativo que derivava da sua condição de privilegiados.
Poucos seriam os fidalgos de origem, predominando, entre os imigrantes
de maior condição, os chamados fidalgos da casa d’El Rei, ou seja,
homens sem linhagem nobre, que adquiriam seus títulos como reconhecimento
por serviços especialmente meritórios ou como complemento necessário ao
exercício de funções na alta administração do Reino.
De fato, não havia uma Justiça privativa de
determinados indivíduos ou setores, porque não existiam, na colônia, esses
indivíduos ou setores em número e importância suficiente para motivar
da Coroa - longínqua e desinteressada - o estabelecimento e regulamentação
desses privilégios. Apenas os donatários - pela sua particular condição
de investidores e conquistadores - receberam, no período inicial, imunidades
excepcionais para si e jurisdição quase absoluta sobre os seus subordinados.
É verdade que a Igreja reivindicava - e, em
muitos aspectos, conseguia - a plena jurisdição sobre os seus membros
e até mesmo sobre as causas com leigos onde algum clérigo estivesse envolvido,
mas isso era uma prática geral, já existente na legislação peninsular
e aplicada de forma tão genérica quanto a jurisdição civil. A Justiça
eclesiástica alcançava a Igreja toda, entendida como instituição universal,
e não apenas a determinados órgãos ou membros que tivessem recebido privilégios
especiais.
A transferência da Corte iria alterar essa
situação. Não apenas um número considerável de nobres e validos partilhou
da fuga da família real, como grandes interesses comerciais e financeiros
acompanharam a mudança de sede da monarquia. Mesmo confiando numa rápida
restauração, os juízos privativos já existentes na península não poderiam
atender satisfatoriamente as causas iniciadas no Brasil. Tornava-se imprescindível
criar outros, mais próximos, capazes de julgar in situ os litígios,
cada vez mais numerosos.
O primeiro cargo a ser criado - antes mesmo
da instalação da Casa da Suplicação - foi o de Juiz Conservador dos
Ingleses, regimentado por alvará real de 4 de maio de 1808. Não poderia
ser de outra maneira. Desde que D. João IV se apoiara na Inglaterra para
consolidar a Restauração de 1640, a influência desse país sobre Portugal
foi não apenas constante como sempre crescente. Quando o futuro D. João
VI embarcou para o Brasil, não apenas boa parte das finanças do Reino
estava em mãos inglesas como foi uma esquadra dessa nacionalidade que
lhe deu condução e escolta até chegar ao Rio de Janeiro. Nessas circunstâncias,
mais do que a concessão de uma graça ou privilégio, a nomeação, no Brasil,
de um Juiz Conservador dos Ingleses - cargo, aliás, já há muito tempo
existente na península - tornava-se uma obrigação e uma necessidade política
e diplomática.
Como todos os magistrados a serviço da Coroa,
o Juiz Conservador dos Ingleses, devia ser, necessariamente, português,
mas a sua fidelidade aos interesses britânicos era garantida pela forma
de escolha. O candidato era apontado pelos súditos ingleses domiciliados
na sua jurisdição e confirmado pelo embaixador ou ministro da Grã Bretanha.
Ao rei cabia, apenas, nomear ou vetar o indicado e, nesse último caso,
nova eleição deveria ser feita - sempre à escolha da comunidade britânica
- até se encontrar um candidato que fosse aceito pelo soberano português.
Ainda em 1808, foram criadas, no Rio de Janeiro,
duas vagas de Juiz do Crime, com atribuições semelhantes às dos
juízes de fora, mas com jurisdição exclusivamente criminal e acumulando
a responsabilidade do policiamento da Capital. Posteriormente, o mesmo
cargo seria criado na Bahia. Embora não represente, como o de juiz conservador,
uma jurisdição de privilégio, a sua criação é, também, um sinal da especialização
da Justiça que, ganhando em complexidade, começava a exigir a criação
de órgãos de competência mais diferenciada.
Outro cargo relativamente especializado foi
o de Juiz das Sesmarias, criado por alvará de 25 de janeiro de
1809. À diferença dos anteriores, limitados, inicialmente, à cidade do
Rio de Janeiro, esses juízes deveriam atuar em todo o território, sendo
nomeados pelas mesas do Desembargo do Paço ou pelos governadores a partir
de listas tríplices propostas pelas câmaras e mesas de vereação. Eram
providos por três anos e competia-lhes a medição e demarcação das sesmarias,
ressalvando-se, entretanto, o direito das partes a submeter os conflitos
à justiça ordinária se assim o achassem conveniente. Das suas decisões
podiam ocorrer recursos para os ouvidores das comarcas.
Mas o maior grau de especialização acontecia
quando um magistrado era considerado competente para conhecer, com exclusividade,
as causas que envolvessem um determinado órgão ou instituição. Em geral,
não era constituída uma vaga exclusivamente com essa finalidade. A incumbência
era dada, cumulativamente, a um desembargador membro da Casa da Suplicação
ou de alguma das Relações que, por sua proximidade, resultasse mais adequada.
Assim, em 8 de julho de 1811, foi criado o
cargo de Juiz Privativo dos Feitos da Santa Casa da Misericórdia
do Rio de Janeiro, sendo incumbido dessa tarefa o Corregedor do Crime
da Casa da Suplicação, desembargador Francisco Lopes de Souza de Faria
Lemos, que assumiu a nova responsabilidade em 3 de setembro desse mesmo
ano. Governava-se pela competência atribuída, nas Ordenações Filipinas,
ao Juiz dos Feitos da Misericórdia e Hospital de Todos os Santos de Lisboa.
Com similares critérios foi criado, em 29 de maio de 1815, o cargo de
Juiz Conservador do Hospital dos Lázaros.
Mas eram outros privilegiados que iriam motivar
o maior número de nomeações. Além do Juiz dos Cavalheiros, criado
na Mesa do Desembargo do Paço e da Consciência e Ordens para julgar privativamente
os membros das ordens militares, diversos cargos se tornaram necessários
pelo acelerado desenvolvimento da atividade econômica.
Pelo alvará de 14 de agosto de 1809, foram
criados os cargos de Juiz dos Falidos, Conservador dos Privilegiados
e Superintendente Geral dos Contrabandos, integrando a organização
da Junta de Comércio, Agricultura, Fábricas e Navegação mas sendo exercidos
por desembargadores membros da Casa da Suplicação. Ao Juiz dos Falidos
competia processar e julgar, civil e criminalmente, as falências dos comerciantes
matriculados. O Conservador dos Privilegiados entendia privativamente
nas causas cíveis entre negociantes da Junta. Já o Superintendente Geral
dos Contrabandos conhecia das fraudes na importação e exportação de mercadorias
e do descaminho de direitos e retenções. Embora fossem três cargos relativamente
independentes, era comum decidirem juntos ou com a ajuda de outros desembargadores
designados pelo Regedor.
Também o Banco do Brasil chegou a ter o seu
Juiz Privativo das Causas e Dependências, criado pelo alvará de
20 de outubro de 1812. Esse cargo, também reservado aos membros da Casa
da Suplicação, foi confiado ao desembargador José Caetano de Paiva Pereira,
empossado em 22 de dezembro de 1812. Critério semelhante, no que refere
à hierarquia dos magistrados, seria adotado no cargo de Juiz Privativo
da Caixa de Desconto da Bahia, criado em 16 de fevereiro de 1816.
Entretanto, atendendo à distância e à existência de um outro tribunal
no local, o cargo foi confiado ao chanceler da Relação da Bahia.
Além dessas instituições de maior destaque,
outros privilegiados tinham, também, seus juízes conservadores. Contavam-se
entre eles os concedidos aos moedeiros e às companhias de lavras de Minas
e Cuiabá, em 16 de janeiro e 12 de agosto de 1817. Havia também um conservador
para cuidar das questões levantadas sobre os contratos reais de dízimas,
um juiz de minas, com sede em Ipanema, um conservador da fábrica de ferro
e outros.
O juízo por arbitragem foi contemplado no
regulamento da Casa de Seguros, aprovado em 3 de outubro de 1812. Era
obrigatório em todas as causas sobre seguros e permitia recurso para a
Junta de Comércio, Agricultura, Fábricas e Navegação.
Finalmente, já na regência de D. Pedro e faltando
menos de três meses para a Declaração da Independência, os recém-nascidos
delitos de imprensa motivaram a aparição de uma estrutura judicante absolutamente
nova. Até a chegada de D. João VI, não existira no Brasil imprensa alguma.
As poucas tentativas feitas para importar ou construir máquinas impressoras
foram sempre duramente combatidas pela Coroa, que considerava perigosa
e de difícil controle a produção de materiais impressos nas colônias.
Mas a situação inverteu-se radicalmente quando, estabelecida a Corte no
Rio de Janeiro, essa cidade passou a ser, de fato, a capital do reino.
Em 1822, a imprensa era já um arma temível
e, enfrentando o Príncipe as decisões das Cortes de Lisboa, encontrava-se
no meio de uma luta entre facções virtualmente irreconciliáveis, brigando
a uma pela restauração do domínio colonial enquanto a outra tentava consolidar
as conquistas alcançadas, chegando a prognosticar a Independência, e até
mesmo a República.
Quinze dias antes, em 3 de junho, D. Pedro
convocara uma Assembléia Geral Constituinte e Legislativa com claras
tendências independentistas. O controle da imprensa transformara-se, a
partir desse momento, num problema vital para a consolidação dos seus
projetos. Mas os tempos tinham mudado e não era prudente "offender
a liberdade bem entendida da imprensa [...] que tantos bens tem
feito á causa sagrada da liberdade brazilica".
Assim, procurando "fazer applicaveis [...]
instituições liberaes adoptadas pelas nações cultas", em 18 de junho
um decreto com a rubrica do Príncipe instituía um tribunal popular, constituído
por "vinte e quatro cidadãos escolhidos entre os homens bons, honrados,
intelligentes e patriotas", para apreciar, como "Juízes de Facto",
as causas de abuso da liberdade de imprensa.
Esse recurso, baseado numa seleção de cidadãos
leigos, dos quais se esperava não um julgamento tecnicamente avalizado,
mas uma apreciação espontânea e representativa do sentir da comunidade
- e, na circunstância específica, também um julgamento político que aventasse
as acusações de absolutismo -, é o primeiro precedente, em território
brasileiro, do procedimento hoje conhecido como Tribunal do Júri.
As ações eram iniciadas pelo Procurador da
Coroa e Fazenda que, a partir desse decreto, passou a acumular funções
de censor, ficando os impressores obrigados a encaminhar as publicações
para sua apreciação.
No Rio de Janeiro, a escolha dos "Juízes
de Facto" era feita pelo Corregedor do Crime da Corte "que por
este nomeio Juiz de Direito nas causas de abuso da liberdade de imprensa".
Na Bahia, Maranhão e Pernambuco, que contavam com tribunais instalados,
essa função caberia aos Ouvidores do Crime das respectivas Relações,
ficando, no resto do Brasil, por conta dos Ouvidores das Comarcas.
Dos vinte e quatro escolhidos, podia o acusado
recusar dezesseis, ficando o júri constituído pelos oito restantes. Além
de nomear os jurados, o magistrado incumbido presidia as sessões "como
se procede nos Conselhos militares de investigação, e accommodando-se
sempre ás fórmas mais liberaes, e admittindo-se o réo á justa defeza que
he de razão, necessidade e uso".
A missão dos jurados era, exclusivamente,
determinar se o acusado era ou não culpado daquilo que lhe era imputado.
Chegando-se a um veredicto de culpabilidade, era o magistrado quem, atendendo
às leis em vigor, determinava a pena a ser imposta.
As leis antigas, consideradas "muito duras
e improprias das idéas liberaes dos tempos em que vivemos", foram
substituídas, para esse fim, pelos artigos 12 e 13 do título 2° das Cortes
de Lisboa de 1821 "que mando nesta unica parte applicar ao Brazil".
Entretanto, os autores "de pasquins, proclamações incendiarias, e outros
papeis não impressos" seriam, ainda, "processados e punidos na
fórma prescripta pelo rigor das leis antigas".
