Oficina de sapateiro, no Rio de Janeiro.
(Gravura de Jean Baptiste Debret) |
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Memória da Justiça Brasileira -
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Capítulo 11
Mesteres, Juízes dos
Ofícios e Juiz do
Povo |
Não gozaram, os artesões portugueses, do
grau de organização já atingido pelos seus pares da Europa central. Saindo
lentamente de um feudalismo de base essencialmente agrária, Portugal não
lhes oferecia um grande campo de trabalho. Nos centros do poder feudal, o
artesão era submisso ao seu senhor, quase uma propriedade particular, como
os servos que cultivavam as terras. Os burgos eram incipientes e, embora
D. Afonso Henriques já tivesse se apoiado neles para consolidar à
monarquia, ainda distavam muito de adquirir uma atividade econômica de
consideração. Mesmo assim, não é improvável que já possuíssem alguns
vínculos mutuários incipientes.
Quando o Mestre de Avis se viu envolvido na
conspiração que - um tanto inesperadamente - o levaria ao trono com o nome
de D. João I, não era chegado ainda o tempo em que as naus concentrariam
na península boa parte do comércio do mundo, mas Lisboa, sede da monarquia
e, portanto, a cidade mais desenvolvida da época, contava já com uma
classe artesanal medianamente organizada e essa classe, mais instruída e
independente que os outros setores, se evidenciava como agente mobilizador
das reivindicações populares. Como já foi registrado num capítulo
anterior, o plano dos conspiradores não passava pela coroação de D. João e
sim, apenas pela morte do conde de Ourém e o cerco à rainha, mas a
intervenção popular fez com que o controle do movimento fugisse da mão dos
seus iniciadores.
Coroado, D. João I, de Avis, não se esqueceu
de quem abrira o seu caminho para o trono. Antes mesmo de ser confirmado
pelas Cortes de Coimbra, o "regedor e defensor do reino", a pedido
dos "homens bõos dos mesteres procuradores e moradores da nossa nobre
cidade de lixboa", determinou "que os juizes nem regedores nem
procurador que ora na dicta çidade som ao diamte forem nam [...]
façam pusturas nem hordenaçoões [...] nem alçem fintas nem
talhas [...] nem prometam nem dem seruiços [...] nem possam
fazer emleiçam de juizes nem vereadores nem procurador nem dem
ofiçioos" sem que "dous homeens boõs de cada huu mester sejam
chamados e que se façam seguumdo a mayor parte delles acordar".
Não sabemos ao certo qual era a estrutura
dos grêmios antes dessa data, mas há indícios de terem atingido,
especialmente nas cidades principais, um grau relativamente avançado de
mutualismo e até uma certa expressão política. Gama Barros observa que
"quando em casos extraordinários o concelho era chamado com pregão a
deliberar, os homens dos mesteres, pelo menos em Lisboa, concorriam
tambem á reunião", apontando especificamente a "avença
celebrada [em 1285] entre o rei D. Diniz e o concelho", a que
assistiram "alfaiates, cortidores, pelliteiros, sapateiros, correeiros,
pescadores e ferreiros". Tambem no Porto - que, pelo seu maior
desenvolvimento comercial e industrial, oferecia condições vantajosas para
os ofícios mecânicos - registra-se, na reunião da Câmara realizada em 10
de julho de 1368, a presença de curtidores, seleiros, armeiros, alfaiates
e sapateiros. A ocorrência, anotada por António Cruz, é significativa
porque, enquanto as reuniões do Concelho eram chamadas em situações
excepcionais e abertas ao povo, as da Câmara eram restritas a seus membros
e, com freqüência, realizadas a portas fechadas. Não sabemos se isso
acontecia regularmente, mas, a partir de 1390, data das primeiras atas
conservadas, essa presença parece ter sido habitual.
Embora não se possa precisar a época certa
em que as distinções começaram a ser consideradas e regulamentadas,
existiam diversas categorias de artesões. Aquele que estava habilitado a
trabalhar em forma independente e possuir a sua própria loja, era chamado
de "oficial mecânico". Chegava-se a essa condição acompanhando,
como "aprendiz", o trabalho de um "mestre", ou seja, um
oficial que atingira à excelência no seu oficio, adquirindo, em razão
disso, o direito e a capacidade de ensinar. Dentre os mestres de cada
ofício eram escolhidos os "juízes", encarregados de examinarem os
aprendizes e oficiais e fornecerem as respectivas habilitações. Fora essas
categorias, integradas por artesões de ocupação estável e relativamente
especializados, existiam "jornaleiros", auxiliares irregularmente
contratados para executar tarefas específicas, no Brasil substituídos
freqüentemente por escravos.
A lei de D. João I não especifica a forma de
eleição nem os cargos que, posteriormente, encontramos na representação
dos mesteres. Assumimos que a escolha recaísse, preferencialmente, nos
mestres de cada ofício. Quanto aos cargos, o mais destacado era o de
"juiz dos mesteres", algo como um juiz de oficio com autoridade
sobre todos os mesteres. Talvez por comparação e contraste com o juiz
ordinário - que presidia às sessões da Mesa da Vereação - e atendendo à
sua origem e ao seu caráter implicitamente representativo das classes
baixas, esse cargo passou a ser conhecido, mais habitualmente, como
"juiz do povo".
Os "mesteres" ou ofícios reconhecidos
- provavelmente em razão de contar com um número apreciável de praticantes
e uma estrutura gremial mais ou menos organizada - eram doze. Escolhidos,
conforme a disposição de D. João, dois representantes de cada mester,
formava-se um corpo de vinte e quatro membros que iria adquirir, para
juízes, vereadores e outros "homens bons" da comunidade, um poder
temível. Rapidamente, esse poder se estenderia às restantes cidades. Nas
Cortes de Évora, em 1436, os representantes dos mesteres de Santarém
declararam-se pagadores da maior parte dos impostos e desconhecedores do
que se fazia com eles, alegando que, apesar do avultado recolhimento, não
eram feitas na vila as obras necessárias ao bem-estar da população. D.
Duarte aceitou o arrazoado e dispôs que dois representantes dos mesteres
assistissem à tomada de contas aos vereadores e tivessem autoridade para
requisitar o que entendessem ser para bem da terra. Aparentemente, durante
o reinado de D. Afonso V generalizou-se a presença dos mesteres, com voz e
voto, às sessões das câmaras.
Evidentemente, os fidalgos da corte e a
aristocracia rural, que, até o momento, exerciam o pleno domínio da
vereação, não poderiam aceitar passivamente essa intromissão de
trabalhadores manuais até então desprezados e marginalizados. São
abundantes, na documentação da época, os pronunciamentos que questionam a
idoneidade dos mesteres para intervir nas vereações. Ainda um século após
a lei de D. João I, continuavam as acusações contra os representantes dos
mesteres, que "não conhecem que cousa é politica, nem sabem que cousa é
honra, nem quando deve a honra preceder o proveito", lamentando que os
"bons antigos cidadãos, e aquelles que grandemente conhecem e conservam
o serviço do rei, hajam de padecer sob a fraqueza, mingoa, penuria e
pobreza de entender dos plebeus dos mesteres".
Nem sempre esses ataques eram frontais. Mais
sutilmente, as Câmaras aceitavam os "mesteirais" no que parecia ser
da sua incumbência específica e tentavam marginalizá-los do resto da
administração municipal. Como agrupações de ofícios, os mesteres podiam
ser utilizados como agentes de auto-regulação, fiscalizando o exercício
dos respectivos ofícios no que se refere à habilitação profissional,
tabelamento de preços etc. Contavam, nesse aspecto, com a vantagem do seu
conhecimento específico e, mais do que rivalizar com juízes e vereadores,
constituíam-se em valiosos colaboradores.
Mas D. João lhes dera poderes bem mais
amplos, autorizando-os a "estar na Camara pera toda a cousa que se
ouvesse de ordenar por bom regimento & serviço do Mestre". E os
mesteirais insistiam em defender esse direito. Assim, requisitavam, em
nome do povo, tudo o que achassem necessário ao bem comum e insistiam em
participar, com voz e voto, nas vereações, usando, não raro, da pressão
direta, à cabeça das multidões por eles mobilizadas. Em razão de sua maior
organização e presença política, convertiam-se em porta-vozes das classes
inferiores, e elas os reconheciam como tais, reforçando assim o seu poder.
Em 1506, D. Manuel I resolveu extinguir a Casa dos Vinte e Quatro, de
Lisboa, em represália pela matança de cristãos novos, em que vários dos
seus membros tinham participado ativamente, mas, com pouco tempo, foi
restabelecida e, em 1539, foi novamente regimentada. Igual punição foi
aplicada à cidade do Porto, em 1757, em castigo pela participação dos
mesteres no motim de 23 de fevereiro. O prestígio popular até aí adquirido
fica evidente no fato de, mesmo doente, o juiz do povo ter sido carregado
numa cadeira, à cabeça da manifestação.
Mesteres na Bahia,
1581/1583
A primeira aparição dos mesteres na
administração municipal brasileira deve-se a uma manobra política do
ouvidor geral Cosme Rangel de Macedo. Em 1581, imprevistamente falecido o
governador Lourenço da Veiga, foi constituída uma junta provisória
integrada pelo ouvidor geral, o bispo e a Câmara de Vereadores. Essa junta
deveria governar até à chegada de um substituto enviado pela Coroa, mas
Rangel extrapolou a autoridade que lhe fora conferida a tal ponto que o
bispo e vários integrantes da Câmara optaram por distanciar-se do governo
e abandonar a cidade. Dono da situação, o ouvidor aproveitou para
substituir os conselheiros faltantes com partidários seus e, conhecedor
das leis que, na península, permitiam a representação dos ofícios
mecânicos no poder municipal, organizou a primeira eleição de mesteres de
Salvador.
Parece que, já nessa época, confundia-se o
significado da palavra "mesteres", originalmente indicativa dos
ofícios - "misteres", na linguagem atual - com as pessoas e os
cargos dos representantes desses ofícios na administração pública. Assim,
em diversas disposições se alude a haver, nas câmaras, "mesteres" e
não "homens bons de cada mester", como aparece especificado nas
leis mais antigas. Outra confusão bastante freqüente era a de
"mesteres", que, como já foi dito, identificava o oficio ou, mais
recentemente, os seus representantes, com "mestres" que, embora
pudessem exercer, cumulativamente, essa função representativa,
distinguiam-se especificamente pela excelência nos seus ofícios e pela
capacidade de ensinar.
Ao que tudo indica, a prerrogativa de
possuir mesteres não era dada a todas as vilas e cidades, senão apenas
àquelas que do rei a recebiam como graça. Assim se depreende da resposta
de D. João II aos procuradores de Lisboa: "que onde os ha, ha por beem
que sejam ouvidos [...] e que onde os nom ha, ha por beem que os
nom aja". O ouvidor geral excedia, portanto, as suas atribuições ao
criar essa representação, sem autorização da Coroa. Entretanto, não era
infreqüente que manobras audaciosas como essa fossem confirmadas a
posteriori. Às vezes, as autoridades superiores concordavam e aprovavam a
decisão, dispensando o não cumprimento das formalidades legais. Outras,
mesmo a contragosto, cediam à pressão dos interessados, permitindo que as
mudanças se consolidassem. É provável que o próprio ouvidor esperasse um
similar reconhecimento de fatos consumados para ser confirmado como
governador, esperança, talvez, estimulada pela situação de exceção que o
reino todo vivia a partir de 1580. A sua posição apresentava-se
politicamente fortalecida, posto que os artesões lhe eram fiéis e a sua
presença na Câmara lhe garantia o controle das decisões.
Mas essa situação de excepcionalidade não
chegou a consolidar-se. Os apelos dos setores lesados estimularam a reação
da Coroa e, em 1583, Manuel Telles Barreto assumiu o governo pela força.
Cosme Rangel foi deposto do cargo e seguiu em correntes para ser julgado
em Lisboa. Os mesteres, destituídos da proteção do ouvidor geral e
incapazes de defender o privilégio obtido contra a autoridade do novo
governador, foram expulsos da Câmara, que foi reinstalada com a sua
estrutura tradicional.
Mesteres e Juiz do Povo, na
Restauração
Não conservamos provas documentais sobre
novas tentativas durante a dominação espanhola, embora, na sessão em que
essa representação foi restaurada, a Câmara de Salvador alegasse ter
havido uma provisão "a qual veio a esta Cidade, e se consumiu e
não quizeram que aparecesse pelos respeitos que lhes pareceu todo em dano
desta Republica, e fazendo-se deligencia sobre a dita Provisão se achou
noticia certa de haver vindo, e assim o declarou, Rui de Carvalho Pinheiro
Proprietario deste Officio de Escrivão da Camara que então servia, e
outras muitas pessoas da Governança, e Povo".
A excepcionalidade da situação favorecia as
tentativas audazes. A existência de uma autorização extraviada,
supostamente assinada pelo rei deposto, bem poderia ser apenas um pretexto
utilizado para facilitar a confirmação. Affonso Ruy parecia raciocinar
dessa maneira quando afirmou: "Tudo leva a crer que jamais fôra
deliberado pela Câmara, durante a sujeição espanhola, criar-se o juizado
do povo e fazer eleição de mestre, nem que sobre o assunto tivesse sido
consultado o rei de Castela, que aquiescendo, enviara uma provisão que se
extraviara". Mas a alegação seria reiterada. Em 24 de agosto, a Câmara
insistia, solicitando do rei a confirmação da eleição realizada "com
aprovação do governo deste Estado tendo muitos anos a consedido a Coroa
desse Reino por Provizão que se passou".
Procurando, ainda, outros elementos para
justificar a incorporação dos mesteres, os vereadores alegavam ter tomado
essa determinação "por quanto os negócios desta Republica pereciam
ordinariamente o govêrno da Republica por senão poder acudir a tudo",
acrescentando "que com este negocio feito cessaria a queixa que o Povo
tinha de andar esta Republica tão mal governada sem que os Almotaces
possam acudir a emenda dos vendeiros que [...] não dão cumprimento
as portarias da Camara". Fica evidente, pelo texto citado, que os
membros da Câmara concebiam a nova representação como um serviço auxiliar,
restrito a colaborar, apenas, em áreas especificas da administração.
Entretanto, o alvará de confirmação emitido em 1644 autoriza a existência
dos "misteres e Juiz do Povo [...] na fórma que os ha nas mais
Cidades deste Reyno, e com as mesmas isenções e
privilégios" o que, implicitamente, lhes dava voz para intervirem
nas sessões ordinárias. Essa ingerência, aparentemente não considerada
pelos vereadores, chegaria a ser, como já fora em outras cidades do reino,
fonte de numerosos conflitos.
Conforme a ata de 1641, foram chamados à
reunião "todos os Officiais dos Officios que costumam ser eleitos para
Mestres" e assim "assentarão entre todos que o número de Mestres
fosse doze he que os doze elegessem um Juiz do Povo e um Escrivão".
Atendendo à tradição, que pedia vinte e quatro representantes, essa
quantidade foi inicialmente eleita para depois, entre eles, serem
escolhidos os doze que representariam à classe nas sessões do período.
Foram, assim, empossados Afonso de Santiago, caldeireiro; Jorge Barreiros,
corrieiro; Domingos Gonçalves, alfaiate; Antonio Vieira, barbeiro;
Francisco Vieira, ourives; Gonçalo Alves, pedreiro; Francisco Rodrigues
Braga, sapateiro; Custodio Fernandes, tanoeiro; Manoel Ferreira, barbeiro;
Belchior Manuel, marceneiro; Manuel Lourenço, ferreiro, e Antonio da
Fonseca, alfaiate. Como Juiz do Povo, foi investido o comerciante lojista
Gonçalo de Oliveira. Alguns ofícios, como os de barbeiro e alfaiate,
aparecem representados duplamente, o que pode derivar do menor número de
ofícios presentes na colônia ou da diferença dos existentes com os
tradicionalmente admitidos.
Não parece que, em tempos de D. João I, os
grêmios tivessem grande influência sobre o acionar ulterior dos
representantes que escolhiam. No entanto, a partir da expansão marítima e
comercial, os ofícios mecânicos adquiriram tal desenvolvimento, e seus
interesses tal magnitude e variedade, que se fez necessária a sua reunião
freqüente e até rotineira. Assim, os vinte e quatro, que até o final do
século XV formavam apenas um colegiado de representantes, passaram a
constituir um corpo estável, com deliberações próprias e com uma casa onde
reunir os grêmios para a tomada das decisões mais transcendentes: a
"Casa dos Vinte e Quatro". Também os mesteres da Bahia
reivindicaram esse direito e, para essa função, foi-lhes cedida "a casa
que serviu de nella fazer Camara antes da que se fez nova".
Os Ofícios Mecânicos na Cidade do
Salvador
Não existiam, no Brasil colonial, oficiais
mecânicos em quantidade e qualidade comparáveis aos que podiam ser
encontrados em Portugal. Diversas atividades industriais estavam sob
monopólio e não podiam ser exercidas nas colônias. Das permitidas, boa
parte era encomendada a escravos, que não partilhavam das prerrogativas e
funções dos artesões livres. Daí que o poder das corporações fosse
relativamente restrito e dependessem da benevolência das autoridades para
obter alguma ingerência sobre as decisões de governo.
Conforme informações de Maria Helena Flexor,
existiam na Bahia os ofícios de carpinteiro, alfaiate, sapateiro,
pedreiro, padeiro, tanoeiro, ferreiro, serralheiro, ourives, vendeiro e
marchante. Anexos a esses ofícios principais existiam outros com menor
grau de independência, que exercitavam habitualmente atividades
auxiliares. Contavam-se entre eles os torneiros, marceneiros,
entalhadores, palmilhadores, botoeiros, curtidores, surradores, canteiros,
alvíneos, sergueiros, cerieiros, tintureiros, sombrieiros, funileiros,
barbeiros, espadeiros, corrieiros, latoeiros, armeiros, caldeireiros etc.
Havia, ainda, um terceiro nível, de artesões sem organização gremial, como
os douradores, esparteiros, seleiros, polieiros, anzoleiros etc.,
geralmente impedidos pela sua condição social de alcançarem um maior grau
de representação.
Era comum os escravos trabalharem como
barbeiros, sangradores, parteiras, vendeiros, polieiros ou carapinas, mas
não era infreqüente vê-los, também, exercendo ofícios regulamentados, como
os de pedreiro, sapateiro, ferreiro e alfaiate, o que enfraquecia
consideravelmente o poder de pressão dos artesões livres. Geralmente, cada
senhor possuía, no mínimo, um escravo especializado em cada um desses
serviços, reduzindo-se a freguesia das lojas estabelecidas às pessoas de
menor poder aquisitivo.
Pintores, escultores, engenheiros e
arquitetos não eram considerados oficiais mecânicos. Donos de um
conhecimento mais valorizado e servindo, apenas, aos grandes senhores, ao
governo e às organizações religiosas, recebiam tratamento de profissionais
liberais. Independiam da licença da Câmara e podiam escolher suas
condições de trabalho com maior liberdade mas, provavelmente por serem
poucos, não chegaram a integrar associações que lhes garantissem algum
grau de influência nas decisões político-administrativas.
Não eram muitos os brancos puros entre os
oficiais mecânicos e, mesmo entre os profissionais liberais, era grande a
incidência de mulatos. Alguns autores postulam que era considerado
degradante para um branco exercitar essas funções, o que não carece de
fundamento, considerando-se a tradicional aversão da nobreza ibérica pelos
trabalhos manuais. Entretanto, não é de se desprezar o fato de que o
mercado de trabalho era reduzido e desqualificado, como já foi mencionado,
pela concorrência, em certa medida desleal, do trabalho
escravo.
O Juiz do Povo e os
Ofícios
Cada ofício - ou, incluindo aqueles
considerados anexos, cada conjunto de atividades interligadas - era
regimentado pela Câmara, às vezes homologando os compromissos
espontaneamente assinados pelas confrarias de artesões. Habilitação
profissional, localização das lojas, condições e preços a serem cobrados,
eram todos aspectos a serem controlados pelo poder municipal. Não
surpreende que os vereadores contenplassem com bons olhos a entrada
daqueles que iriam tirar dos seus ombros tão pesadas responsabilidades.
A regulamentação municipal baseava-se nos
modelos proporcionados pelas principais cidades portuguesas, notadamente
Lisboa e Porto. A principal fonte escrita era o Livro de Regimentos
dos Officiaes Mecanicos de Lisboa, aprovado em 1572, ao qual se
agregava, como era habitual em todas as áreas, um abundante acervo de
direito consuetudinário.
As disposições municipais que regulamentavam
o exercício dos diversos ofícios eram chamadas de "posturas" da
Câmara e determinavam, entre outros aspectos, a forma da eleição dos
juízes e escrivães, os exames requeridos para a habilitação profissional,
os arruamentos e condições a serem cumpridas nos estabelecimentos dos
artesões e os preços a serem cobrados. Essas posturas eram lidas
publicamente, pelas ruas, praças, praias e arrabaldes, para que fossem
"bem entendidas por todo o povo e para que não alegassem
ignorância". A lista oficial dos preços a serem cobrados, conforme o
tipo e a qualidade dos serviços - chamada também, num sentido mais
restrito, de "regimento" -, devia ser exibida nas lojas "para
que o povo lea nella os preços das Obras que lhe vai encomendar", sob
pena de multa de quatro mil reis.
Cada ofício tinha seu regimento específico,
que os artesões adquiriam da Câmara por seiscentos reis. Os que não
estavam regimentados por ela se regiam pelos "compromissos" das
respectivas confrarias, sendo também obrigados a comprarem traslados
"para não alegarem ignorância em tempo algum".
Os aspirantes a oficiais mecânicos eram
examinados pelos juízes de ofícios com base num questionário sobre os
conhecimentos que se esperava possuíssem ou, mais habitualmente, na
encomenda de uma obra própria do ofício cujo reconhecimento estava sendo
pleiteado. Essa obra não tinha um prazo determinado, podendo levar vários
meses, conforme a complexidade da tarefa e a disponibilidade de tempo do
interessado, mas devia ser apresentada para avaliação ao juiz que fizera a
encomenda, mesmo no caso de ele já ter sido substituído por uma nova
eleição. Nessa hipótese, dava-se um prazo, a partir da data do
afastamento, para que o artesão apresentasse a obra pronta nas condições
já combinadas. Apenas no caso de esse prazo não ser cumprido, o artesão
deveria pedir uma revisão do seu caso às autoridades atuais.
O juiz do ofício não podia ser parente do
examinado até o quarto grau. Caso isso acontecesse, estava obrigado a
declarar o impedimento para que a Câmara designasse um juiz alternativo.
Via de regra, esse problema era resolvido convocando o juiz do ano
anterior para realizar a avaliação.
Satisfeito com os resultados das provas, o
juiz de ofício emitia uma "certidão de exame". Munido dessa
certidão, o interessado se apresentava diante da Câmara onde, após prévio
juramento e registro em livro a esse efeito dedicado, era transcrita, na
mesma certidão, uma "carta de exame e confirmação" assinada pelo
juiz ordinário - ou, se fosse o caso, pelo juiz de fora -, pelos
vereadores e pelo procurador do Conselho.
Os artesões chegados de outras regiões ou da
península deviam apresentar suas certidões à Câmara que, achando-as
válidas, as confirmava com a condição de que, enquanto permanecesse
trabalhando no termo, o interessado se sujeitasse às posturas do
município. Não possuindo certidão, deveriam apresentar-se a exame, em
igualdade de condições com os aprendizes locais.
A autoridade dos juízes não se esgotava no
ato da habilitação. Mesmo depois de estabelecidos, os artesões ficavam
submetidos à sua fiscalização. Os juízes de ofícios eram obrigados a
visitar, periodicamente, as tendas e lojas, vistoriar as obras e verificar
o cumprimento dos preços oficiais.
O artesão habilitado pela Câmara ficava
autorizado a empregar jornaleiros e admitir aprendizes. Podia contratar
qualquer trabalho próprio do ofício em que era habilitado mas não de
outros ofícios, sob as penas de multa e cadeia. Era obrigado a trabalhar
em loja aberta para a rua, sendo-lhe proibido fazê-lo em casa ou em lojas
internas. Também não lhe era permitido contratar em nome de outro artesão
ou continuar obra por ele contratada a não ser com explícito consentimento
da parte contratante.
Dentro do possível, cada ofício era
concentrado numa certa rua, operação chamada de "arruamento" e
controlada também pela Câmara. A cidade do Salvador ainda conserva, em
recordação desse costume, nomes como "Rua dos Ourives", "Rua dos
Algibebes" e "Baixa dos Sapateiros".
Também competia à Câmara regular a atuação
dos ofícios, bandeiras e confrarias. Essas denominações derivavam de
critérios diferentes quanto ao agrupamento dos artesões. O "ofício"
era o conjunto naturalmente formado pelos praticantes de um determinado
mister, existia pela própria existência dos seu integrantes e adquiria
status jurídico na medida em que era regulamentado. A "bandeira"
era a organização de um ou mais ofícios em volta da bandeira ou estandarte
do seu santo patrono, para participar das solenidades e se prolongava,
durante o ano, em diversas atividades cívico-religiosas. A
"confraria" era uma associação voluntária e permanente, de caráter
religioso-administrativo, em que adquiriam grande importância os aspectos
mutuários e previsionais. Ofícios, bandeiras e confrarias não tinham,
portanto, uma diferenciação precisa. De fato, se incluíam entre si,
tendendo a confundir-se e as distinções apontadas tinham, na prática, um
valor bastante relativo.
Entretanto, o controle da Câmara era
bastante restrito e variava conforme o tipo de associação. Os ofícios,
sujeitos prioritariamente à regulamentação municipal, eram os mais
expostos à sua intervenção. Daí o duplo interesse: dos representantes dos
artesões, que aspiravam a participar das decisões da Câmara, e dos
vereadores, para delegarem neles os aspectos mais árduos e rotineiros
desse controle.
As bandeiras, devido ao seu caráter
essencialmente cerimonial, organizavam-se em forma autônoma, mas deviam
garantir a presença dos seus membros e a parte correspondente no brilho
das comemorações. Além das bandeiras, insígnias e do vestuário a rigor,
algumas agrupações levavam máscaras e bonecos, gigantes, anões e outros
artifícios, bem ao gosto da época, incluindo danças não poucas vezes
tachadas de lúbricas e que acabariam sendo proibidas. Sendo o brilho das
solenidades uma responsabilidade do município, este tinha o direito e o
dever de cobrar essa participação e não era raro que as próprias bandeiras
e insígnias - especialmente as dos ofícios não organizados em confrarias -
ficassem guardadas na Casa da Câmara.
Já as confrarias, amparadas no seu caráter
religioso, contavam com um grau maior de autonomia. Perseguiam objetivos
de assistência e socorro mútuo. Contavam com juízes, cabido e assembléia
geral e a Câmara tinha pouca ou nenhuma autoridade sobre eles,
especialmente considerando o imenso poder com que a Igreja contava. Essas
associações, inicialmente de origem gremial, foram derivando aos poucos em
organizações classistas de caráter mais social e racial. A Santa Casa da
Misericórdia, fundada em Lisboa por um grupo de artesões, acabou
transformando-se na maior rede de assistência e previdência do Reino e
virou símbolo de status, especialmente para os magistrados, que estavam
impedidos de participarem de outras associações.
Anualmente, a Câmara convocava os oficiais
mecânicos para proceder à eleição dos seus juízes, que deveriam atuar de
janeiro a dezembro. Conforme o modelo peninsular, cada oficio deveria
eleger um ou dois juízes, um escrivão, um ou dois mordomos e mais alguns
auxiliares. O escrivão acompanhava os juízes nos exames de habilitação,
nas vistorias de obras e lojas e outras incumbências dos seus cargos. Os
mordomos eram responsáveis pela administração dos bens e o cuidado das
bandeiras e insígnias.
Participação Política e Conflitos
Mesteres e juiz do povo de Salvador
reuniam-se em bancada própria, não partilhando da mesma mesa que os
vereadores. Mesmo assim, não tardou a surgir uma certa animosidade.
Conforme o alvará que autorizara a sua participação "na fórma que os ha
nas mais Cidades deste Reyno, e com as mesmas isenções e privilégios",
os mesteres pretendiam intervir em todos os assuntos de ordem pública. Em
1643, antes mesmo do alvará que iria confirmar esses direitos, um membro
da Mesa denunciava que, nas vereações, "avia confuzão por votarem
nellas o Procurador do Conselho he os mesteres", exigindo "que não
fossem admittidos maes votos que os dos mesmos juizes he vereadores salvo
nos cazos que les toca".
Como era previsível, o procurador, Paulo do
Rêgo Borges, protestou energicamente, alegando que esse direito era
próprio do seu cargo "desde o principio que esta Cidade se fundou todo
o presente que como estilo he ley inviolavel". Mesmo em situação
difícil, posto que a presença dos mesteres se sustentava, apenas, num
provimento temporário do governador, o mestre Jorge Barreiros levantou a
voz para declarar que "não queria maes que o lugar que os mesteres da
Cidade de Lixboa têm por seu Regimento".
Estabelecida a controvérsia, a decisão da
Mesa de Vereação foi submetida ao exame do ouvidor, D. Diogo Bernardes
Pimenta, que lhe deu provimento parcial, salvaguardando o direito
adquirido dos procuradores, mas excluindo juiz do povo e mesteres das
votações de ordem geral. Longe de acabar com o conflito, a decisão foi
interpretada como um sintoma da prepotência das classes dominantes e
ajudou a depositar na figura do juiz do povo o apoio e a esperança dos
oprimidos.
A partir daí, mesteres e vereadores passaram
a constituir dois bandos dificilmente reconciliáveis. À exclusão das
votações que não lhes dissessem respeito, agregou-se, em 1645, a proibição
de assinarem atas e livros de vereação. Em represália, em 1646, vago o
cargo de juiz ordinário pela recusa do capitão Paulo Cardoso de Vargas,
mesteres e juiz do povo se recusaram a participar na escolha do
substituto, restringindo, implicitamente, a validade do ato.
Não era raro, em verdade, os juízes do povo
propiciarem medidas de governo de interesse geral, às vezes chegando a
mobilizar multidões em apoio aos seus requerimentos. Acabavam de
integrar-se à administração municipal, em 1641, quando solicitaram a
completa revisão dos lançamentos fiscais. Em 1642, voltando-se para o
controle dos mais poderosos entre seus próprios membros - os prateiros e
ourives -, formaram uma comissão para verificar quanto esses artesões
podiam "ganhar por ano pera deles se lhes tirar a parte que lhe couber
o asento feito neste livro para se socorrer os soldados".
Em 1646, mesmo no auge do conflito que
mantinha com os vereadores, o juiz do povo Manuel Gonçalves Camanho
solicitou e obteve a proibição do fabrico de aguardente, sob a alegação de
que "não servia para mais de grande escandalo e roubos". A medida
desafiava os já poderosos senhores de engenho, principais envolvidos na
fabricação e comercialização do novo produto, mas contava com o apoio dos
comerciantes - interessados em proteger a venda do vinho importado de
Portugal - e dos setores administrativos locais, posto que esse vinho
gerava um imposto que era aplicado à manutenção da tropa. Os fabricantes,
por sua parte, alegavam a necessidade de promover o consumo dos produtos
da terra, o aproveitamento econômico dos subprodutos da elaboração do
aguardente e a possibilidade de novas e maiores rendas que o crescente
consumo iria gerar para a Coroa. O governo peninsular, mais preocupado em
defender seus próprios proventos que em garantir a saúde e a ordem na
colônia, só aceitou a decisão da Câmara em troca de um acréscimo no
imposto sobre o azeite que compensasse essa perda na
arrecadação.
O conflito de poderes com os setores
tradicionais da Câmara arrefeceu em 1710, quando os vereadores, levando ao
extremo as limitações à atividade do juiz do povo e dos mesteres,
dispuseram que "viessem somente a este Senado requererem nos lugares
que para seus assentos estão deputados, aquillo que entendessem hera util
ao Povo, e, que feitos os dittos requerimentos sahissem para fora
[...] da Caza do Senado [...] por haverem as resoluções dos
negocios e segredos que só devem ouvir os vereadores".
A resposta não se fez esperar. Aproveitando
a inquietação provocada por um aumento de mais de 100 % sobre o preço do
sal, o juiz do povo, Cristóvão de Sá, o mister Domingos Vaz Fernandes e o
escrivão Manoel de Jesus apresentaram-se na Câmara à cabeça de uma agitada
multidão. O novo preço - determinado por provisão da Coroa - não pôde ser
modificado, mas os representantes do povo conseguiram, mais uma vez, serem
ouvidos em Conselho sobre um assunto de interesse geral da população.
A Extinção
Essa exacerbação das hostilidades não era
alheia à progressiva concentração do poder municipal em mãos da Coroa.
Desde 1696, Salvador não elegia mais juízes ordinários, substituídos que
foram por juizes de fora. Em 1705, os próprios vereadores passaram a ser
designados pelo Desembargo do Paço, embora se mantivesse a exigência de
serem vizinhos da cidade e seu termo. A representação popular encarnada
nos mesteres era inadmissível, nesse período de consolidação do
absolutismo monárquico.
Mesmo vencidos na votação de 1710, os
mesteres voltaram sobre o tema um ano depois. As lutas contra os altos
preços e o arrocho fiscal seriam bandeiras permanentes dos movimentos
populares brasileiros do século XVIII e não seriam alheias a essa
constante as manifestações de oposição ocorridas na Bahia.
Em 14 de outubro de 1711, D. Pedro de
Vasconcellos e Sousa, conde de Castelo Melhor, assumiu o governo lançando
um imposto de 10 % sobre todas as mercadorias importadas. Cinco dias
depois, um grupo de manifestantes, liderado, entre outros, pelo juiz do
povo - o mesmo Cristóvão de Sá, que no ano anterior se fizera ouvir no
Conselho, - invadiu a Casa da Câmara e, tocando o sino a rebate, conclamou
à população para resistir ao novo imposto. Aproveitando a agitação,
voltaram a insistir no preço do sal, exigindo a imediata revogação da
provisão de 1710.
Dessa vez, a população toda foi mobilizada.
As casas do contratador do sal, Manuel Dias Filgueiras, e do seu sócio,
Manuel Gomes Lisboa, foram saqueadas e depredadas. Só a intervenção do
arcebispo, D. Sebastião Monteiro da Vide, que resolveu sair em procissão
com o Santíssimo Sacramento, conseguiu acalmar os ânimos e evitar que a
destruição se espalhasse sem controle.
O arcebispo não dissuadiu a multidão das
suas reivindicações, mas conseguiu convencê-la a negociar serenamente com
as autoridades. Engrossado o seu número por marinheiros e soldados que
aderiram espontaneamente às reclamações; os manifestantes se apresentaram
diante do governador, que, destituído até mesmo do apoio da sua própria
tropa, não teve outra alternativa senão capitular, concedendo as isenções
solicitadas.
Quarenta dias depois, atacada por Duclerc a
cidade do Rio de Janeiro, mais uma vez os manifestantes invadiram a Casa
da Câmara, exigindo providências do governador. O problema não era nem da
incumbência nem do interesse direto dos artesões, mas os seus
representantes, excitados pelo sucesso, ainda recente, das suas
reivindicações, consideravam-se verdadeiros líderes populares e
responsáveis até mesmo pelo que acontecesse em outros termos e capitanias.
A multidão exigiu que fosse armada uma esquadra de socorro, metade às
custas da Câmara e metade dos particulares, cujas economias se sabia
depositadas nos conventos que, na época, funcionavam de fato como
instituições bancárias.
O triunfo dos amotinados era completo, mas a
notícia da liberação do Rio de Janeiro tornou a esquadra desnecessária e
esfriou o ânimo dos manifestantes. Aproveitando a volta da calma, o
governador apressou-se em retomar o controle da situação e, apurando
sumariamente a culpabilidade pelos distúrbios, condenou os responsáveis em
penas corporais, confisco de bens e desterro perpétuo.
Da decisão houve apelo para o Conselho
Ultramarino, que acabaria dando provimento ao recurso, mas a intensidade
dos movimentos e a fraca resposta das autoridades eram clara evidência de
que o poder dos representantes populares estava atingindo níveis
perigosos, tanto para os vereadores quanto para a própria Coroa. Mais cedo
ou mais tarde, a reação do poder central se tornaria inadiável e, antes
que isso acontecesse, os membros da Câmara resolveram solicitar,
espontaneamente, a extinção da representação mesteiral.
Essa extinção foi efetivada por carta régia
de 25 de fevereiro de 1713, redigida em termos lacônicos. Após mencionar,
como fundamento, "a reprezentação que me fizerão os officiaes da Camara
desta cidade sobre não ser conveniente que nella haja juiz do povo por ter
mostrado a experiencia ser causa dos motins que tem havido em desserviço
meo e do publico desses moradores", conclui, sem mais considerações:
"Fuy servido resolver não haja nessa cidade juiz do
povo".
Não é improvável que tenham pesado, nessa
solicitação, outras considerações, como a freqüente perda do controle
pelos próprios juízes e vereadores, sobrepujados pela irreverência e pelo
apoio popular que caracterizavam os artesões. Entretanto, não tardaria em
ficar evidente a falta que eles faziam na administração da cidade. Dois
anos depois, abertos novos pelouros e renovada a condução municipal, a
Câmara ponderava que "pelo que respeita ao bem commum era o Juiz do
Povo com seus mesteres quem fazia presente ao Senado muitas coisas
convenientes ao aumento e conservação desta republica naquelles
particulares, de que a Vereação não podia ter noticia", esclarecendo,
ainda: "porque como esta cidade está hoje mui crescida, eram os ditos
mesteres e Juiz do Povo os por cuja conta corria ver e examinar tudo o que
podia ser em prejuizo do bem commum para o propor neste Senado, e ja a
experiencia vai mostrando o dano que se parece por não haver quem
participe as tais notícias".
Tentando reverter o prejuízo, os vereadores
optaram por descarregar a culpa nos seus "antecessores do anno de
1712", acusando-os de, "por razões particulares que para isso
tiveram" e "mais levados da paixão que do zelo", ter cometido
um excesso "muito escandaloso". Invertendo a versão inicial, o
documento denunciava que o juiz do povo fora "constrangido
violentamente acompanha-lo nas duas alterações que maquinaram os homens da
Frota" e que, para isso, fora ameaçado, não somente "com palavras
muito injuriosas senão tambem pondo-lhe as mãos repetidas
vezes".
Em apoio dessa nova versão, os vereadores
destacavam que "sendo ele prezo depois sahiu solto e livre pela devaça
que tirou o Ouvidor Geral do Crime da Relação deste Estado". Tentando,
por outra parte, separar a responsabilidade do homem da expectativa de
continuidade do cargo, ressalvam que, mesmo "quando ele fosse culpado,
se devia castigar e não procurarem nossos antecessores tirarem deste
Senado a regalia de ter Juiz do Povo".
Bem no fundo - como fica nitidamente
estabelecido na mesma petição - o que mais pesava, no ânimo dos
vereadores, era o orgulho ferido da poderosa "Cidade Capital do do
Estado do Brasil", que, privada da honraria concedida por D. João IV,
ficaria "igual a mais humilde Vila delle". Mas esse orgulho não era
prioridade da Coroa. A carta não obteve resposta. Em 20 de julho de 1716,
novamente renovada a administração municipal, um segundo requerimento
recebeu a mesma resposta: o silêncio. Na administração colonial portuguesa
era muito mais fácil extinguir um órgão que restaurá-lo.