São Domingos presidindo o Tribunal do Santo Ofício.
(Óleo de Pablo Berruguete) |
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Memória da Justiça Brasileira -
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Capítulo 10
O Santo Ofício |
Apesar de termos feito uma rápida
referência, no primeiro volume desta "Memória", o tema da
Inquisição merece uma análise mais detalhada, não apenas pelo enorme poder
que chegou a exercer como pela particularidade dos seus procedimentos e
rituais.
Mais do que qualquer outro dos temas
abordados nesta obra, o Santo Ofício tem provocado incontáveis análises.
Muitas, partindo de concepções próprias de épocas posteriores, foram
excessivamente condicionadas pelo horror que as torturas e suplícios
ocasionam nas consciências atuais. Algumas, às vezes por religião ou
patriotismo, procuraram negar ou relativizar os seus excessos,
comparando-os com os de outras épocas e credos apontados como ainda mais
graves. Poucas tentaram estudar desapaixonadamente os seus procedimentos,
servindo-se do conhecimento da época para explicá-los, sem apressar-se em
denegrir ou justificar.
Permita-se-nos integrar, dentro do possível,
este último grupo, concentrando-nos em estudar o Santo Ofício enquanto
órgão judicial, inserido na complexa malha de controles governamentais que
garantiram, por vários séculos a sobrevivência do império colonial
português.
Antecedentes da Função
Inquisitorial
Identificada popularmente com o Santo
Ofício, a inquisição é, na verdade, uma função que a Igreja
reivindica como própria e vem exercitando desde os seus primeiros séculos
de existência. Limitado por suas origens e pela perseguição de que era
objeto, o cristianismo começou com muita simplicidade, mas, na medida em
que conseguia consolidar a sua estrutura, foi, gradativamente, elaborando
suas próprias regras (do grego "kanon"), que, com o passar
do tempo, chegariam a constituir um direito particular: o Direito
Canônico.
Ora, quem estabelece regras se preocupa por
seu cumprimento. Os conflitos internos e externos da comunidade
eclesiástica eram arbitrados pelos bispos, com base no procedimento
acusatório herdado do direito romano, mas logo ficou aparente que nem
sempre havia parte acusadora para colocar um freio aos desvios da fé.
Então, as autoridades eclesiásticas começaram a investigar de ofício,
inicialmente como procedimento disciplinar restrito ao policiamento do
clero. Originou-se, assim, o procedimento inquisitorial, que,
depois, seria aplicado também ao combate às heresias. Mesmo assim, a quase
totalidade da investigação resumia-se a perguntar às pessoas
presuntivamente informadas ou envolvidas, e tropeçava freqüentemente com o
silêncio das testemunhas, temerosas das represálias que suas declarações
poderiam provocar. Surgiu, assim, como uma terceira forma de originar
processos judiciais, o estímulo à delação, não anônima, posto que o autor
era conhecido pelos inquisidores e assumia a sua responsabilidade perante
Deus e os homens, mas sim mantida no mais absoluto sigilo, para proteger
às testemunhas da vingança dos denunciados. Este procedimento, que
tencionava acabar com a impunidade dos poderosos, acabaria
transformando-se numa escura malha de delações, a comprometer seriamente a
credibilidade do Santo Ofício.
Até o século XII, os bispos e seus prepostos
mantiveram o exercício exclusivo da inquisição. Desde os primeiros tempos,
existiam desvios da fé: No século II, o gnosticismo e o
montanismo. Depois, o maniqueísmo, o donatismo, o
priscilianismo etc. Mas era uma igreja jovem, ainda sem interesses
materiais e imbuída do forte espírito missionário que conduziria muitos
dos seus integrantes ao martírio. Diante das dissidências, não se pensava
em coagir, mas em dialogar e convencer. Os próprios pregadores não tinham
ainda a certeza absoluta das suas crenças, e tendências diversas
encontravam-se em concílios e sínodos à procura de uma verdade aceita por
todos.
Esse estado de coisas mudou com a conversão
de Constantino e a projeção do cristianismo como religião oficial do
Império. Repentinamente deslocada da oposição ao oficialismo, a religião
cristã se converteria de perseguida em perseguidora; os últimos tempos de
Roma a veriam punir rigorosamente não apenas os pagãos, como eram
considerados os fiéis às antigas religiões, mas também os herejes, que
conheceram a confiscação de bens, os tormentos e até mesmo a
morte.
Depois da queda do Império Romano do
Ocidente, a Igreja, única força organizada e intelectualmente coesa na
anarquizada Europa, consolidaria, concomitantemente, seu domínio
espiritual e seu poder temporal, até transformar seus dogmas, ritos e
costumes nos únicos universalmente aceitos e respeitáveis. Não que não
existissem outras religiões. Judeus e muçulmanos estavam fartamente
representados na Europa cristã. Mas o seu exemplo não era tão perigoso
porque a população os via como seres distintos e, em muitos casos, como
inimigos. A Igreja preferia considerar que estavam errados e que, mais
cedo ou mais tarde, acabariam tomando consciência disso.
Mas o crescimento do dogmatismo, da coerção
e do poder material da Igreja acabaria provocando reações inevitáveis. Ao
completar-se o primeiro milênio, proliferavam as mais diversas formas de
rebeldia, desde as que intentavam recuperar a pureza e austeridade da
Igreja primitiva até as que, invertendo os valores proclamados e nem
sempre respeitados, glorificavam o sexo, o pecado e até mesmo a própria
pessoa do demônio. Paradoxalmente, esses desvios eram mais perigosos
quanto mais próximos estivessem dos postulados cristãos. A população,
precariamente instruída, os seguia facilmente, e a insatisfação das
pessoas de maior cultura, e até dos próprios sacerdotes, acabava
engrossando as fileiras das seitas cismáticas.
A incapacidade das estruturas tradicionais
para controlarem a situação ficou evidente no crescimento dos
cátaros ou albigenses, herdeiros do antigo maniqueísmo
romano, que tinha subsistido no Oriente e começou a voltar à Europa a
partir do século X. No século XII, os albigenses tinham suas
próprias dioceses, seus bispos, e chegaram até a realizar um concílio, na
França, trazendo de Constantinopla seu próprio "papa". A agitação
crescia entre a população. Abundavam os confrontos entre parcialidades
religiosas. Não poucos herejes foram linchados pela população e alguns
governos cristãos assumiram espontaneamente à perseguição e passaram a
pressionar à Santa Sé para oficializá-la e torná-la universal.
As primeiras medidas oficiais foram tomadas
pelo papa Lúcio III e o imperador Frederico I, que, amparados em
recomendações dos concílios de Latrão (1179) e Verona (1184), unificaram a
repressão às diversas heresias. Intensificou-se a atividade inquisitorial
do episcopado e várias coroas iniciaram atividades militares contra os
principais centros de difusão das doutrinas não autorizadas. A fogueira
começou a definir-se como o castigo adequado aos impenitentes, cujo
delito, de "lesa-majestade divina", deveria ser considerado como
maior e mais horrível que o de "lesa-majestade humana". Em Verona
foi elaborado um regimento especial para os bispos, considerados
"inquisidores ordinários", incumbindo-os de visitar duas vezes por
ano os focos de heresia que se encontrassem dentro das suas
dioceses.
Tornou-se evidente que os bispos, ocupados
com as outras responsabilidades próprias dos seus cargos, não conseguiriam
controlar a situação. Por outra parte, os herejes passavam quase
livremente de uma diocese à outra e os bispos não tinham poder nenhum fora
das próprias. Em 1216, o papa Inocêncio III encomendou a São Domingos de
Gusmão, fundador da ordem dos pregadores - depois conhecidos como
"dominicanos" - a presidência de um tribunal especial, sediado em
Toulouse. Baseava-se nas determinações do Concílio de Verona e de um novo
concílio, realizado em Latrão em 1215, os quais forneceram o sustento
doutrinário e legal para o estabelecimento da "inquisição
delegada", isto é, presidida e executada por magistrados diretamente
ligados à Santa Sé. Com a mesma base, foram criados outros tribunais
especiais e, três anos depois, o próprio São Domingos organizou uma
confraria chamada "Milícia de Jesus Cristo", cujos membros não
faziam vida conventual mas juravam guardar castidade - ou, se casados,
fidelidade conjugal - e tomar as armas a serviço da Igreja toda vez que
fossem convocados. Após a morte do fundador, passaram a constituir a Ordem
militar de São Domingos, reforçando o seu caráter de milícia armada em
defesa da fé.
A estrutura definitiva do Santo Ofício foi
delineada no concílio de 1229, em Toulouse, e terminou de consolidar-se em
1231, por bula do papa Gregório IX. Inicialmente, a atividade dos
inquisidores delegados - em geral frades dominicanos ou franciscanos - era
concorrente com a dos bispos, mas, aos poucos, foi dominando esse espaço
por tratar-se de uma instância jurídica específica, que podia
concentrar-se exclusivamente no policiamento da fé e agir, em
conseqüência, com mais celeridade e eficácia. Mesmo assim, os tribunais
continuaram reservando aos ordinários lugares proeminentes nas visitas e
nos julgamentos, como a demonstrar, simbolicamente, que a potestade
inquisitorial era ainda uma prerrogativa episcopal.
Os primeiros tribunais inquisitoriais,
diretamente subordinados ao papa, agiam em forma relativamente autônoma,
mas logo ficou evidente a necessidade de se criar uma instância
revisional. Inicialmente essa responsabilidade foi encomendada a uma junta
de cardeais, até o papa Urbano IV criar, em 1263, o cargo de Inquisidor
Geral, concentrando numa única pessoa o controle de todos os tribunais. Em
1543, Paulo III resolveu restaurar a junta de cardeais, que subsistiu até
o pontificado de Sixto V (1585-1590), que organizou as Congregações da
Cúria Romana, incluindo entre elas a do Santo Ofício, que passou a
concentrar todas as funções referentes à Inquisição.
A Inquisição Espanhola
A partir de Toulouse, a Inquisição se
estendeu rapidamente pelos reinos da Europa central, especialmente nos
atuais territórios da França, Itália e Alemanha. Menor foi a sua
influência na Península Ibérica, que vivia uma situação diferenciada, não
apenas religiosa mas política e militarmente.
Desde o ano 711, o atual território
hispano-português estava invadido pelos "mouros", berberes
islamizados do norte da África que chegaram a constituir um reino
praticamente independente, com capital em Córdoba. A reação dos
peninsulares, que, aos poucos, iria consolidando os reinos de Leão,
Castela, Aragão, Catalunha e Navarra, começou entrincheirada nas montanhas
septentrionais - menos apetecidas pelos conquistadores -, procurando
depois recuperar o sul, numa lenta expansão que demoraria vários
séculos.
Mas não era, propriamente, uma guerra de
reconquista. Difícil se torna considerar invadido um território que, mesmo
anteriormente, não constituía uma unidade nacional e estava dividido em
feudos que, por sua vez, se invadiam entre si. Por outra parte, depois de
vários séculos de ocupação, os muçulmanos ibéricos podiam considerar-se
virtualmente nativos, sedimentados através de numerosas gerações. Muitos
deles não conheciam outra terra e, após a queda das suas cidades,
acabariam dispersando-se pelos campos e permanecendo neles como
agricultores, mais ou menos tolerados por seus novos senhores. Assim, toda
e qualquer ação contra eles dependeria, necessariamente, da união dos
feudos em volta de uma bandeira comum que os diferenciasse claramente dos
inimigos, dando à guerra um fundamento aceito por todos.
Mais do que a raça ou a nacionalidade, esse
fundamento foi oferecido pela religião. Isolados da Europa central pelos
Pirineus e protegidos de migrações forâneas pelo escasso apelo das suas
terras, pobres e pouco produtivas, os espanhóis eram fervorosamente
católicos. Mesmo quando a heresia se espalhava no resto da Europa, os
reinos espanhóis conservavam orgulhosamente a sua ortodoxia.
Apenas Navarra e Aragão, em razão da
proximidade com a França, chegaram a receber um contingente de herejes
suficiente para justificar a instalação de uma inquisição delegada. O
próprio São Domingos enviou, ainda no século XII, a São Raimundo de
Penyafort como comissário inquisitorial ao reino de Aragão. São Raimundo
redigiu um manual para inquisidores, que foi aprovado no Concílio de
Tarragona, em 1242, e estabeleceu um tribunal em Lérida. Outro manual, de
grande influência nos séculos posteriores, foi elaborado pelo provincial
da Ordem de São Domingos, Nicolás Eymerich. Ao tribunal de Lérida se
agregaram depois os de Zaragoza, Barcelona, Tarragona, Urgel, Gerona,
Rosellón, Cerdaña e Ilhas Baleares. Já o tribunal de Navarra, estabelecido
em 1238, teve pouca expressão e chegou até a depender, por algum tempo, da
Inquisição aragonesa. Longe dos Pirineus, os outros reinos se consideravam
a salvo da heresia francesa. Diante de qualquer fato que colocasse em
perigo a pureza da fé, os bispos, como inquisidores ordinários,
controlavam rapidamente a situação, contando sempre com o auxílio
diligente dos reis e senhores dos respectivos territórios.
Havia, portanto, uma característica comum
aos moradores de todos os reinos. Fossem eles aragoneses ou navarros,
leoneses ou castelhanos, todos eles eram católicos, ou seja
"fiéis", e não podiam admitir que dois terços da península
permanecessem nas mãos dos "infiéis". Nesse contexto, a fé passou a
ser uma bandeira comum e a conquista do território muçulmano
transformou-se numa espécie de guerra santa.
Apenas uma impureza existia, em ambos os
lados. Mouros e cristãos conviviam, nos seus respectivos territórios, com
a incômoda vizinhança de um apreciável número de judeus. Expatriados,
espalhados pelo mundo, os judeus conviviam com todos os povos, com todas
as raças, com todas as religiões, mas não renunciavam à sua identidade, à
sua cultura e à sua própria religião.
Não faltaram, na Península Ibérica, exemplos
de boa convivência, de tolerância e até de privilégios dados aos judeus.
Muitos deles chegaram a ser respeitados por seus conhecimentos ou a ocupar
altos cargos nos diversos reinos. Mas os conflitos eram também freqüentes.
Já em 306, durante a dominação romana, o Concílio de Córdoba recomendava
medidas segregacionistas contra eles. Uma paz relativa ocorreu após a
queda do império, com a adesão dos reis visigodos ao arianismo, mas logo,
em 587, Recaredo se converteu ao catolicismo e resolveu impô-lo como
religião oficial.
À semelhança dos mouros, os judeus não
podiam ser tidos como "herejes", mas como "infiéis". Ou
seja, não se considerava que tivessem abandonado a fé cristã ou violentado
às suas normas, mas que ainda não tiveram a sorte de receber "a luz da
verdadeira fé", sendo, portanto, mais dignos de lástima e de ajuda que
de repressão. Essa visão de inspiração missionária começou a mudar quando,
revelando-se inúteis as tentativas de evangelização, as populações
"pagãs" começaram a ser pressionadas ou até compelidas à conversão.
Já em 612, o rei Sisebuto obrigava os judeus a escolher entre o
cristianismo e o exílio, disjuntiva que se repetiria em diversas
oportunidades durante os séculos posteriores.
Embora existam casos de conversões sinceras,
é claro que, pressionados dessa maneira, muitos judeus fingiriam aderir ao
cristianismo para, na intimidade, continuarem fiéis aos seus antigos
rituais. Talvez eles mesmos não percebessem que, com essa conversão
fingida, acabavam de cruzar a tênue linha que separava os "infiéis"
e "pagãos" dos "herejes" e "apóstatas".
Essa sutil diferença era mais perceptível às
autoridades eclesiásticas que à população leiga. Na prática, tanto entre
os cristãos quanto entre os muçulmanos, as causas principais da segregação
dos judeus eram a intolerância e a competência pelo poder. Idéias
universalistas ou ecumênicas eram totalmente estranhas à mentalidade da
época. Tudo que fosse diferente era, potencialmente, perigoso. A
imaginação popular recheava com fantásticos temores o seu próprio
desconhecimento das culturas alheias.
Mas nem todas as culturas eram igualmente
temidas. Embora rejeitados e desprezados, os ciganos e outras minorias
étnicas não eram vistos como um perigo digno de consideração. Na base da
rejeição contra os judeus devem ser procuradas outras razões. Uma delas
pode ser a intolerância dos próprios judeus, que defendiam orgulhosamente
as suas crenças, aprofundando assim o fosso que os separava das outras
culturas. Mas existia uma razão ainda mais forte. Ao contrário dos
ciganos, os judeus eram poderosos. Marginalizados, com freqüência, das
atividades comuns aos cristãos, acabaram especializando-se nos ofícios que
aqueles rejeitavam; principalmente, no exercício do comércio.
O católico desprezava o comércio por
considerá-lo uma atividade parasitária. Não considerava honesto um
trabalho que não gerava bens e, apenas, lucrava intermediando o seu fluxo.
Mas a economia já ultrapassava os limites do feudo e o mercador, embora
desprezado, tornava-se necessário e conseguia ser bem pago. Assim, os
judeus passaram a desfrutar de um poder considerável e tornaram-se alvo da
inveja de aldeões e cortesãos, que não compreendiam como, persistindo no
erro e exercendo essa atividade vil, os "infiéis" recebiam como
prêmio o luxo e a prosperidade. Ainda, à medida em que o poder econômico
lhes abria outras portas, os judeus casavam com moças cristãs de boa
família e chegavam a escalar altas posições na burocracia
estatal.
Esse caminho ficava ainda mais acessível
após a conversão. Funções que ninguém ousaria colocar em mãos infiéis eram
facilmente outorgadas a "cristãos novos", de cuja fidelidade
ninguém tinha demasiada certeza. Aos poucos, uma complexa malha de
restrições foi instituída para limitar o acesso desses conversos a
posições de governo e justiça, exigindo-se prévia comprovação, por
autoridade, competente, da "limpeza de sangue" dos
pretendentes.
Existia, ainda o problema da ciência.
Grandes áreas do conhecimento eram pesquisadas e praticadas exclusivamente
por judeus. Marginalizados os pobres da escolaridade, concentrados os
nobres nas funções militares e políticas, limitada a Igreja por barreiras
dogmáticas, os judeus e cristãos novos eram os únicos a investigar e
experimentar com certa liberdade e chegavam a dominar profissões tão
perigosas como a medicina. Imagine-se o receio dos católicos ao ver-se
entregues, nas suas doenças, aos cuidados dos seus inimigos mais
temidos.
Isso explica, em grande parte, a insistência
das Cortes, que, não poucas vezes, chegaram a forçar medidas repressivas
que os reis não tinham pensado ainda em tomar. Problemas semelhantes
aconteceram nos domínios árabes, onde, admitidos inicialmente com certa
liberdade, os judeus acabaram sofrendo sangrentas perseguições. Em plena
guerra de reconquista, os reinos cristãos receberam multidões de judeus
que deixavam a Espanha muçulmana para não ver-se obrigados a converter-se
ao islamismo.
Poupada, nos séculos anteriores, da presença
dos herejes, Castela não se vira na necessidade de constituir tribunais
inquisitoriais. Porém, o fervoroso - e político -catolicismo da rainha
Isabel e, provavelmente, a influência do seu marido, Fernando de Aragão,
em cujo reino o Santo Ofício estava fortemente consolidado, iriam
reatualizar essa instância eclesiástica - que, aliás, estava em franca
decadência - dirigindo-a contra dois novos inimigos: os "marranos"
e os "moriscos", como eram chamados, respectivamente, os judeus e
os muçulmanos convertidos ao catolicismo. As primeiras requisições à Santa
Sé datam do início do seu reinado. Em 1º de novembro de 1478, Sixto IV
autorizou a constituição do tribunal, instalado em Sevilha em 17 de
novembro de 1480. Em 1483, o dominicano Frei Tomás de Torquemada, que fora
um dos principais impulsionadores do projeto, foi nomeado Inquisidor
Geral, estendendo-se a sua autoridade aos reinos de Aragão, Catalunha e
Valência, com o que, antes mesmo da unificação política, passou a ser o
primeiro magistrado com jurisdição em toda a Espanha.
Fora a extemporaneidade e a diferença de
objetivos, a particularidade da Inquisição castelhana é que não se
tratava, propriamente, de um tribunal delegado da Santa Sé, e sim de um
órgão da Coroa, sobre cujas ações a Igreja de Roma exercia pouco ou nenhum
controle. Já, desde o começo, a bula de Sixto IV habilitava à Coroa
designar os membros do tribunal - dois inquisidores, um assessor e um
consultor - mas deixava aos réus o direto de apelar a Roma. As queixas e
apelações foram tantas que o próprio papa escreveu a Fernando e Isabel,
reclamando pelas arbitrariedades de que tomara conhecimento, mas as
pressões eram muito fortes e Sixto IV acabou cedendo. Em 1482 autorizou a
nomeação de um Inquisidor Geral e sete inquisidores subordinados, em 1483
colocou em Castela um magistrado para conhecer das apelações sem que
precisassem ser enviadas a Roma e, pouco depois, autorizou a criação do
Consejo de la Suprema y General Inquisición, tribunal máximo
e definitivo para todas as apelações de natureza inquisitorial.
O Conselho, popularmente conhecido como
"La Suprema", estava composto pelo Inquisidor Geral, cinco
conselheiros, dois adjuntos e dois consultores com voto, além de diversos
oficiais e empregados. Tribunais inferiores foram instalados em Sevilha,
Córdoba, Jaén e Ciudad Real. Até o final do século, já existiam tribunais
em Toledo, Cuenca, Murcia, Valladolid, Santiago, Logroño, Granada,
Llerena, Zaragoza, Barcelona, Valência e nas Baleares, alguns deles
pré-existentes mas ora incorporados à jurisdição do Conselho. Fora da
península, foram instalados um tribunal nas Ilhas Canárias, três na
América, no México, Lima e Cartagena de Indias, e dois na Itália, em
Sardenha e Sicília, territórios que ainda respondiam à Coroa de
Aragão.
A Inquisição Portuguesa
Ao contrário da Espanha, em que soberanos
ultracatólicos faziam absoluta questão da uniformidade religiosa como um
meio de unificação política, Portugal foi, geralmente, bastante tolerante
com os moradores que praticavam outra religiões. Mouros e judeus tinham
suas comunidades - "mourarias" e "judiarias" - conservando
livremente costumes e religião, em troca, apenas, de uma certa sobrecarga
impositiva. Os judeus chegaram a conservar o seu próprio sistema judicial,
representado por "arrabis", que julgavam com base no direito
talmúdico e estavam subordinados a um magistrado principal, com o título
de "arrabi-mor".
Essa tolerância oficial derivava das
diferentes circunstâncias que rodearam a expansão de Portugal. Isolados no
oeste da península, sem grandes conflitos internos e com uma fronteira
moura relativamente estável, os monarcas portugueses eram católicos, mas
não fanaticamente. Antes, embarcados na grande aventura mercantilista que
foi a epopéia dos descobrimentos, dependiam, em boa medida, do apoio
econômico e do investimento espontâneo dos comerciantes judeus. Muito mais
do que na Espanha, a rejeição aos judeus partia do povo, mais ou menos
estimulado pelos representantes da Igreja.
Assim como acontecera em Aragão e Navarra,
Portugal conhecera, em séculos anteriores, tentativas de estabelecimento
da inquisição delegada, que, por não haver muito a fazer, languideceram e
acabaram desaparecendo. Assim aconteceu, principalmente, em 1376, quando o
papa Gregorio IX, visando controlar o crescimento do judaísmo, chegou a
nomear um inquisidor especial. No entanto, as Cortes insistiam
permanentemente no assunto e a inquisição episcopal era bastante
ativa.
A Coroa oscilava. Ora protegia os mouros e
judeus, proibindo constrangê-los ao batismo e perturbar suas festas
religiosas, ora os excluía das funções públicas e mandava que ficassem
isolados nas suas comunidades. Em verdade, procurava, com preocupações
muito mais políticas que religiosas, contornar os conflitos e esfriar os
ânimos, evitando tomar determinações drásticas.
O estabelecimento da Inquisição espanhola
viria a alterar esse precário equilíbrio. Clero e povo viam como uma
afronta e uma debilidade dos seus reis que seu país não contasse ainda com
um órgão de cuja posse seus vizinhos tanto se orgulhavam. Por outra parte,
numerosos "marranos", foragidos da Espanha, refugiavam-se em
Portugal, tornando a situação ainda mais explosiva. Em 1487, D. João II
obteve autorização do Papa para punir, por intermédio de juízes especiais,
os "cristãos novos" vindos da Espanha que se julgasse terem faltado
aos deveres que o batismo lhes impusera. Vários deles pereceram no
fogo.
A situação piorou quando Isabel e Fernando,
donos já de Granada, consideraram chegado o momento do ajuste final com o
inimigo interno. Em 1492, os judeus espanhóis foram intimados a
converter-se ou abandonar o país. Muitos deles rumaram para Portugal onde,
apesar da falta de números confiáveis, fácil é imaginar que a população
dessa religião tenha dobrado. D. João II optou por aceitá-los apenas
temporariamente, dando-lhes um prazo de oito meses para procurarem novo
asilo. Mas a solução não era tão simples. Muitos dos exilados eram pobres
e, mesmo que não o fossem, os espanhóis não lhes deixavam carregar suas
riquezas. A Coroa deveria, necessariamente, oferecer o transporte, e não
havia navios suficientes. Apesar das intenções do rei, muitos dos
refugiados permaneceram.
Morto D. João II, o problema ficou para seu
filho. À semelhança de seus predecessores, D. Manuel não via muita
vantagem em lutar contra os judeus mas, às pressões do clero e do povo,
juntaram-se as da Coroa espanhola, que o jovem príncipe ambicionava. O
casamento com a infanta Isabel, primogênita dos Reis Católicos, lhe
colocaria em boa posição, mas a condição estabelecida era a expulsão dos
judeus.
Diversas interpretações foram levantadas
sobre a extensão da medida. D. Manuel optou pela mais rigorosa: todos os
judeus que não aceitassem o batismo seriam expulsos no prazo de dez meses.
Parece estranho encontrar nele uma atitude tão drástica e,
simultaneamente, tão pouco prática. Mal poderia a Coroa obrigar a sair e
dar condução a todos os judeus se nem mesmo com os vindos da Espanha tinha
conseguido fazê-lo. Talvez, fechando todas as opções, D. Manuel esperasse
uma conversão generalizada, que resolvesse de vez o problema, mas os
judeus eram ciosos da sua fé e, cientes da escassa firmeza das pressões da
Coroa. Poucos foram os que aceitaram a coação. Frustrado e encurralado
pelas pressões, D. Manuel optou por batizar coercitivamente os menores de
vinte anos e, pouco depois, até mesmo os adultos que optassem por
permanecer. Assim, entre 1496 e 1498 todos os "infiéis" conhecidos
foram transformados, pela força, em "novos cristãos".
Não escapava à inteligência de D. Manuel a
artificialidade dessa medida. Assim, em 1497 declarou inimputáveis por
vinte anos os "cristãos novos" que violassem as regras da sua nova
fé. Esperava-se, com isso, dar um tempo prudencial para que os conversos
se habituassem à sua nova vida. Mas os judeus eram fiéis às suas crenças,
e os cristãos persistiam na intolerância. Se a Coroa se omitia, o próprio
povo se bastava para fazer justiça. Durante os anos seguintes, várias
massacres de judeus aconteceram em Lisboa, Évora e outras cidades
portuguesas. Para piorar ainda a situação, os que não aceitaram o batismo
e alguns que, tendo-o aceito, receavam represálias por sua falsa
conversão, optaram por abandonar o país levando, em muitos casos, riquezas
escondidas, o que, lesando à economia nacional, obrigou a Coroa a proibir,
sob qualquer conceito, a saída de judeus.
Não se haviam completado ainda os vinte anos
de tolerância, quando D. Manuel, em 1515, resolveu requerer de Roma o
estabelecimento de um tribunal inquisitorial. Tomava como pretexto os
judaizantes que entravam clandestinamente da Espanha e que, portanto, não
estavam protegidos pela mencionada lei, mas nem ele nem o Papa tinham
muita certeza do acertado da medida. As queixas contra a Inquisição
espanhola eram freqüentes e havia fundados temores de que a portuguesa se
formasse nos mesmos moldes. Por volta de 1525, D. João III insistiu no
requerimento, reiterando-o, com mais convicção, em 1531. Observara,
aparentemente, as vantagens que o controle desse órgão dava à Coroa
espanhola e queria reproduzir o modelo em Portugal. A negociação que se
seguiu é uma escura malha em que não faltam intrigas palacianas, pressões
e acusações de corrupção. A Espanha, velha interessada no assunto, entrou
na disputa, apoiando as pretensões portuguesas. A Santa Sé não aceitava
que a reincidência dos que foram forçados a converter-se fosse julgada
como apostasia, e foi preciso uma invasão de herejes luteranos - que, na
verdade, não parece ter existido com a virulência que lhe foi atribuída -
junto a rumores, mais ou menos fundados, da iminência de um cisma
semelhante ao liderado, na Inglaterra, por Henrique VIII, para que, mais
uma vez, Roma cedesse às pressões políticas e econômicas e autorizasse o
estabelecimento da nova Inquisição.
A nova Inquisição demorou em adquirir uma
estrutura estável. A Santa Sé resistia a entregar o controle do órgão, e
D. João não aceitava menos do que o poder absoluto sobre suas decisões.
Frei Diogo da Silva, confessor do rei, nomeado Inquisidor Geral em
dezembro de 1531, foi destituído dez meses depois, sem ter assumido o seu
posto. Em 1533 o Papa anulou as decisões, proferidas, provavelmente, pelos
bispos a ele subordinados. Em 1536 foi estabelecido um tribunal de quatro
membros, solução que já era, no fundo, uma concessão às pressões
hispano-portuguesas, mas não satisfez o rei, autorizado a nomear apenas um
dos magistrados, sendo os restantes providos pelo Papa. A controvérsia se
prolongou por mais de dez anos. Em 1539, desrespeitando as instruções de
Roma, D. João investiu seu irmão, o Cardeal D. Henrique, no cargo de
Inquisidor Geral. Ao tentar reagir, o núncio papal foi expulso. Em 1542, o
novo núncio foi impedido de entrar em Portugal, enquanto aumentavam as
ameaças de cisma, arriscando envolver também à Coroa espanhola que, com
Portugal, passaria a constituir uma nova Igreja, peninsular, independente
de Roma. Encurralado, o Papa acabou confirmando a nomeação de D. Henrique
e em 1547, após uma terceira ameaça de separação, autorizou a instalação
definitiva do tribunal português.
Estrutura dos Tribunais
Com os antecedentes acima apontados é fácil
deduzir que a Inquisição portuguesa nasceu nos moldes da espanhola.
Baseava-se aquela nos manuais de Raimundo de Penyafort e Nicolás Eymerich,
complementados pelas "Ordenanzas o Instrucciones para los
Tribunales" de autoria de Frei Tomás de Torquemada, aprovadas
pelas Cortes de Tarazona e por uma Junta Magna, celebrada em Sevilha em 24
de outubro de 1484. A essas fontes iniciais cabe acrescentar outras
disposições, publicadas em 1498 e 1500, e um novo regimento, considerado o
definitivo, promulgado em 1561.
Em Portugal, o primeiro regimento do Santo
Ofício deve-se ao Cardeal D. Henrique - depois rei em substituição de D.
Sebastião - e foi publicado em 1552. Outros regimentos foram elaborados,
em 1613 e 1640, pelos bispos Pedro de Castilho e Francisco de Castro. O
quarto e último regimento foi publicado em 1774, já no período da
decadência dessa instituição. Por ser o que mais tempo permaneceu em vigor
e caracterizar o período mais estável da Inquisição portuguesa, o
regimento de Francisco de Castro torna-se referência necessária para o
estudo da estrutura e procedimentos que iniciamos a seguir.
Cada tribunal - chegou a haver quatro,
sediados em Lisboa, Évora, Coimbra e Goa - contava com "tres
Inquisidores, quatro Deputados com ordenado, e sem elle os mais que nos
parecer, um Promotor, quatro Notarios, dous Procuradores dos presos, e os
Revedores que forem necessarios, um Meirinho, um Alcaide, e quatro Guardas
no carcere secreto, um Porteiro, tres Solicitadores, um Dispenseiro, tres
homens do meirinho, dous Medicos, um Cirurgião, e um Barbeiro, um
Capellão, um Alcaide, e um Guarda no carcere da penitencia". O
tribunal de Goa, instalado em 1561 a instâncias de São Francisco Xavier,
funcionou inicialmente com uma estrutura híbrida, constituída pelo
arcebispo e dois inquisidores adjuntos, adequando-se, depois, à estrutura
geral instituída pelo regimento.
Por cima desses tribunais, existia o
Supremo Conselho da Sancta e Geral Inquisição e, finalmente, o
Inquisidor Geral do Reino de Portugal. A eles se deveria dar conta de tudo
que fosse deliberado pelas diversas Cortes e não poucas questões dependiam
do seu parecer para serem resolvidas.
Não houve, como na Espanha, tribunais
espalhados por todas as províncias e -excetuando Goa - também não houve
cortes instaladas nos domínios coloniais. No seu lugar, deveria haver
"em cada um dos Logares maritimos um Visitador das Naus de
estrangeiros, com Escrivão de seu cargo, um Guarda, e um Interprete; e em
cada uma das Cidades, Villas, e Logares mais notaveis, um Commissario com
seu Escrivão, e os Familiares que forem necessarios". Muito além das
"visitas" (1591 e 1618, no Brasil; 1626, em Angola), que eram
missões conjunturais, sem presença permanente, esses funcionários
subalternos personificavam o poder inquisitorial nos domínios
ultramarinos.
Dentre esses cargos, merecem especial
consideração os "cruce signatum" ou "familiares do Santo
Ofício". Funcionários leigos, sem remuneração e sem função específica
na estrutura jurídico-administrativa do órgão, eram grandes colaboradores,
dos quais se exigia serem "pessoas de bom proceder, e de confiança, e
capacidade conhecida", devendo possuir "fazenda, de que possão
viver abastadamente, e as qualidades, que conforme ao Regimento do Santo
Ofício se requerem em seus Officiaes". Constituíam uma sorte de
milícia informal, que podia ser convocada individual ou coletivamente
pelos inquisidores, visitadores ou comissários para desenvolver atividades
de vigilância, investigação ou prisão de suspeitos.
Embora não percebessem salários, podiam
receber uma ajuda de custo de "quinhentos reis por dia", em
compensação "pelo tempo que gastarem nas diligencias do Santo
Officio", podendo levar, como ajuda, "hum homem de pé, ao qual se
pagará conforme o uso da terra". Fora essas funções, remuneradas
diretamente pelo Santo Ofício, um familiar podia ser incumbido de
acompanhar "algum judeu de signal", verificando "que
traga sempre chapéo amarello, e não se communique em segredo com a gente
de nação, e só falle com aquellas pessoas, com que tiver negocio, e tanto
que for noite se recolha a sua casa", serviço pelo qual os
inquisidores "lhe assignarão o sallario que parecer, que o mesmo judeu
lhe pagará".
Os familiares tinham hábito próprio mas, ao
contrário dos religiosos, só estavam autorizados a vesti-lo em ocasiões
especiais; notadamente quando fossem prender alguma pessoa ou quando
estivessem participando de um auto-de-fé. Para essas solenidades,
que lhes proporcionavam a máxima figuração, eram convocados todos os
familiares e, se não fossem suficientes, chamavam-se outras pessoas "de
limpeza conhecida, e de bons procedimentos, e as mais authorisadas que se
acharem" incumbindo-as de acompanharem os penitenciados ao
cadafalso.
Grande número de brasileiros pleitearam
esses cargos. Fora o interesse pecuniário - provavelmente insignificante
para homens que, por imposição regimental, deviam possuir "fazenda, de
que possão viver abastadamente" -, era importante a confirmação da sua
limpeza de sangue e dos seus bons antecedentes, confirmação essa capaz de
abrir, aos seus possuidores, as portas da alta aristocracia e da
burocracia estatal, além de garantir, por antecipação, que eles próprios
não se tornassem suspeitos dos delitos perseguidos pela
inquisição.
Visita
Boa parte dos procedimentos inquisitoriais
começavam pela chamada "visita", procedimento de inspeção herdado
da antiga inquisição episcopal. Para realizá-la era designado "um
dos Inquisidores, ou Deputados, de que se deva fiar negocio de tamanha
importancia, pessoa de conhecidas letras, e de tanta authoridade, que
com ella possa acrescentar a estimação de seu cargo".
A visita devia ser iniciada por uma "procissão
solemne, com as maiores demonstrações de respeito e authoridade,
que fôr possível", acompanhada pelas "Justiças, e Officiaes
da Camara" e o "Senhor da terra, ou Alcaide-mór", indicando-se,
para maior brilho, que "nesse dia não haja outra procissão, nem
pregação". À continuação, haveria "Missa com toda a solemnidade,
com Diacono, e Subdiacono" e "Sermão da Fé" após o qual
seria publicado o "Edito da graça", declarando "por quanto
tempo a graça se concede, o qual o Visitador assignará, conforme
a grandeza do logar; mas nunca passará de trinta dias" e a "Provisão
de Sua Magestade, pela qual se ha por bem de remetter os bens aos
que dentro do dito tempo confessarem suas culpas".
A solenidade concluía com a leitura do "Edital
da Fé" ou "Monitório Geral", em que se instava "a todas
e quaesquer pessoas ecclesiasticas , seculares, e regulares, de qualquer
grau, estado, preeminencia, ordem, e condição, que sejam, isentas,
e não isentas, em virtude da santa obediencia, e sob pena de excommunhão
maior, ipso facto incurrenda" a denunciar, no prazo de trinta
dias, quaisquer indícios de judaísmo, islamismo, luteranismo, calvinismo,
apostasia, bigamia, sodomia, astrologia, adivinhação etc. Esse edital
não estava restrito às visitas. Ele devia ser publicado de ofício,
todo primeiro domingo de Quaresma, em todos os conventos e paróquias,
e dessa publicação derivavam boa parte das causas processadas pelo
Santo Ofício.
Após a publicação do edital, começava a averiguação
dos fatos. Estimulava-se a apresentação voluntária, considerada como
atenuante e indício de que o culpado tinha vontade de redimir-se. Culpas
leves, "como são blasfemias hereticaes, proposições temerarias,
malsoantes e escandalosas, affirmar que a fornicação simples não é peccado,
bigamia, superstições, e sortilegios, renegar no exterior em terra
de mouros com medo dos tormentos", podiam ser despachadas de imediato,
com o bispo da diocese, fazendo os apresentados "abjuração de leve" e
impondo-se-lhes "penitencias espirituaes, sem alguma pena publica,
ou qualquer outra, por que se possa vir em conhecimento da culpa".
Já a denuncia dessas mesmas culpas, sem apresentação espontânea do
acusado, a presunção ou delação de faltas maiores que as espontaneamente
confessadas ou a constatação - ainda que por apresentação espontânea
- de culpas graves, como judaísmo ou heresia, motivavam a apuração
detalhada dos fatos e a remissão do processo ao Conselho Supremo.
Embora a figura do visitador estivesse rodeada
das máximas demonstrações de autoridade, não lhe estava permitido julgar
por si as faltas maiores ou fazer prisões, "ainda que para o fazer
ache bastante prova". Havendo receio de que alguns acusados fugissem
enquanto o processo era remetido ao Conselho, o visitador deveria providenciar "que
as Justiças Seculares, ou Ecclesiasticas, da terra, [...] sem
se intender que é por ordem sua, retenham na cadêa as ditas pessoas".
Exceção explícita, no regimento, diferencia
as atribuições dos Visitadores de Ultramar, entre os que se contam,
evidentemente, os que visitaram o Brasil nos séculos XVI e XVII. Podiam, "porque
nas visitas dos logares ultramarinos, fica sendo o recurso ao Conselho
mais difficultoso, e grande o prejuizo, que se poderá seguir da dillação
da resposta", julgar e reconciliar - também em conjunto com o bispo
da diocese - também os acusados de culpas graves, desde que fizessem "inteira
e verdadeira confissão". Ainda, nos casos de "negativos" (réus
que não admitiram a sua culpabilidade) e "confitentes diminutos" (aqueles
que confessaram apenas parte do que se lhes imputava), os processos
deveriam ser encaminhados para seu julgamento pelos tribunais.
Instrução
Fossem denunciados durante as visitas, publicações
de ofício ou, simplesmente, descobertos em qualquer época e lugar,
os suspeitos deviam passar por um longo processo, que o regimento detalha
pormenorizadamente.
Na primeira sessão, chamada "de genealogia",
o preso era perguntado "por seu nome, por sua idade, qualidade de
sangue, que officio tinha, de que vivia, donde é natural, e morador,
quem foram seus pais, e avós, de ambas as partes, que tios teve, assim
paternos, como maternos, e que irmãos, o estado que uns e outros tiveram,
se são casados, e com quem, que filhos, ou netos tem vivos, ou defunctos,
e de que idade são, se é christão baptizado, e chrismado, onde, e por
quem o foi, e quem foram seus padrinhos; e se depois que chegou aos
annos de descrição ia ás Igrejas, se ouvia Missa, e se confessava,
e commungava, e fazia as mais obras de christão", após o qual era
mandado ajoelhar e rezar diversas orações.
Era perguntado, ainda, "se sabe lêr, e
escrever, se estudou alguma sciencia e onde; se tem algumas Ordens,
se sahio fôra do Reino, e por que partes andou, e nelle em que terras
esteve, com que pessoas tratava, e communicava, e se foi outra vez
preso, ou penitenciado pelo Santo Officio, ou se teve alguns parentes
que o fossem".
Finalmente, perguntava-se "se sabe, ou
suspeita, a causa por que foi preso" e, respondendo o acusado
negativamente, era feita a primeira admoestação para que confessasse
suas culpas "na qual lhe não será declarada a qualidade das culpas
por que foi preso, e somente lhe será dito que está preso por culpas,
cujo conhecimento pertence ao Santo Officio". Esta reserva seria
mantida durante todo o processo, ignorando o prisioneiro não apenas
o nome dos acusadores como também os delitos pelos quais era interrogado,
o que o tornava ainda mais indefeso e o motivava, potencialmente,
a confessar culpas desconhecidas dos próprios inquisidores.
Na segunda sessão, chamada "in genere",
e realizada um mês depois da prisão, o preso era "perguntado em
geral por suas culpas, e pela crença e ceremonias da lei, ou seita
de que estiver delato, para que, achando-se culpado em alguma delas,
o confesse, e trate do que convem á salvação de sua alma; e nesta sessão
se multiplicarão as perguntas, segundo a qualidade das culpas e ceremonias
da lei, ou seita de que está indiciado". Depois era feita a segunda
admoestação, reiterando-lhe a necessidade de confessar as suas culpas.
Dentro "do mais breve tempo possível",
era feita a terceira sessão, chamada "in specie", onde o preso
era perguntado especificamente sobre os depoimentos das testemunhas
de acusação e "havendo nelles alguma circumstancia particular, pela
qual se possa vir em conhecimento da testemunha, neste caso se calará a
tal circumstancia". Feita a terceira admoestação, e persistindo
o acusado em negar sua culpa, encomendava-se ao Promotor a preparação
do libelo acusatório.
Caso o acusado optasse por confessar imediatamente,
podiam ser obviadas as sessões "in genere" e "in specie",
optando-se por realizar a chamada "sessão de crença", na qual
o réu, já confesso, era perguntado "pelo tempo em que se apartou
da nossa Santa Fé, e se passou á crença dos erros, que tiver confessado;
por quem lh’os ensinou, e ceremonias, que fez [...] e em que
Deus cria no tempo de seus erros, que orações rezava, a quem as offerecia [...] se
cria no Mysterio da Santissima Trindade, e em Christo Nosso Senhor,
e se o tinha por verdadeiro Deus, e Messias prometido na Lei dos Judeus,
ou se esperava ainda por elle, como os judeus esperam; se cria nos
Sacramentos da Santa Madre Igreja, e os tinha por bons, e necessarios
para salvação da alma, e se lhe fez alguma irreverencia, principalmente
ao da Eucharistia; se tomava os Sacramentos, e fazia as mais obras
de christão, e com que tenção as fazia; se confessava os erros que
tem declarado, a seus confessores, e se os tinha por taes; se sabia
que ter crença na lei de Moyses, ou seguir os erros que tem confessado,
era contra o que tem, crê e ensina a Santa Madre Igreja de Roma, e
contra o uso comum dos catholicos christãos; até que tempo lhe durou
a crença de seus erros e que o moveu a apartar-se delles, e em que
crê de presente".
Das declarações do acusado nessa sessão dependia
a satisfação dos inquisidores ou a realização de uma nova admoestação
para que confessasse suas culpas por inteiro. A negativa por parte
do réu motivaria a realização de uma "sessão in specie de diminuições",
durante a qual seria perguntado sobre as acusações recebidas que não
tivessem sido satisfatoriamente explicadas pelas declarações anteriores.
Tormento
Mantendo-se o réu negativo ou diminuto durante
as sessões "de genealogia", "in genere" e "in specie",
podia ser submetido a tormento, que devia ser resolvido "em mesa",
não bastando a decisão do inquisidor encarregado do caso. Nos primeiros
tempos, parecem ter sido utilizados os mesmos tormentos aplicados pela
Inquisição castelhana - herdeira, aliás, dos procedimentos da justiça
civil -. Era comum, entre outros, a colocação dos pés do condenado
sobre um braseiro, previamente retalhados e untados com banha, mas,
de fato, o tipo de tormento ficava liberado à inventividade de juízes
e algozes. O regimento de 1640 determina, pela primeira vez, o tipo
de tormento a ser aplicado e, embora hoje nos pareça demasiadamente
cruel, a indicação específica parece ter sido feita para evitar a aplicação
indiscriminada de outros, ainda mais destrutivos.
Os tormentos autorizados no regimento são
dois: o da polé, consistente em suspender o réu pelos pulsos amarrados
atrás do corpo e deixá-lo cair violentamente, para interromper sua
queda pouco antes de chegar ao chão, e o do potro, aparelho que estirava
os membros do interrogado por meio de cordas. Embora, na sua versão
mais conhecida, esse equipamento consista num leito de varetas sobre
o qual a vítima era presa e estirada pelos pulsos e tornozelos, o regimento
parece fazer referência a um tormento mais antigo, consistente em colocá-la
montada num cavalete de bordas aguçadas, amarrando-lhe pesos nos tornozelos.
Isso explicaria a ressalva regimental que proíbe sua aplicação nas
mulheres "pelo muito que se deve attentar pela sua honestidade".
O potro era considerado um tormento mais leve, indicando-se o seu uso
nos homens que "por fraqueza, ou indisposição" não pudessem suportar
o de polé. Também se aconselhava utilizar o potro se houvesse necessidade
de "dar trato esperto" dentro dos quinze dias anteriores ao auto-de-fé "por
não irem os presos a elle, mostrando os signaes do tormento". No
caso das mulheres, a impossibilidade de suportar o único tormento permitido
para elas deveria ser informada ao Conselho, para ele resolver o que
achasse mais justo.
Nem sempre a Igreja admitiu a tortura. "Ecclesia
abhorret sanguine" (A Igreja abomina o sangue) era princípio
longamente aceito no Direito cristão. Questionava-se, por outra parte,
a confiabilidade da confissão obtida sob tormento. No ano 866, o
papa Nicolau I questionava: "Se o paciente se confessa culpado
sem o ser, sobre quem recairá o pecado?". Porém, em 1252, já em
pleno auge da luta contra os herejes, Inocêncio IV não resistiu as
pressões e publicou a bula "Ad Extirpanda", autorizando,
embora com limitações, a aplicação da tortura. Desprestigiadas, por
supersticiosas, as provas por ordália, a Justiça comum aplicava já habitualmente
a tortura como um meio para obter a confissão do réu, então considerada
a prova por excelência. Se esses métodos eram aceitos para ladrões
e assassinos - ponderava o papa - com mais razão poderiam ser aplicados
aos "herejes, assassinos das almas e ladrões da fé de Cristo e
os sacramentos de Deus". Essa permissão foi reiterada por Alexandre
IV e Clemente IV, em 1259 e 1265.
Ainda assim, a tortura era um recurso a ser
utilizado por magistrados comuns, aos quais os réus deveriam ser encaminhados
para serem interrogados, o que não demorou a revelar-se prejudicial
para o sigilo das investigações. Em conseqüência, os inquisidores foram
autorizados a prescrever o tormento sem intervenção de outras autoridades
- exceto os bispos, que deveriam ser convidados a participar da decisão
- e aplicá-lo, geralmente com ajuda de irmãos leigos da ordem dominicana,
em salas especialmente preparadas nos cárceres do Santo Ofício.
Diversas limitações foram publicadas em épocas
diversas. A tortura não poderia causar efusão de sangue, e nem causar
ferimentos duradouros ou a morte do réu. A esse efeito, a sua aplicação
deveria ser acompanhada por um médico, que verificasse a resistência
do paciente e mandasse interromper o tormento sempre que houvesse perigo
de ocasionar danos graves ou irreversíveis. Cada sessão não poderia
passar de uma hora e não poderia ser repetida, exceto em circunstâncias
especiais, como a aparição de novos indícios incriminatórios. A confissão
obtida sob tortura deveria ser ratificada após um prazo mínimo de vinte
e quatro horas, para se ter certeza de que o réu não se acusara falsamente
na desesperação por acabar com o tormento.
Não era raro, no entanto, que esses limites
fossem ultrapassados. Réus morriam no tormento e o próprio regimento
institucionalizava essa possibilidade. Antes de começar, a vítima devia
ser formalmente advertida de que se "morrer, quebrar algum membro,
ou perder algum sentido, a culpa será sua, pois voluntariamente se
expõe áquele perigo que póde evitar, confessando suas culpas, e não
será dos Ministros do Santo Ofício, que, fazendo justiça, segundo os
merecimentos de sua causa, o julgam a tormento". Os próprios inquisidores
podiam absolver-se, uns aos outros, dos pecados derivados do excesso
no cumprimento das suas atribuições.
Fora os interrogatórios que procuravam a
confissão dos suspeitos, casos em que o tormento era aplicado "in
caput proprium", existia a tortura "in caput alienum". Estava
restrita ao réu convicto que estivesse "indiciado com muitos cumplices
do mesmo delicto" e com processo pronto e julgado, prestes a ser "relaxado à Justiça
Secular". Perseguia a obtenção, através desse último interrogatório,
de informações conduzentes à identificação e captura de "outras
pessoas, que commetteram o crime por que foi accusado", situação
da qual o próprio réu deveria ser advertido antes de começar. O regimento
indica que "se não votará neste tormento, senão em casos muito graves,
e de que se possa esperar grande fructo" e estabelece que "quando
nelles se votar, antes da execução, enviarão o processo ao Conselho".
Julgamento
Concluídas as diversas sessões do interrogatório
e sendo o réu ainda negativo ou confitente diminuto, o promotor era
autorizado a preparar o libelo acusatório, reunindo todas as informações
apuradas, prestadas pelas testemunhas e pelo próprio réu, e pedindo
a sua condenação pelos delitos que lhe fossem provados. Reunido o tribunal
em mesa, o réu era conduzido à sessão e advertido de que, "para
alcançar mais misericordia", lhe seria conveniente confessar as
suas culpas antes da leitura. À continuação, o promotor procedia à leitura
formal do libelo, devendo o réu assistir em pé. Depois, era-lhe tomado
juramento e a leitura era repetida, artigo por artigo, ordenando-se-lhe "que
separadamente vá respondendo a elles".
Perguntado ao réu se desejava apresentar
defesa, eram-lhe nomeados os "Advogados, que costumam procurar pelos
presos, para que faça procuração a todos, e a cada um in solidum".
Não lhe era permitido trazer seus próprios advogados, mas podia rejeitar
algum dos que lhe eram oferecidos, declarando as causas, que deveriam
constar no processo. Sendo o réu alfabetizado, recebia, no ato, um
traslado do libelo, para melhor preparar a sua defesa. Podia, também, "pedir
papel para fazer suas lembranças", em cujo caso lhe seriam fornecidas
tinta, pena e tantas folhas de papel como fossem requeridas, que deveriam
ser rubricadas no ato da entrega e conferidas rigorosamente na devolução,
mesmo que acabassem ficando em branco. Já no caso dos analfabetos,
devia ser "declarada com muita miudeza, a substancia do libelo",
e dado traslado do mesmo ao procurador designado.
Formada a defesa do réu, era juntada ao processo
e vista em mesa. O acusado podia apresentar testemunhas - até quatro
por cada artigo da sua defesa -, as que seriam convocadas para depor
ou, se morassem longe, interrogadas por prepostos nos seus locais de
residência. Alegando o acusado que era cristão velho, podia também
ser feita diligência de ofício, nos seus lugares de origem e/ou moradia
e nos de seus pais e avós.
Acontecia, então, uma nova rodada de acusação
e defesa, que consistia em dar conhecimento pormenorizado ao réu de
todas as declarações das testemunhas de acusação, omitindo, porém, "os
nomes dellas e o dia, mez, e anno em que testemunharam" e "não
declarando o logar, onde o delito se commetteu, mas dizendo que foi
em certa parte". Todos os depoimentos deviam ser notificados, inclusive
aqueles que redundassem nos mesmos fatos, "para que, vendo o réo
a muita prova, que há de suas culpas, possa tornar sobre si e confessal-as".
A essa publicação respondia o réu, por seu
procurador, com a apresentação de "contraditas", podendo propor
até seis testemunhas para a comprovação de cada artigo, três das quais
seriam efetivamente interrogadas, a critério dos inquisidores. Essas
testemunhas deviam ser, de preferência, "christãos velhos, e que
não sejam seus parentes dentro do quarto grau, nem seus familiares,
ou pessoas infames, e que fossem presas pelo Santo Officio, nem ausentes
em logares tão remotos, que não possam ser perguntadas sem grande dilação".
Chegando os processos ao ponto de poderem
ser conclusos, o procurador enviava a lista ao Conselho, solicitando
autorização para entrarem em despacho geral. Os julgamentos não podiam
ser realizados por menos de cinco membros, incluindo entre eles os
inquisidores, os deputados e o bispo ou seu representante. Um dos inquisidores
assumia o papel de relator, incumbindo-se de ler por extenso todo o
auto e todas as declarações e provas colhidas, dando, em cada caso,
seu parecer sobre a validade dos indícios. Os demais julgadores recebiam
cadernos para tomarem nota do que ouviam e fundamentarem posteriormente
seu voto.
À continuação, o preso era conduzido à sessão
e, posto de joelhos, era informado do julgamento iminente e encorajado
a dizer o que achasse necessário para o bem da sua causa. Restando
algumas dúvidas, os julgadores podiam interrogá-lo, mandando depois
recolhê-lo novamente à sua cela. Depois, o relator sintetizava o processo,
interpretando a informação recolhida e fundamentando seu voto, no que
era seguido, rigorosamente, pelos deputados, em ordem inversa de antiguidade,
pelos inquisidores, na mesma ordem, e finalmente pelo bispo, caso estivesse
presente em pessoa. Caso contrário, o seu representante deveria votar
depois dos deputados, mas antes dos inquisidores.
O Santo Ofício podia condenar em diversas
penas espirituais, entre as quais a "irregularidade", que destituía
os religiosos das ordens recebidas, e a "excomunhão", que significava
expulsar os castigados da comunidade dos fiéis. Também podia aplicar
penas temporais, como açoites, reclusão, degredo e confisco de bens,
chegando, nos casos extremos, a "relaxar" os réus convictos "à Justiça
Secular", eufemismo encontrado para justificar as condenações à morte.
Novamente, "Ecclesia abhorret sanguine". Por isso, as Ordenações
determinavam: "O conhecimento do crime da heresia pertence principalmente
aos Juizes Ecclesiasticos. E porque elles não podem fazer as execuções
nos condenados no dito crime, por serem de sangue, quando condenarem
alguns hereges, os devem remetter a Nós com as sentenças, que contra
elles derem, para os nossos Desembargadores as verem; aos quaes mandamos
que as cumprão, punindo os hereges condenados, como per Direito devem".
Mas o objetivo principal não era a vingança
institucionalizada, senão a consolidação da fé através da reconciliação
dos culpados com as normas da comunidade eclesiástica. Assim, existiam
punições menores, geralmente acompanhadas da exposição pública em hábitos
penitenciais e da obrigação de abjurar dos seus erros. Depois, os penitenciados
passavam por um processo de reeducação, às vezes no cárcere da penitência, às
vezes em conventos ou mosteiros, para garantir que os erros fossem
efetivamente abandonados. A morte era reservada aos negativos convictos
e, aceitando abjurar no último instante, lhes era concedida a graça
de serem estrangulados antes de acender a fogueira que deveria consumir
seus corpos. Essa gradação de penalidades, baseada, a critério da época,
em considerações piedosas, transformava, paradoxalmente, os queimados
vivos em mártires, condição que não poucas vezes foi invocada pelos
judeus, que bem conheciam a história do cristianismo e o orgulho com
que lembrava seus próprios mártires.
O Auto-de-Fé
Sem dúvida nenhuma, de todos os procedimentos
da Inquisição, os que mais ressaíam e mais fundo calavam nos setores
populares eram as suas solenidades públicas, de estudada teatralidade.
Já mencionamos a periódica leitura do "Edital da Fé" e as "visitas",
precedidas de anúncios, cominando excomunhão maior a quem faltasse
e proibindo a realização de outras solenidades que concorressem com
elas. Caracterizavam-se por grandes procissões, seguidas de ofícios
religiosos, durante os quais eram louvadas a Igreja e a própria Inquisição,
anatematizando os herejes, apóstatas e todos aqueles que se desviassem
dos dogmas estabelecidos, e intimando o povo a denunciá-los para providenciar
a sua reconciliação ou punição. Conseqüência e complemento necessário
dessas advertências era o ato complementar, em que os denunciados sofressem
publicamente as conseqüências das suas ações.
O auto-de-fé era preparado minuciosamente.
Um grande palanque era levantado, em praça pública, próximo da residência
do rei ou governador e ligado a ela por um passadiço reservado, que
permitisse o acesso das autoridades sem interferência do povo. Inquisição,
clero e autoridades civis e militares tinham lugares rigorosamente
determinados no palanque, rodeando um altar aonde seriam realizados
os ritos principais. A parte frontal, entre as autoridades e o povo,
era destinada aos condenados, que vestiam hábitos penitenciais, conforme
as penas às quais foram sentenciados. Os condenados à fogueira tinham
pintada a sua própria imagem entre as chamas, para cuja elaboração
os pintores designados podiam observá-los secretamente no cárcere.
Os que abjuraram, para não serem queimados em vida, usavam também "hábitos
affogados", porém com as chamas voltadas para baixo.
Com bastante antecedência, o tribunal escolhia
três sacerdotes e três desembargadores e remetia-lhes os nomes ao Inquisidor
Geral para que indicasse qual deles deveria pregar na solenidade e
qual receberia os relaxados como representante da Justiça secular.
Caso houvesse religiosos condenados, deveria também ser escolhido um
bispo para fazer a degradação. Independente desses protagonistas principais,
todas as autoridades se faziam presentes, para que o brilho da solenidade
não fosse empanado.
O auto começava com uma solene procissão,
em que penitenciados e relaxados eram conduzidos desde o cárcere da
penitência até o cadafalso. Uns e outros eram separados por um crucifixo,
acompanhado pelo capelão do cárcere e seis familiares carregando tochas.
Familiares acompanhavam também cada um dos condenados, recomendando-se
expressamente que "as mulheres, principalmente moças, vão com homens
velhos, e que com nenhum penitenciado vá pessoa de que possa haver
escandalo". Presos doentes podiam ser carregados em cadeiras e
aqueles que manifestassem um comportamento mais agressivo podiam ser
amordaçados.
Integravam também o cortejo carregadores
de livros proibidos, estátuas de réus foragidos e ossos de defuntos
a serem relaxados post mortem. Numa arca, conduzida "com
muita distincção", iam "o Regimento do Santo Officio, um dos
cadernos dos Inquisidores, o livro em que está a fórma de absolvição
dos reconciliados, tinteiros e papel, para escrever no Auto, sendo
necessario". Especial cuidado era posto nas decisões, previamente
revisadas pelos inquisidores, em mesa, "para que não aconteça dizer-se
nellas alguma cousa que não convenha, ou não conste nos autos; e muito
menos as que podem causar escandalo, ou mover a riso os ouvintes".
Só quando todos estavam já no palanque, deveriam
sair "os Inquisidores e mais Ministros do Santo Officio a cavallo,
levando diante o Meirinho, com vara alçada", cuja chegada ao local
da solenidade era o sinal para iniciar o sermão e, logo após, a leitura
do "Edicto da Fé" e das sentenças dos reconciliados. Depois,
o Inquisidor mais antigo tomava "sobrepelliz, estola, e capa roxa" e,
acompanhado pelos clérigos da freguesia e o capelão do cárcere da penitência,
realizava o ritual da absolvição.
Retornando o inquisidor ao seu lugar, era
a vez dos relaxados que, após a leitura das suas sentenças, eram passados
pelo meirinho aos juízes seculares. As sentenças, assinadas pelos inquisidores
e seladas com as armas do Santo Ofício, eram depositadas em mãos do
Corregedor do Crime da Corte ou do desembargador que houvesse sido
escolhido para recebê-las. As sentenças não eram, necessariamente,
executadas de imediato. Antes, para separar bem as respectivas responsabilidades,
preferia-se preparar as fogueiras em outros locais, às vezes fora das
cidades, o que não impedia que o povo acompanhasse entusiasticamente.
A Inquisição Pombalina
A partir de 1640, os procedimentos do Santo
Ofício permaneceram constantes por mais de um século. Depois do convulsionado
período da Restauração, em que o próprio D. Francisco de Castro chegou
a liderar conspirações contra a Coroa, as relações entre ambos os poderes
voltaram à normalidade e os monarcas posteriores mantiveram boas relações
com o Santo Ofício. Ainda, durante o reinado de D. João V, os tribunais
inquisitoriais tiveram destacada atuação.
Mas os tempos mudaram e, embora Espanha e
Portugal ainda resistissem às novas idéias, a Inquisição tornava-se
dia a dia mais anacrônica. Além dos escritos de Antônio Vieira, que
a enfrentara no auge do seu poderio e chegara a conhecer seus cárceres,
obras de Bayle, Voltaire, Montesquieu e outros autores estrangeiros
circulavam clandestinamente, a pesar dos esforços por controlar a sua
entrada em Portugal.
Foi essa situação que deu pretexto à primeira
intervenção explícita da Coroa nos negócios do Santo Ofício. À semelhança
da espanhola, a Inquisição portuguesa era um importante instrumento
político a serviço da Coroa mas, oficialmente, continuava vinculada
a Roma e não poucas entrara em conflito com os seus interesses. Fervoroso
seguidor das doutrinas absolutistas, o Marquês de Pombal não podia
permitir essa independência e já obtivera, antes mesmo de qualquer
ação oficial, a nomeação do seu irmão, D. Paulo de Carvalho, Arcebispo
de Évora, como Inquisidor Geral do Reino de Portugal. Já em 5 de abril
de 1768, alegando que a Inquisição não conseguia mais controlar o fluxo
de livros proibidos, conseguiu a criação da Real Mesa Censória, órgão
estatal destinado a centralizar as operações de censura. A Mesa começou
controlando, preferencialmente, as obras que atacavam à própria Inquisição.
Num edital de censura, declarava explicitamente, não haver "entre
todos os estabelecimentos humanos estabelecimento algum, que tanto
possa contribuir e tenha effectivamente contribuido para defender,
e conservar illibado, em toda a sua pureza, o sagrado depósito da Fé e
da Moral, que Christo nosso Redemptor confiou á sua Igreja". Mas,
de fato, estava usurpando para a Coroa, uma função que até então fora
atribuição exclusiva do Santo Ofício.
Um ano depois, em 20 de maio de 1769, um
novo alvará declarava o Conselho Geral do Santo Ofício "Tribunal
Regio", esclarecendo: "Regio por sua fundação e Regio por sua
mesma natureza" Essa medida colocava o órgão, oficialmente, em
dependência exclusiva da Coroa.
Esse conjunto de manobras, tendente a obter
o absoluto controle, se consolidou em 1º de setembro de 1774, com a
publicação do novo Regimento para a Direcção do Conselho Geral
do Santo Ofício e Governo das Inquisições, decretado em nome
do Inquisidor Geral e Regedor das Justiças, Cardeal da Cunha, que assumira
em 1770 o cargo vago pela morte de Paulo de Carvalho. O regimento,
de clara inspiração pombalina, proíbe o segredo das testemunhas, os
tormentos, as sentenças de morte baseadas no depoimento de uma só testemunha
e os autos-de-fé realizados em público, estabelecendo, porém, exceções
em que tormentos ou mesmo autos públicos podiam ser executados em heresiarcas,
dogmatistas, sigilistas e outros desvios considerados particularmente
perigosos. Os Autos da Fé poderiam continuar, mas seriam realizados
em locais fechados, sem o aparato que até esse momento os caracterizara.
Em verdade, muitas das novas disposições
não faziam senão reconhecer a obsolescência de normas que, de fato,
estavam já ficando fora de uso. A última execução pública tinha acontecido
em Lisboa em 1761, com a queima - depois de garroteado - do jesuíta
Gabriel Malagrida, ato de caráter mais político que religioso. Mesmo
as ressalvas que foram mantidas, teriam poucas ocasiões de serem colocadas
em prática.
É que Pombal - talvez involuntariamente -
atacara às bases dessa instituição desde um outro ângulo. O anacronismo
da Inquisição não era já apenas jurídico mas, também, - e principalmente
- social, político e econômico. Muitas gerações haviam passado desde
a reconquista e a expulsão dos judeus. Nem os conversos à força nem
os seus filhos ou netos eram mais vivos. Os atuais "cristãos novos" não
eram mais novos. Apesar da permanente segregação, muitos acabaram integrando-se
ao ritmo da sociedade católica e os que ainda se mantinham fiéis à sua
cultura não eram mais vistos como um perigo para a nação. Por outra
parte, Pombal e seus seguidores admiravam o grau de desenvolvimento
alcançado por outros países com base no comércio, não ignorando que
grande parte desse comércio estava alicerçado no capital e no trabalho
dos judeus expulsos de Espanha e Portugal.
Ex-diplomata em Viena e Londres, Carvalho
via na arcaica aristocracia portuguesa o grande empecilho para o desenvolvimento
do país, que ele sonhava dinâmico, baseado na produção e no comércio.
Assim, proibiu a reconstrução dos palácios e mansões danificados no
terremoto de Lisboa, em 1755, forçando o traçado de uma cidade de planta
rigorosamente geométrica, onde todos os prédios de uso particular deveriam
ser do mesmo padrão e sem indicação exterior de título nobiliário,
classe ou condição social. No local do antigo palácio real, mandou
erguer as secretarias de Estado, cedendo, com evidente intenção simbólica,
o andar térreo para estabelecimentos comerciais.
Esse propósito igualitário não apenas levou à extinção
das missões, decretação da liberdade dos índios e criação de governos
temporais nos territórios habitados por eles, como propiciou explicitamente
a miscigenação, declarando-se que os casados com índias "serão preferidos
para aquelles lugares, e occupações, que couberem na graduação das
suas pessoas", dando a mesma preferência às portuguesas casadas
com índios e "quando succeda, que os filhos, e descendentes destes
matrimonios tenhão algum requerimento perante Mim, Me farão saber esta
qualidade, para em razão della mais particularmente os attender".
A mesma lei proibia, sob pena de desterro da comarca, tratar a esses
matrimônios ou seus descendentes "com o nome de Caboucolos, ou outro
semelhante, que possa ser injurioso".
Contra os "judaizantes", a Inquisição
continuava agindo sem interferências. Sem contar a execução de Malagrida,
houve autos públicos em 1756, 57, 59 e 60. Até dezembro de 1768 continuaram
acontecendo autos particulares. A mácula de "cristão novo" atingia
ainda grande parte da população, inclusive membros das famílias mais
nobres que se viam forçadas a entrar na Justiça - nem sempre com bons
resultados - para eximir-se da infâmia e dos tributos a que os descendentes
de judeus eram condenados. Apesar de estar acima de qualquer suspeita
- era familiar do Santo Ofício, o que valia, de fato, como um atestado
de "cristão velho" -, Pombal arvorou-se em defensor das famílias
prejudicadas e, para acabar de vez com essa discriminação, mandou,
em 2 de maio de 1768, destruir todas as cópias dos róis de fintas pelos
quais esses impostos eram controlados, o que equivalia a eliminar,
de vez, toda prova legal de pureza ou impureza de sangue.
Mas não era apenas a prova legal que estabelecia
a diferença. As próprias famílias nobres faziam questão de conservar,
como um brasão, a sua limpeza de origem. Esse "puritanismo" não
iria desaparecer facilmente com a simples destruição dos documentos,
e Pombal resolveu atacar o problema pela raiz. Em 5 de outubro, cinco
meses depois da lei das fintas, um novo alvará mandou expurgar os livros
de genealogia e casar os filhos dos puritanos com membros das famílias
rejeitadas. Quem se negasse, se expunha a perder títulos, foros, propriedades
ou proventos quaisquer que tivessem sido recebidos da Coroa ou das
Ordens militares que dela dependiam.
Assim preparado o terreno, em 25 de maio
de 1773 foi sancionada a lei definitiva, proscrevendo "a odiosa
distincção entre Christãos Novos e Christãos Velhos". Ia precedida
por outra, de 4 de fevereiro, abolindo "a odiosa differença entre
o Reino do Algarve, e o de Portugal" e, especificamente sobre os
cristãos novos, por deliberações do Conselho de Estado, do Desembargo
do Paço, da Mesa da Consciência e do próprio Conselho Geral do Santo
Ofício, que, claramente influenciados pelas idéias do ministro, se
manifestaram contrários à distinção, considerando que "cristão novo" era,
apenas, o converso recente.
Morto D. José I, em 1777, e destituído o
Marquês de todos os seus cargos, diversas forças políticas submetidas
por ele tentaram recuperar as suas antigas posições, mas o dano era
grande demais. O Santo Ofício manteve suas prerrogativas, mas tinha
pouco o que fazer. As últimas décadas do século lhe viram languidecer,
sem um valor estratégico para a Coroa e atacado pelos mais diversos
setores, influenciados pelas doutrinas iluministas e pelos movimentos
revolucionários e independentistas. Quando, em 31 de março de 1821,
as Cortes Gerais, Extraordinárias e Constituintes da Nação Portuguesa
decretaram a sua extinção, era já uma estrutura anacrônica e desprovida
de sentido.

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