São Domingos presidindo o Tribunal do Santo Ofício.
São Domingos presidindo o Tribunal do Santo Ofício.
(Óleo de Pablo Berruguete)
  Memória
da Justiça Brasileira - 2
Capítulo 10

O Santo Ofício
(2ª parte)

Visita

Boa parte dos procedimentos inquisitoriais começavam pela chamada "visita", procedimento de inspeção herdado da antiga inquisição episcopal. Para realizá-la era designado "um dos Inquisidores, ou Deputados, de que se deva fiar negocio de tamanha importancia, pessoa de conhecidas letras, e de tanta authoridade, que com ella possa acrescentar a estimação de seu cargo".

A visita devia ser iniciada por uma "procissão solemne, com as maiores demonstrações de respeito e authoridade, que fôr possível", acompanhada pelas "Justiças, e Officiaes da Camara" e o "Senhor da terra, ou Alcaide-mór", indicando-se, para maior brilho, que "nesse dia não haja outra procissão, nem pregação". À continuação, haveria "Missa com toda a solemnidade, com Diacono, e Subdiacono" e "Sermão da Fé" após o qual seria publicado o "Edito da graça", declarando "por quanto tempo a graça se concede, o qual o Visitador assignará, conforme a grandeza do logar; mas nunca passará de trinta dias" e a "Provisão de Sua Magestade, pela qual se ha por bem de remetter os bens aos que dentro do dito tempo confessarem suas culpas".

A solenidade concluía com a leitura do "Edital da Fé" ou "Monitório Geral", em que se instava "a todas e quaesquer pessoas ecclesiasticas , seculares, e regulares, de qualquer grau, estado, preeminencia, ordem, e condição, que sejam, isentas, e não isentas, em virtude da santa obediencia, e sob pena de excommunhão maior, ipso facto incurrenda" a denunciar, no prazo de trinta dias, quaisquer indícios de judaísmo, islamismo, luteranismo, calvinismo, apostasia, bigamia, sodomia, astrologia, adivinhação etc. Esse edital não estava restrito às visitas. Ele devia ser publicado de ofício, todo primeiro domingo de Quaresma, em todos os conventos e paróquias, e dessa publicação derivavam boa parte das causas processadas pelo Santo Ofício.

Após a publicação do edital, começava a averiguação dos fatos. Estimulava-se a apresentação voluntária, considerada como atenuante e indício de que o culpado tinha vontade de redimir-se. Culpas leves, "como são blasfemias hereticaes, proposições temerarias, malsoantes e escandalosas, affirmar que a fornicação simples não é peccado, bigamia, superstições, e sortilegios, renegar no exterior em terra de mouros com medo dos tormentos", podiam ser despachadas de imediato, com o bispo da diocese, fazendo os apresentados "abjuração de leve" e impondo-se-lhes "penitencias espirituaes, sem alguma pena publica, ou qualquer outra, por que se possa vir em conhecimento da culpa". Já a denuncia dessas mesmas culpas, sem apresentação espontânea do acusado, a presunção ou delação de faltas maiores que as espontaneamente confessadas ou a constatação - ainda que por apresentação espontânea - de culpas graves, como judaísmo ou heresia, motivavam a apuração detalhada dos fatos e a remissão do processo ao Conselho Supremo.

Embora a figura do visitador estivesse rodeada das máximas demonstrações de autoridade, não lhe estava permitido julgar por si as faltas maiores ou fazer prisões, "ainda que para o fazer ache bastante prova". Havendo receio de que alguns acusados fugissem enquanto o processo era remetido ao Conselho, o visitador deveria providenciar "que as Justiças Seculares, ou Ecclesiasticas, da terra, [...] sem se intender que é por ordem sua, retenham na cadêa as ditas pessoas".

Exceção explícita, no regimento, diferencia as atribuições dos Visitadores de Ultramar, entre os que se contam, evidentemente, os que visitaram o Brasil nos séculos XVI e XVII. Podiam, "porque nas visitas dos logares ultramarinos, fica sendo o recurso ao Conselho mais difficultoso, e grande o prejuizo, que se poderá seguir da dillação da resposta", julgar e reconciliar - também em conjunto com o bispo da diocese - também os acusados de culpas graves, desde que fizessem "inteira e verdadeira confissão". Ainda, nos casos de "negativos" (réus que não admitiram a sua culpabilidade) e "confitentes diminutos" (aqueles que confessaram apenas parte do que se lhes imputava), os processos deveriam ser encaminhados para seu julgamento pelos tribunais.

Instrução

Fossem denunciados durante as visitas, publicações de ofício ou, simplesmente, descobertos em qualquer época e lugar, os suspeitos deviam passar por um longo processo, que o regimento detalha pormenorizadamente.

Na primeira sessão, chamada "de genealogia", o preso era perguntado "por seu nome, por sua idade, qualidade de sangue, que officio tinha, de que vivia, donde é natural, e morador, quem foram seus pais, e avós, de ambas as partes, que tios teve, assim paternos, como maternos, e que irmãos, o estado que uns e outros tiveram, se são casados, e com quem, que filhos, ou netos tem vivos, ou defunctos, e de que idade são, se é christão baptizado, e chrismado, onde, e por quem o foi, e quem foram seus padrinhos; e se depois que chegou aos annos de descrição ia ás Igrejas, se ouvia Missa, e se confessava, e commungava, e fazia as mais obras de christão", após o qual era mandado ajoelhar e rezar diversas orações.

Era perguntado, ainda, "se sabe lêr, e escrever, se estudou alguma sciencia e onde; se tem algumas Ordens, se sahio fôra do Reino, e por que partes andou, e nelle em que terras esteve, com que pessoas tratava, e communicava, e se foi outra vez preso, ou penitenciado pelo Santo Officio, ou se teve alguns parentes que o fossem".

Finalmente, perguntava-se "se sabe, ou suspeita, a causa por que foi preso" e, respondendo o acusado negativamente, era feita a primeira admoestação para que confessasse suas culpas "na qual lhe não será declarada a qualidade das culpas por que foi preso, e somente lhe será dito que está preso por culpas, cujo conhecimento pertence ao Santo Officio". Esta reserva seria mantida durante todo o processo, ignorando o prisioneiro não apenas o nome dos acusadores como também os delitos pelos quais era interrogado, o que o tornava ainda mais indefeso e o motivava, potencialmente, a confessar culpas desconhecidas dos próprios inquisidores.

Na segunda sessão, chamada "in genere", e realizada um mês depois da prisão, o preso era "perguntado em geral por suas culpas, e pela crença e ceremonias da lei, ou seita de que estiver delato, para que, achando-se culpado em alguma delas, o confesse, e trate do que convem á salvação de sua alma; e nesta sessão se multiplicarão as perguntas, segundo a qualidade das culpas e ceremonias da lei, ou seita de que está indiciado". Depois era feita a segunda admoestação, reiterando-lhe a necessidade de confessar as suas culpas.

Dentro "do mais breve tempo possível", era feita a terceira sessão, chamada "in specie", onde o preso era perguntado especificamente sobre os depoimentos das testemunhas de acusação e "havendo nelles alguma circumstancia particular, pela qual se possa vir em conhecimento da testemunha, neste caso se calará a tal circumstancia". Feita a terceira admoestação, e persistindo o acusado em negar sua culpa, encomendava-se ao Promotor a preparação do libelo acusatório.

Caso o acusado optasse por confessar imediatamente, podiam ser obviadas as sessões "in genere" e "in specie", optando-se por realizar a chamada "sessão de crença", na qual o réu, já confesso, era perguntado "pelo tempo em que se apartou da nossa Santa Fé, e se passou á crença dos erros, que tiver confessado; por quem lh’os ensinou, e ceremonias, que fez [...] e em que Deus cria no tempo de seus erros, que orações rezava, a quem as offerecia [...] se cria no Mysterio da Santissima Trindade, e em Christo Nosso Senhor, e se o tinha por verdadeiro Deus, e Messias prometido na Lei dos Judeus, ou se esperava ainda por elle, como os judeus esperam; se cria nos Sacramentos da Santa Madre Igreja, e os tinha por bons, e necessarios para salvação da alma, e se lhe fez alguma irreverencia, principalmente ao da Eucharistia; se tomava os Sacramentos, e fazia as mais obras de christão, e com que tenção as fazia; se confessava os erros que tem declarado, a seus confessores, e se os tinha por taes; se sabia que ter crença na lei de Moyses, ou seguir os erros que tem confessado, era contra o que tem, crê e ensina a Santa Madre Igreja de Roma, e contra o uso comum dos catholicos christãos; até que tempo lhe durou a crença de seus erros e que o moveu a apartar-se delles, e em que crê de presente".

Das declarações do acusado nessa sessão dependia a satisfação dos inquisidores ou a realização de uma nova admoestação para que confessasse suas culpas por inteiro. A negativa por parte do réu motivaria a realização de uma "sessão in specie de diminuições", durante a qual seria perguntado sobre as acusações recebidas que não tivessem sido satisfatoriamente explicadas pelas declarações anteriores.

Tormento

Mantendo-se o réu negativo ou diminuto durante as sessões "de genealogia", "in genere" e "in specie", podia ser submetido a tormento, que devia ser resolvido "em mesa", não bastando a decisão do inquisidor encarregado do caso. Nos primeiros tempos, parecem ter sido utilizados os mesmos tormentos aplicados pela Inquisição castelhana - herdeira, aliás, dos procedimentos da justiça civil -. Era comum, entre outros, a colocação dos pés do condenado sobre um braseiro, previamente retalhados e untados com banha, mas, de fato, o tipo de tormento ficava liberado à inventividade de juízes e algozes. O regimento de 1640 determina, pela primeira vez, o tipo de tormento a ser aplicado e, embora hoje nos pareça demasiadamente cruel, a indicação específica parece ter sido feita para evitar a aplicação indiscriminada de outros, ainda mais destrutivos.

Os tormentos autorizados no regimento são dois: o da polé, consistente em suspender o réu pelos pulsos amarrados atrás do corpo e deixá-lo cair violentamente, para interromper sua queda pouco antes de chegar ao chão, e o do potro, aparelho que estirava os membros do interrogado por meio de cordas. Embora, na sua versão mais conhecida, esse equipamento consista num leito de varetas sobre o qual a vítima era presa e estirada pelos pulsos e tornozelos, o regimento parece fazer referência a um tormento mais antigo, consistente em colocá-la montada num cavalete de bordas aguçadas, amarrando-lhe pesos nos tornozelos. Isso explicaria a ressalva regimental que proíbe sua aplicação nas mulheres "pelo muito que se deve attentar pela sua honestidade". O potro era considerado um tormento mais leve, indicando-se o seu uso nos homens que "por fraqueza, ou indisposição" não pudessem suportar o de polé. Também se aconselhava utilizar o potro se houvesse necessidade de "dar trato esperto" dentro dos quinze dias anteriores ao auto-de-fé "por não irem os presos a elle, mostrando os signaes do tormento". No caso das mulheres, a impossibilidade de suportar o único tormento permitido para elas deveria ser informada ao Conselho, para ele resolver o que achasse mais justo.

Nem sempre a Igreja admitiu a tortura. "Ecclesia abhorret sanguine" (A Igreja abomina o sangue) era princípio longamente aceito no Direito cristão. Questionava-se, por outra parte, a confiabilidade da confissão obtida sob tormento. No ano 866, o papa Nicolau I questionava: "Se o paciente se confessa culpado sem o ser, sobre quem recairá o pecado?". Porém, em 1252, já em pleno auge da luta contra os herejes, Inocêncio IV não resistiu as pressões e publicou a bula "Ad Extirpanda", autorizando, embora com limitações, a aplicação da tortura. Desprestigiadas, por supersticiosas, as provas por ordália, a Justiça comum aplicava já habitualmente a tortura como um meio para obter a confissão do réu, então considerada a prova por excelência. Se esses métodos eram aceitos para ladrões e assassinos - ponderava o papa - com mais razão poderiam ser aplicados aos "herejes, assassinos das almas e ladrões da fé de Cristo e os sacramentos de Deus". Essa permissão foi reiterada por Alexandre IV e Clemente IV, em 1259 e 1265.

Ainda assim, a tortura era um recurso a ser utilizado por magistrados comuns, aos quais os réus deveriam ser encaminhados para serem interrogados, o que não demorou a revelar-se prejudicial para o sigilo das investigações. Em conseqüência, os inquisidores foram autorizados a prescrever o tormento sem intervenção de outras autoridades - exceto os bispos, que deveriam ser convidados a participar da decisão - e aplicá-lo, geralmente com ajuda de irmãos leigos da ordem dominicana, em salas especialmente preparadas nos cárceres do Santo Ofício.

Diversas limitações foram publicadas em épocas diversas. A tortura não poderia causar efusão de sangue, e nem causar ferimentos duradouros ou a morte do réu. A esse efeito, a sua aplicação deveria ser acompanhada por um médico, que verificasse a resistência do paciente e mandasse interromper o tormento sempre que houvesse perigo de ocasionar danos graves ou irreversíveis. Cada sessão não poderia passar de uma hora e não poderia ser repetida, exceto em circunstâncias especiais, como a aparição de novos indícios incriminatórios. A confissão obtida sob tortura deveria ser ratificada após um prazo mínimo de vinte e quatro horas, para se ter certeza de que o réu não se acusara falsamente na desesperação por acabar com o tormento.

Não era raro, no entanto, que esses limites fossem ultrapassados. Réus morriam no tormento e o próprio regimento institucionalizava essa possibilidade. Antes de começar, a vítima devia ser formalmente advertida de que se "morrer, quebrar algum membro, ou perder algum sentido, a culpa será sua, pois voluntariamente se expõe áquele perigo que póde evitar, confessando suas culpas, e não será dos Ministros do Santo Ofício, que, fazendo justiça, segundo os merecimentos de sua causa, o julgam a tormento". Os próprios inquisidores podiam absolver-se, uns aos outros, dos pecados derivados do excesso no cumprimento das suas atribuições.

Fora os interrogatórios que procuravam a confissão dos suspeitos, casos em que o tormento era aplicado "in caput proprium", existia a tortura "in caput alienum". Estava restrita ao réu convicto que estivesse "indiciado com muitos cumplices do mesmo delicto" e com processo pronto e julgado, prestes a ser "relaxado à Justiça Secular". Perseguia a obtenção, através desse último interrogatório, de informações conduzentes à identificação e captura de "outras pessoas, que commetteram o crime por que foi accusado", situação da qual o próprio réu deveria ser advertido antes de começar. O regimento indica que "se não votará neste tormento, senão em casos muito graves, e de que se possa esperar grande fructo" e estabelece que "quando nelles se votar, antes da execução, enviarão o processo ao Conselho".

Julgamento

Concluídas as diversas sessões do interrogatório e sendo o réu ainda negativo ou confitente diminuto, o promotor era autorizado a preparar o libelo acusatório, reunindo todas as informações apuradas, prestadas pelas testemunhas e pelo próprio réu, e pedindo a sua condenação pelos delitos que lhe fossem provados. Reunido o tribunal em mesa, o réu era conduzido à sessão e advertido de que, "para alcançar mais misericordia", lhe seria conveniente confessar as suas culpas antes da leitura. À continuação, o promotor procedia à leitura formal do libelo, devendo o réu assistir em pé. Depois, era-lhe tomado juramento e a leitura era repetida, artigo por artigo, ordenando-se-lhe "que separadamente vá respondendo a elles".

Perguntado ao réu se desejava apresentar defesa, eram-lhe nomeados os "Advogados, que costumam procurar pelos presos, para que faça procuração a todos, e a cada um in solidum". Não lhe era permitido trazer seus próprios advogados, mas podia rejeitar algum dos que lhe eram oferecidos, declarando as causas, que deveriam constar no processo. Sendo o réu alfabetizado, recebia, no ato, um traslado do libelo, para melhor preparar a sua defesa. Podia, também, "pedir papel para fazer suas lembranças", em cujo caso lhe seriam fornecidas tinta, pena e tantas folhas de papel como fossem requeridas, que deveriam ser rubricadas no ato da entrega e conferidas rigorosamente na devolução, mesmo que acabassem ficando em branco. Já no caso dos analfabetos, devia ser "declarada com muita miudeza, a substancia do libelo", e dado traslado do mesmo ao procurador designado.

Formada a defesa do réu, era juntada ao processo e vista em mesa. O acusado podia apresentar testemunhas - até quatro por cada artigo da sua defesa -, as que seriam convocadas para depor ou, se morassem longe, interrogadas por prepostos nos seus locais de residência. Alegando o acusado que era cristão velho, podia também ser feita diligência de ofício, nos seus lugares de origem e/ou moradia e nos de seus pais e avós.

Acontecia, então, uma nova rodada de acusação e defesa, que consistia em dar conhecimento pormenorizado ao réu de todas as declarações das testemunhas de acusação, omitindo, porém, "os nomes dellas e o dia, mez, e anno em que testemunharam" e "não declarando o logar, onde o delito se commetteu, mas dizendo que foi em certa parte". Todos os depoimentos deviam ser notificados, inclusive aqueles que redundassem nos mesmos fatos, "para que, vendo o réo a muita prova, que há de suas culpas, possa tornar sobre si e confessal-as".

A essa publicação respondia o réu, por seu procurador, com a apresentação de "contraditas", podendo propor até seis testemunhas para a comprovação de cada artigo, três das quais seriam efetivamente interrogadas, a critério dos inquisidores. Essas testemunhas deviam ser, de preferência, "christãos velhos, e que não sejam seus parentes dentro do quarto grau, nem seus familiares, ou pessoas infames, e que fossem presas pelo Santo Officio, nem ausentes em logares tão remotos, que não possam ser perguntadas sem grande dilação".

Chegando os processos ao ponto de poderem ser conclusos, o procurador enviava a lista ao Conselho, solicitando autorização para entrarem em despacho geral. Os julgamentos não podiam ser realizados por menos de cinco membros, incluindo entre eles os inquisidores, os deputados e o bispo ou seu representante. Um dos inquisidores assumia o papel de relator, incumbindo-se de ler por extenso todo o auto e todas as declarações e provas colhidas, dando, em cada caso, seu parecer sobre a validade dos indícios. Os demais julgadores recebiam cadernos para tomarem nota do que ouviam e fundamentarem posteriormente seu voto.

À continuação, o preso era conduzido à sessão e, posto de joelhos, era informado do julgamento iminente e encorajado a dizer o que achasse necessário para o bem da sua causa. Restando algumas dúvidas, os julgadores podiam interrogá-lo, mandando depois recolhê-lo novamente à sua cela. Depois, o relator sintetizava o processo, interpretando a informação recolhida e fundamentando seu voto, no que era seguido, rigorosamente, pelos deputados, em ordem inversa de antiguidade, pelos inquisidores, na mesma ordem, e finalmente pelo bispo, caso estivesse presente em pessoa. Caso contrário, o seu representante deveria votar depois dos deputados, mas antes dos inquisidores.

O Santo Ofício podia condenar em diversas penas espirituais, entre as quais a "irregularidade", que destituía os religiosos das ordens recebidas, e a "excomunhão", que significava expulsar os castigados da comunidade dos fiéis. Também podia aplicar penas temporais, como açoites, reclusão, degredo e confisco de bens, chegando, nos casos extremos, a "relaxar" os réus convictos "à Justiça Secular", eufemismo encontrado para justificar as condenações à morte. Novamente, "Ecclesia abhorret sanguine". Por isso, as Ordenações determinavam: "O conhecimento do crime da heresia pertence principalmente aos Juizes Ecclesiasticos. E porque elles não podem fazer as execuções nos condenados no dito crime, por serem de sangue, quando condenarem alguns hereges, os devem remetter a Nós com as sentenças, que contra elles derem, para os nossos Desembargadores as verem; aos quaes mandamos que as cumprão, punindo os hereges condenados, como per Direito devem".

Mas o objetivo principal não era a vingança institucionalizada, senão a consolidação da fé através da reconciliação dos culpados com as normas da comunidade eclesiástica. Assim, existiam punições menores, geralmente acompanhadas da exposição pública em hábitos penitenciais e da obrigação de abjurar dos seus erros. Depois, os penitenciados passavam por um processo de reeducação, às vezes no cárcere da penitência, às vezes em conventos ou mosteiros, para garantir que os erros fossem efetivamente abandonados. A morte era reservada aos negativos convictos e, aceitando abjurar no último instante, lhes era concedida a graça de serem estrangulados antes de acender a fogueira que deveria consumir seus corpos. Essa gradação de penalidades, baseada, a critério da época, em considerações piedosas, transformava, paradoxalmente, os queimados vivos em mártires, condição que não poucas vezes foi invocada pelos judeus, que bem conheciam a história do cristianismo e o orgulho com que lembrava seus próprios mártires.

O Auto-de-Fé

Sem dúvida nenhuma, de todos os procedimentos da Inquisição, os que mais ressaíam e mais fundo calavam nos setores populares eram as suas solenidades públicas, de estudada teatralidade. Já mencionamos a periódica leitura do "Edital da Fé" e as "visitas", precedidas de anúncios, cominando excomunhão maior a quem faltasse e proibindo a realização de outras solenidades que concorressem com elas. Caracterizavam-se por grandes procissões, seguidas de ofícios religiosos, durante os quais eram louvadas a Igreja e a própria Inquisição, anatematizando os herejes, apóstatas e todos aqueles que se desviassem dos dogmas estabelecidos, e intimando o povo a denunciá-los para providenciar a sua reconciliação ou punição. Conseqüência e complemento necessário dessas advertências era o ato complementar, em que os denunciados sofressem publicamente as conseqüências das suas ações.

O auto-de-fé era preparado minuciosamente. Um grande palanque era levantado, em praça pública, próximo da residência do rei ou governador e ligado a ela por um passadiço reservado, que permitisse o acesso das autoridades sem interferência do povo. Inquisição, clero e autoridades civis e militares tinham lugares rigorosamente determinados no palanque, rodeando um altar aonde seriam realizados os ritos principais. A parte frontal, entre as autoridades e o povo, era destinada aos condenados, que vestiam hábitos penitenciais, conforme as penas às quais foram sentenciados. Os condenados à fogueira tinham pintada a sua própria imagem entre as chamas, para cuja elaboração os pintores designados podiam observá-los secretamente no cárcere. Os que abjuraram, para não serem queimados em vida, usavam também "hábitos affogados", porém com as chamas voltadas para baixo.

Com bastante antecedência, o tribunal escolhia três sacerdotes e três desembargadores e remetia-lhes os nomes ao Inquisidor Geral para que indicasse qual deles deveria pregar na solenidade e qual receberia os relaxados como representante da Justiça secular. Caso houvesse religiosos condenados, deveria também ser escolhido um bispo para fazer a degradação. Independente desses protagonistas principais, todas as autoridades se faziam presentes, para que o brilho da solenidade não fosse empanado.

O auto começava com uma solene procissão, em que penitenciados e relaxados eram conduzidos desde o cárcere da penitência até o cadafalso. Uns e outros eram separados por um crucifixo, acompanhado pelo capelão do cárcere e seis familiares carregando tochas. Familiares acompanhavam também cada um dos condenados, recomendando-se expressamente que "as mulheres, principalmente moças, vão com homens velhos, e que com nenhum penitenciado vá pessoa de que possa haver escandalo". Presos doentes podiam ser carregados em cadeiras e aqueles que manifestassem um comportamento mais agressivo podiam ser amordaçados.

Integravam também o cortejo carregadores de livros proibidos, estátuas de réus foragidos e ossos de defuntos a serem relaxados post mortem. Numa arca, conduzida "com muita distincção", iam "o Regimento do Santo Officio, um dos cadernos dos Inquisidores, o livro em que está a fórma de absolvição dos reconciliados, tinteiros e papel, para escrever no Auto, sendo necessario". Especial cuidado era posto nas decisões, previamente revisadas pelos inquisidores, em mesa, "para que não aconteça dizer-se nellas alguma cousa que não convenha, ou não conste nos autos; e muito menos as que podem causar escandalo, ou mover a riso os ouvintes".

Só quando todos estavam já no palanque, deveriam sair "os Inquisidores e mais Ministros do Santo Officio a cavallo, levando diante o Meirinho, com vara alçada", cuja chegada ao local da solenidade era o sinal para iniciar o sermão e, logo após, a leitura do "Edicto da Fé" e das sentenças dos reconciliados. Depois, o Inquisidor mais antigo tomava "sobrepelliz, estola, e capa roxa" e, acompanhado pelos clérigos da freguesia e o capelão do cárcere da penitência, realizava o ritual da absolvição.

Retornando o inquisidor ao seu lugar, era a vez dos relaxados que, após a leitura das suas sentenças, eram passados pelo meirinho aos juízes seculares. As sentenças, assinadas pelos inquisidores e seladas com as armas do Santo Ofício, eram depositadas em mãos do Corregedor do Crime da Corte ou do desembargador que houvesse sido escolhido para recebê-las. As sentenças não eram, necessariamente, executadas de imediato. Antes, para separar bem as respectivas responsabilidades, preferia-se preparar as fogueiras em outros locais, às vezes fora das cidades, o que não impedia que o povo acompanhasse entusiasticamente.

A Inquisição Pombalina

A partir de 1640, os procedimentos do Santo Ofício permaneceram constantes por mais de um século. Depois do convulsionado período da Restauração, em que o próprio D. Francisco de Castro chegou a liderar conspirações contra a Coroa, as relações entre ambos os poderes voltaram à normalidade e os monarcas posteriores mantiveram boas relações com o Santo Ofício. Ainda, durante o reinado de D. João V, os tribunais inquisitoriais tiveram destacada atuação.

Mas os tempos mudaram e, embora Espanha e Portugal ainda resistissem às novas idéias, a Inquisição tornava-se dia a dia mais anacrônica. Além dos escritos de Antônio Vieira, que a enfrentara no auge do seu poderio e chegara a conhecer seus cárceres, obras de Bayle, Voltaire, Montesquieu e outros autores estrangeiros circulavam clandestinamente, a pesar dos esforços por controlar a sua entrada em Portugal.

Foi essa situação que deu pretexto à primeira intervenção explícita da Coroa nos negócios do Santo Ofício. À semelhança da espanhola, a Inquisição portuguesa era um importante instrumento político a serviço da Coroa mas, oficialmente, continuava vinculada a Roma e não poucas entrara em conflito com os seus interesses. Fervoroso seguidor das doutrinas absolutistas, o Marquês de Pombal não podia permitir essa independência e já obtivera, antes mesmo de qualquer ação oficial, a nomeação do seu irmão, D. Paulo de Carvalho, Arcebispo de Évora, como Inquisidor Geral do Reino de Portugal. Já em 5 de abril de 1768, alegando que a Inquisição não conseguia mais controlar o fluxo de livros proibidos, conseguiu a criação da Real Mesa Censória, órgão estatal destinado a centralizar as operações de censura. A Mesa começou controlando, preferencialmente, as obras que atacavam à própria Inquisição. Num edital de censura, declarava explicitamente, não haver "entre todos os estabelecimentos humanos estabelecimento algum, que tanto possa contribuir e tenha effectivamente contribuido para defender, e conservar illibado, em toda a sua pureza, o sagrado depósito da Fé e da Moral, que Christo nosso Redemptor confiou á sua Igreja". Mas, de fato, estava usurpando para a Coroa, uma função que até então fora atribuição exclusiva do Santo Ofício.

Um ano depois, em 20 de maio de 1769, um novo alvará declarava o Conselho Geral do Santo Ofício "Tribunal Regio", esclarecendo: "Regio por sua fundação e Regio por sua mesma natureza" Essa medida colocava o órgão, oficialmente, em dependência exclusiva da Coroa.

Esse conjunto de manobras, tendente a obter o absoluto controle, se consolidou em 1º de setembro de 1774, com a publicação do novo Regimento para a Direcção do Conselho Geral do Santo Ofício e Governo das Inquisições, decretado em nome do Inquisidor Geral e Regedor das Justiças, Cardeal da Cunha, que assumira em 1770 o cargo vago pela morte de Paulo de Carvalho. O regimento, de clara inspiração pombalina, proíbe o segredo das testemunhas, os tormentos, as sentenças de morte baseadas no depoimento de uma só testemunha e os autos-de-fé realizados em público, estabelecendo, porém, exceções em que tormentos ou mesmo autos públicos podiam ser executados em heresiarcas, dogmatistas, sigilistas e outros desvios considerados particularmente perigosos. Os Autos da Fé poderiam continuar, mas seriam realizados em locais fechados, sem o aparato que até esse momento os caracterizara.

Em verdade, muitas das novas disposições não faziam senão reconhecer a obsolescência de normas que, de fato, estavam já ficando fora de uso. A última execução pública tinha acontecido em Lisboa em 1761, com a queima - depois de garroteado - do jesuíta Gabriel Malagrida, ato de caráter mais político que religioso. Mesmo as ressalvas que foram mantidas, teriam poucas ocasiões de serem colocadas em prática.

É que Pombal - talvez involuntariamente - atacara às bases dessa instituição desde um outro ângulo. O anacronismo da Inquisição não era já apenas jurídico mas, também, - e principalmente - social, político e econômico. Muitas gerações haviam passado desde a reconquista e a expulsão dos judeus. Nem os conversos à força nem os seus filhos ou netos eram mais vivos. Os atuais "cristãos novos" não eram mais novos. Apesar da permanente segregação, muitos acabaram integrando-se ao ritmo da sociedade católica e os que ainda se mantinham fiéis à sua cultura não eram mais vistos como um perigo para a nação. Por outra parte, Pombal e seus seguidores admiravam o grau de desenvolvimento alcançado por outros países com base no comércio, não ignorando que grande parte desse comércio estava alicerçado no capital e no trabalho dos judeus expulsos de Espanha e Portugal.

Ex-diplomata em Viena e Londres, Carvalho via na arcaica aristocracia portuguesa o grande empecilho para o desenvolvimento do país, que ele sonhava dinâmico, baseado na produção e no comércio. Assim, proibiu a reconstrução dos palácios e mansões danificados no terremoto de Lisboa, em 1755, forçando o traçado de uma cidade de planta rigorosamente geométrica, onde todos os prédios de uso particular deveriam ser do mesmo padrão e sem indicação exterior de título nobiliário, classe ou condição social. No local do antigo palácio real, mandou erguer as secretarias de Estado, cedendo, com evidente intenção simbólica, o andar térreo para estabelecimentos comerciais.

Esse propósito igualitário não apenas levou à extinção das missões, decretação da liberdade dos índios e criação de governos temporais nos territórios habitados por eles, como propiciou explicitamente a miscigenação, declarando-se que os casados com índias "serão preferidos para aquelles lugares, e occupações, que couberem na graduação das suas pessoas", dando a mesma preferência às portuguesas casadas com índios e "quando succeda, que os filhos, e descendentes destes matrimonios tenhão algum requerimento perante Mim, Me farão saber esta qualidade, para em razão della mais particularmente os attender". A mesma lei proibia, sob pena de desterro da comarca, tratar a esses matrimônios ou seus descendentes "com o nome de Caboucolos, ou outro semelhante, que possa ser injurioso".

Contra os "judaizantes", a Inquisição continuava agindo sem interferências. Sem contar a execução de Malagrida, houve autos públicos em 1756, 57, 59 e 60. Até dezembro de 1768 continuaram acontecendo autos particulares. A mácula de "cristão novo" atingia ainda grande parte da população, inclusive membros das famílias mais nobres que se viam forçadas a entrar na Justiça - nem sempre com bons resultados - para eximir-se da infâmia e dos tributos a que os descendentes de judeus eram condenados. Apesar de estar acima de qualquer suspeita - era familiar do Santo Ofício, o que valia, de fato, como um atestado de "cristão velho" -, Pombal arvorou-se em defensor das famílias prejudicadas e, para acabar de vez com essa discriminação, mandou, em 2 de maio de 1768, destruir todas as cópias dos róis de fintas pelos quais esses impostos eram controlados, o que equivalia a eliminar, de vez, toda prova legal de pureza ou impureza de sangue.

Mas não era apenas a prova legal que estabelecia a diferença. As próprias famílias nobres faziam questão de conservar, como um brasão, a sua limpeza de origem. Esse "puritanismo" não iria desaparecer facilmente com a simples destruição dos documentos, e Pombal resolveu atacar o problema pela raiz. Em 5 de outubro, cinco meses depois da lei das fintas, um novo alvará mandou expurgar os livros de genealogia e casar os filhos dos puritanos com membros das famílias rejeitadas. Quem se negasse, se expunha a perder títulos, foros, propriedades ou proventos quaisquer que tivessem sido recebidos da Coroa ou das Ordens militares que dela dependiam.

Assim preparado o terreno, em 25 de maio de 1773 foi sancionada a lei definitiva, proscrevendo "a odiosa distincção entre Christãos Novos e Christãos Velhos". Ia precedida por outra, de 4 de fevereiro, abolindo "a odiosa differença entre o Reino do Algarve, e o de Portugal" e, especificamente sobre os cristãos novos, por deliberações do Conselho de Estado, do Desembargo do Paço, da Mesa da Consciência e do próprio Conselho Geral do Santo Ofício, que, claramente influenciados pelas idéias do ministro, se manifestaram contrários à distinção, considerando que "cristão novo" era, apenas, o converso recente.

Morto D. José I, em 1777, e destituído o Marquês de todos os seus cargos, diversas forças políticas submetidas por ele tentaram recuperar as suas antigas posições, mas o dano era grande demais. O Santo Ofício manteve suas prerrogativas, mas tinha pouco o que fazer. As últimas décadas do século lhe viram languidecer, sem um valor estratégico para a Coroa e atacado pelos mais diversos setores, influenciados pelas doutrinas iluministas e pelos movimentos revolucionários e independentistas. Quando, em 31 de março de 1821, as Cortes Gerais, Extraordinárias e Constituintes da Nação Portuguesa decretaram a sua extinção, era já uma estrutura anacrônica e desprovida de sentido.


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