São Domingos presidindo o Tribunal do Santo Ofício.
São Domingos presidindo o Tribunal do Santo Ofício.
(Óleo de Pablo Berruguete)
  Memória
da Justiça Brasileira - 2
Capítulo 10

O Santo Ofício
(1ª parte)

Apesar de termos feito uma rápida referência, no primeiro volume desta "Memória", o tema da Inquisição merece uma análise mais detalhada, não apenas pelo enorme poder que chegou a exercer como pela particularidade dos seus procedimentos e rituais.

Mais do que qualquer outro dos temas abordados nesta obra, o Santo Ofício tem provocado incontáveis análises. Muitas, partindo de concepções próprias de épocas posteriores, foram excessivamente condicionadas pelo horror que as torturas e suplícios ocasionam nas consciências atuais. Algumas, às vezes por religião ou patriotismo, procuraram negar ou relativizar os seus excessos, comparando-os com os de outras épocas e credos apontados como ainda mais graves. Poucas tentaram estudar desapaixonadamente os seus procedimentos, servindo-se do conhecimento da época para explicá-los, sem apressar-se em denegrir ou justificar.

Permita-se-nos integrar, dentro do possível, este último grupo, concentrando-nos em estudar o Santo Ofício enquanto órgão judicial, inserido na complexa malha de controles governamentais que garantiram, por vários séculos a sobrevivência do império colonial português.

Antecedentes da Função Inquisitorial

Identificada popularmente com o Santo Ofício, a inquisição é, na verdade, uma função que a Igreja reivindica como própria e vem exercitando desde os seus primeiros séculos de existência. Limitado por suas origens e pela perseguição de que era objeto, o cristianismo começou com muita simplicidade, mas, na medida em que conseguia consolidar a sua estrutura, foi, gradativamente, elaborando suas próprias regras (do grego "kanon"), que, com o passar do tempo, chegariam a constituir um direito particular: o Direito Canônico.

Ora, quem estabelece regras se preocupa por seu cumprimento. Os conflitos internos e externos da comunidade eclesiástica eram arbitrados pelos bispos, com base no procedimento acusatório herdado do direito romano, mas logo ficou aparente que nem sempre havia parte acusadora para colocar um freio aos desvios da fé. Então, as autoridades eclesiásticas começaram a investigar de ofício, inicialmente como procedimento disciplinar restrito ao policiamento do clero. Originou-se, assim, o procedimento inquisitorial, que, depois, seria aplicado também ao combate às heresias. Mesmo assim, a quase totalidade da investigação resumia-se a perguntar às pessoas presuntivamente informadas ou envolvidas, e tropeçava freqüentemente com o silêncio das testemunhas, temerosas das represálias que suas declarações poderiam provocar. Surgiu, assim, como uma terceira forma de originar processos judiciais, o estímulo à delação, não anônima, posto que o autor era conhecido pelos inquisidores e assumia a sua responsabilidade perante Deus e os homens, mas sim mantida no mais absoluto sigilo, para proteger às testemunhas da vingança dos denunciados. Este procedimento, que tencionava acabar com a impunidade dos poderosos, acabaria transformando-se numa escura malha de delações, a comprometer seriamente a credibilidade do Santo Ofício.

Até o século XII, os bispos e seus prepostos mantiveram o exercício exclusivo da inquisição. Desde os primeiros tempos, existiam desvios da fé: No século II, o gnosticismo e o montanismo. Depois, o maniqueísmo, o donatismo, o priscilianismo etc. Mas era uma igreja jovem, ainda sem interesses materiais e imbuída do forte espírito missionário que conduziria muitos dos seus integrantes ao martírio. Diante das dissidências, não se pensava em coagir, mas em dialogar e convencer. Os próprios pregadores não tinham ainda a certeza absoluta das suas crenças, e tendências diversas encontravam-se em concílios e sínodos à procura de uma verdade aceita por todos.

Esse estado de coisas mudou com a conversão de Constantino e a projeção do cristianismo como religião oficial do Império. Repentinamente deslocada da oposição ao oficialismo, a religião cristã se converteria de perseguida em perseguidora; os últimos tempos de Roma a veriam punir rigorosamente não apenas os pagãos, como eram considerados os fiéis às antigas religiões, mas também os herejes, que conheceram a confiscação de bens, os tormentos e até mesmo a morte.

Depois da queda do Império Romano do Ocidente, a Igreja, única força organizada e intelectualmente coesa na anarquizada Europa, consolidaria, concomitantemente, seu domínio espiritual e seu poder temporal, até transformar seus dogmas, ritos e costumes nos únicos universalmente aceitos e respeitáveis. Não que não existissem outras religiões. Judeus e muçulmanos estavam fartamente representados na Europa cristã. Mas o seu exemplo não era tão perigoso porque a população os via como seres distintos e, em muitos casos, como inimigos. A Igreja preferia considerar que estavam errados e que, mais cedo ou mais tarde, acabariam tomando consciência disso.

Mas o crescimento do dogmatismo, da coerção e do poder material da Igreja acabaria provocando reações inevitáveis. Ao completar-se o primeiro milênio, proliferavam as mais diversas formas de rebeldia, desde as que intentavam recuperar a pureza e austeridade da Igreja primitiva até as que, invertendo os valores proclamados e nem sempre respeitados, glorificavam o sexo, o pecado e até mesmo a própria pessoa do demônio. Paradoxalmente, esses desvios eram mais perigosos quanto mais próximos estivessem dos postulados cristãos. A população, precariamente instruída, os seguia facilmente, e a insatisfação das pessoas de maior cultura, e até dos próprios sacerdotes, acabava engrossando as fileiras das seitas cismáticas.

A incapacidade das estruturas tradicionais para controlarem a situação ficou evidente no crescimento dos cátaros ou albigenses, herdeiros do antigo maniqueísmo romano, que tinha subsistido no Oriente e começou a voltar à Europa a partir do século X. No século XII, os albigenses tinham suas próprias dioceses, seus bispos, e chegaram até a realizar um concílio, na França, trazendo de Constantinopla seu próprio "papa". A agitação crescia entre a população. Abundavam os confrontos entre parcialidades religiosas. Não poucos herejes foram linchados pela população e alguns governos cristãos assumiram espontaneamente à perseguição e passaram a pressionar à Santa Sé para oficializá-la e torná-la universal.

As primeiras medidas oficiais foram tomadas pelo papa Lúcio III e o imperador Frederico I, que, amparados em recomendações dos concílios de Latrão (1179) e Verona (1184), unificaram a repressão às diversas heresias. Intensificou-se a atividade inquisitorial do episcopado e várias coroas iniciaram atividades militares contra os principais centros de difusão das doutrinas não autorizadas. A fogueira começou a definir-se como o castigo adequado aos impenitentes, cujo delito, de "lesa-majestade divina", deveria ser considerado como maior e mais horrível que o de "lesa-majestade humana". Em Verona foi elaborado um regimento especial para os bispos, considerados "inquisidores ordinários", incumbindo-os de visitar duas vezes por ano os focos de heresia que se encontrassem dentro das suas dioceses.

Tornou-se evidente que os bispos, ocupados com as outras responsabilidades próprias dos seus cargos, não conseguiriam controlar a situação. Por outra parte, os herejes passavam quase livremente de uma diocese à outra e os bispos não tinham poder nenhum fora das próprias. Em 1216, o papa Inocêncio III encomendou a São Domingos de Gusmão, fundador da ordem dos pregadores - depois conhecidos como "dominicanos" - a presidência de um tribunal especial, sediado em Toulouse. Baseava-se nas determinações do Concílio de Verona e de um novo concílio, realizado em Latrão em 1215, os quais forneceram o sustento doutrinário e legal para o estabelecimento da "inquisição delegada", isto é, presidida e executada por magistrados diretamente ligados à Santa Sé. Com a mesma base, foram criados outros tribunais especiais e, três anos depois, o próprio São Domingos organizou uma confraria chamada "Milícia de Jesus Cristo", cujos membros não faziam vida conventual mas juravam guardar castidade - ou, se casados, fidelidade conjugal - e tomar as armas a serviço da Igreja toda vez que fossem convocados. Após a morte do fundador, passaram a constituir a Ordem militar de São Domingos, reforçando o seu caráter de milícia armada em defesa da fé.

A estrutura definitiva do Santo Ofício foi delineada no concílio de 1229, em Toulouse, e terminou de consolidar-se em 1231, por bula do papa Gregório IX. Inicialmente, a atividade dos inquisidores delegados - em geral frades dominicanos ou franciscanos - era concorrente com a dos bispos, mas, aos poucos, foi dominando esse espaço por tratar-se de uma instância jurídica específica, que podia concentrar-se exclusivamente no policiamento da fé e agir, em conseqüência, com mais celeridade e eficácia. Mesmo assim, os tribunais continuaram reservando aos ordinários lugares proeminentes nas visitas e nos julgamentos, como a demonstrar, simbolicamente, que a potestade inquisitorial era ainda uma prerrogativa episcopal.

Os primeiros tribunais inquisitoriais, diretamente subordinados ao papa, agiam em forma relativamente autônoma, mas logo ficou evidente a necessidade de se criar uma instância revisional. Inicialmente essa responsabilidade foi encomendada a uma junta de cardeais, até o papa Urbano IV criar, em 1263, o cargo de Inquisidor Geral, concentrando numa única pessoa o controle de todos os tribunais. Em 1543, Paulo III resolveu restaurar a junta de cardeais, que subsistiu até o pontificado de Sixto V (1585-1590), que organizou as Congregações da Cúria Romana, incluindo entre elas a do Santo Ofício, que passou a concentrar todas as funções referentes à Inquisição.

A Inquisição Espanhola

A partir de Toulouse, a Inquisição se estendeu rapidamente pelos reinos da Europa central, especialmente nos atuais territórios da França, Itália e Alemanha. Menor foi a sua influência na Península Ibérica, que vivia uma situação diferenciada, não apenas religiosa mas política e militarmente.

Desde o ano 711, o atual território hispano-português estava invadido pelos "mouros", berberes islamizados do norte da África que chegaram a constituir um reino praticamente independente, com capital em Córdoba. A reação dos peninsulares, que, aos poucos, iria consolidando os reinos de Leão, Castela, Aragão, Catalunha e Navarra, começou entrincheirada nas montanhas septentrionais - menos apetecidas pelos conquistadores -, procurando depois recuperar o sul, numa lenta expansão que demoraria vários séculos.

Mas não era, propriamente, uma guerra de reconquista. Difícil se torna considerar invadido um território que, mesmo anteriormente, não constituía uma unidade nacional e estava dividido em feudos que, por sua vez, se invadiam entre si. Por outra parte, depois de vários séculos de ocupação, os muçulmanos ibéricos podiam considerar-se virtualmente nativos, sedimentados através de numerosas gerações. Muitos deles não conheciam outra terra e, após a queda das suas cidades, acabariam dispersando-se pelos campos e permanecendo neles como agricultores, mais ou menos tolerados por seus novos senhores. Assim, toda e qualquer ação contra eles dependeria, necessariamente, da união dos feudos em volta de uma bandeira comum que os diferenciasse claramente dos inimigos, dando à guerra um fundamento aceito por todos.

Mais do que a raça ou a nacionalidade, esse fundamento foi oferecido pela religião. Isolados da Europa central pelos Pirineus e protegidos de migrações forâneas pelo escasso apelo das suas terras, pobres e pouco produtivas, os espanhóis eram fervorosamente católicos. Mesmo quando a heresia se espalhava no resto da Europa, os reinos espanhóis conservavam orgulhosamente a sua ortodoxia.

Apenas Navarra e Aragão, em razão da proximidade com a França, chegaram a receber um contingente de herejes suficiente para justificar a instalação de uma inquisição delegada. O próprio São Domingos enviou, ainda no século XII, a São Raimundo de Penyafort como comissário inquisitorial ao reino de Aragão. São Raimundo redigiu um manual para inquisidores, que foi aprovado no Concílio de Tarragona, em 1242, e estabeleceu um tribunal em Lérida. Outro manual, de grande influência nos séculos posteriores, foi elaborado pelo provincial da Ordem de São Domingos, Nicolás Eymerich. Ao tribunal de Lérida se agregaram depois os de Zaragoza, Barcelona, Tarragona, Urgel, Gerona, Rosellón, Cerdaña e Ilhas Baleares. Já o tribunal de Navarra, estabelecido em 1238, teve pouca expressão e chegou até a depender, por algum tempo, da Inquisição aragonesa. Longe dos Pirineus, os outros reinos se consideravam a salvo da heresia francesa. Diante de qualquer fato que colocasse em perigo a pureza da fé, os bispos, como inquisidores ordinários, controlavam rapidamente a situação, contando sempre com o auxílio diligente dos reis e senhores dos respectivos territórios.

Havia, portanto, uma característica comum aos moradores de todos os reinos. Fossem eles aragoneses ou navarros, leoneses ou castelhanos, todos eles eram católicos, ou seja "fiéis", e não podiam admitir que dois terços da península permanecessem nas mãos dos "infiéis". Nesse contexto, a fé passou a ser uma bandeira comum e a conquista do território muçulmano transformou-se numa espécie de guerra santa.

Apenas uma impureza existia, em ambos os lados. Mouros e cristãos conviviam, nos seus respectivos territórios, com a incômoda vizinhança de um apreciável número de judeus. Expatriados, espalhados pelo mundo, os judeus conviviam com todos os povos, com todas as raças, com todas as religiões, mas não renunciavam à sua identidade, à sua cultura e à sua própria religião.

Não faltaram, na Península Ibérica, exemplos de boa convivência, de tolerância e até de privilégios dados aos judeus. Muitos deles chegaram a ser respeitados por seus conhecimentos ou a ocupar altos cargos nos diversos reinos. Mas os conflitos eram também freqüentes. Já em 306, durante a dominação romana, o Concílio de Córdoba recomendava medidas segregacionistas contra eles. Uma paz relativa ocorreu após a queda do império, com a adesão dos reis visigodos ao arianismo, mas logo, em 587, Recaredo se converteu ao catolicismo e resolveu impô-lo como religião oficial.

À semelhança dos mouros, os judeus não podiam ser tidos como "herejes", mas como "infiéis". Ou seja, não se considerava que tivessem abandonado a fé cristã ou violentado às suas normas, mas que ainda não tiveram a sorte de receber "a luz da verdadeira fé", sendo, portanto, mais dignos de lástima e de ajuda que de repressão. Essa visão de inspiração missionária começou a mudar quando, revelando-se inúteis as tentativas de evangelização, as populações "pagãs" começaram a ser pressionadas ou até compelidas à conversão. Já em 612, o rei Sisebuto obrigava os judeus a escolher entre o cristianismo e o exílio, disjuntiva que se repetiria em diversas oportunidades durante os séculos posteriores.

Embora existam casos de conversões sinceras, é claro que, pressionados dessa maneira, muitos judeus fingiriam aderir ao cristianismo para, na intimidade, continuarem fiéis aos seus antigos rituais. Talvez eles mesmos não percebessem que, com essa conversão fingida, acabavam de cruzar a tênue linha que separava os "infiéis" e "pagãos" dos "herejes" e "apóstatas".

Essa sutil diferença era mais perceptível às autoridades eclesiásticas que à população leiga. Na prática, tanto entre os cristãos quanto entre os muçulmanos, as causas principais da segregação dos judeus eram a intolerância e a competência pelo poder. Idéias universalistas ou ecumênicas eram totalmente estranhas à mentalidade da época. Tudo que fosse diferente era, potencialmente, perigoso. A imaginação popular recheava com fantásticos temores o seu próprio desconhecimento das culturas alheias.

Mas nem todas as culturas eram igualmente temidas. Embora rejeitados e desprezados, os ciganos e outras minorias étnicas não eram vistos como um perigo digno de consideração. Na base da rejeição contra os judeus devem ser procuradas outras razões. Uma delas pode ser a intolerância dos próprios judeus, que defendiam orgulhosamente as suas crenças, aprofundando assim o fosso que os separava das outras culturas. Mas existia uma razão ainda mais forte. Ao contrário dos ciganos, os judeus eram poderosos. Marginalizados, com freqüência, das atividades comuns aos cristãos, acabaram especializando-se nos ofícios que aqueles rejeitavam; principalmente, no exercício do comércio.

O católico desprezava o comércio por considerá-lo uma atividade parasitária. Não considerava honesto um trabalho que não gerava bens e, apenas, lucrava intermediando o seu fluxo. Mas a economia já ultrapassava os limites do feudo e o mercador, embora desprezado, tornava-se necessário e conseguia ser bem pago. Assim, os judeus passaram a desfrutar de um poder considerável e tornaram-se alvo da inveja de aldeões e cortesãos, que não compreendiam como, persistindo no erro e exercendo essa atividade vil, os "infiéis" recebiam como prêmio o luxo e a prosperidade. Ainda, à medida em que o poder econômico lhes abria outras portas, os judeus casavam com moças cristãs de boa família e chegavam a escalar altas posições na burocracia estatal.

Esse caminho ficava ainda mais acessível após a conversão. Funções que ninguém ousaria colocar em mãos infiéis eram facilmente outorgadas a "cristãos novos", de cuja fidelidade ninguém tinha demasiada certeza. Aos poucos, uma complexa malha de restrições foi instituída para limitar o acesso desses conversos a posições de governo e justiça, exigindo-se prévia comprovação, por autoridade, competente, da "limpeza de sangue" dos pretendentes.

Existia, ainda o problema da ciência. Grandes áreas do conhecimento eram pesquisadas e praticadas exclusivamente por judeus. Marginalizados os pobres da escolaridade, concentrados os nobres nas funções militares e políticas, limitada a Igreja por barreiras dogmáticas, os judeus e cristãos novos eram os únicos a investigar e experimentar com certa liberdade e chegavam a dominar profissões tão perigosas como a medicina. Imagine-se o receio dos católicos ao ver-se entregues, nas suas doenças, aos cuidados dos seus inimigos mais temidos.

Isso explica, em grande parte, a insistência das Cortes, que, não poucas vezes, chegaram a forçar medidas repressivas que os reis não tinham pensado ainda em tomar. Problemas semelhantes aconteceram nos domínios árabes, onde, admitidos inicialmente com certa liberdade, os judeus acabaram sofrendo sangrentas perseguições. Em plena guerra de reconquista, os reinos cristãos receberam multidões de judeus que deixavam a Espanha muçulmana para não ver-se obrigados a converter-se ao islamismo.

Poupada, nos séculos anteriores, da presença dos herejes, Castela não se vira na necessidade de constituir tribunais inquisitoriais. Porém, o fervoroso - e político -catolicismo da rainha Isabel e, provavelmente, a influência do seu marido, Fernando de Aragão, em cujo reino o Santo Ofício estava fortemente consolidado, iriam reatualizar essa instância eclesiástica - que, aliás, estava em franca decadência - dirigindo-a contra dois novos inimigos: os "marranos" e os "moriscos", como eram chamados, respectivamente, os judeus e os muçulmanos convertidos ao catolicismo. As primeiras requisições à Santa Sé datam do início do seu reinado. Em 1º de novembro de 1478, Sixto IV autorizou a constituição do tribunal, instalado em Sevilha em 17 de novembro de 1480. Em 1483, o dominicano Frei Tomás de Torquemada, que fora um dos principais impulsionadores do projeto, foi nomeado Inquisidor Geral, estendendo-se a sua autoridade aos reinos de Aragão, Catalunha e Valência, com o que, antes mesmo da unificação política, passou a ser o primeiro magistrado com jurisdição em toda a Espanha.

Fora a extemporaneidade e a diferença de objetivos, a particularidade da Inquisição castelhana é que não se tratava, propriamente, de um tribunal delegado da Santa Sé, e sim de um órgão da Coroa, sobre cujas ações a Igreja de Roma exercia pouco ou nenhum controle. Já, desde o começo, a bula de Sixto IV habilitava à Coroa designar os membros do tribunal - dois inquisidores, um assessor e um consultor - mas deixava aos réus o direto de apelar a Roma. As queixas e apelações foram tantas que o próprio papa escreveu a Fernando e Isabel, reclamando pelas arbitrariedades de que tomara conhecimento, mas as pressões eram muito fortes e Sixto IV acabou cedendo. Em 1482 autorizou a nomeação de um Inquisidor Geral e sete inquisidores subordinados, em 1483 colocou em Castela um magistrado para conhecer das apelações sem que precisassem ser enviadas a Roma e, pouco depois, autorizou a criação do Consejo de la Suprema y General Inquisición, tribunal máximo e definitivo para todas as apelações de natureza inquisitorial.

O Conselho, popularmente conhecido como "La Suprema", estava composto pelo Inquisidor Geral, cinco conselheiros, dois adjuntos e dois consultores com voto, além de diversos oficiais e empregados. Tribunais inferiores foram instalados em Sevilha, Córdoba, Jaén e Ciudad Real. Até o final do século, já existiam tribunais em Toledo, Cuenca, Murcia, Valladolid, Santiago, Logroño, Granada, Llerena, Zaragoza, Barcelona, Valência e nas Baleares, alguns deles pré-existentes mas ora incorporados à jurisdição do Conselho. Fora da península, foram instalados um tribunal nas Ilhas Canárias, três na América, no México, Lima e Cartagena de Indias, e dois na Itália, em Sardenha e Sicília, territórios que ainda respondiam à Coroa de Aragão.

A Inquisição Portuguesa

Ao contrário da Espanha, em que soberanos ultracatólicos faziam absoluta questão da uniformidade religiosa como um meio de unificação política, Portugal foi, geralmente, bastante tolerante com os moradores que praticavam outra religiões. Mouros e judeus tinham suas comunidades - "mourarias" e "judiarias" - conservando livremente costumes e religião, em troca, apenas, de uma certa sobrecarga impositiva. Os judeus chegaram a conservar o seu próprio sistema judicial, representado por "arrabis", que julgavam com base no direito talmúdico e estavam subordinados a um magistrado principal, com o título de "arrabi-mor".

Essa tolerância oficial derivava das diferentes circunstâncias que rodearam a expansão de Portugal. Isolados no oeste da península, sem grandes conflitos internos e com uma fronteira moura relativamente estável, os monarcas portugueses eram católicos, mas não fanaticamente. Antes, embarcados na grande aventura mercantilista que foi a epopéia dos descobrimentos, dependiam, em boa medida, do apoio econômico e do investimento espontâneo dos comerciantes judeus. Muito mais do que na Espanha, a rejeição aos judeus partia do povo, mais ou menos estimulado pelos representantes da Igreja.

Assim como acontecera em Aragão e Navarra, Portugal conhecera, em séculos anteriores, tentativas de estabelecimento da inquisição delegada, que, por não haver muito a fazer, languideceram e acabaram desaparecendo. Assim aconteceu, principalmente, em 1376, quando o papa Gregorio IX, visando controlar o crescimento do judaísmo, chegou a nomear um inquisidor especial. No entanto, as Cortes insistiam permanentemente no assunto e a inquisição episcopal era bastante ativa.

A Coroa oscilava. Ora protegia os mouros e judeus, proibindo constrangê-los ao batismo e perturbar suas festas religiosas, ora os excluía das funções públicas e mandava que ficassem isolados nas suas comunidades. Em verdade, procurava, com preocupações muito mais políticas que religiosas, contornar os conflitos e esfriar os ânimos, evitando tomar determinações drásticas.

O estabelecimento da Inquisição espanhola viria a alterar esse precário equilíbrio. Clero e povo viam como uma afronta e uma debilidade dos seus reis que seu país não contasse ainda com um órgão de cuja posse seus vizinhos tanto se orgulhavam. Por outra parte, numerosos "marranos", foragidos da Espanha, refugiavam-se em Portugal, tornando a situação ainda mais explosiva. Em 1487, D. João II obteve autorização do Papa para punir, por intermédio de juízes especiais, os "cristãos novos" vindos da Espanha que se julgasse terem faltado aos deveres que o batismo lhes impusera. Vários deles pereceram no fogo.

A situação piorou quando Isabel e Fernando, donos já de Granada, consideraram chegado o momento do ajuste final com o inimigo interno. Em 1492, os judeus espanhóis foram intimados a converter-se ou abandonar o país. Muitos deles rumaram para Portugal onde, apesar da falta de números confiáveis, fácil é imaginar que a população dessa religião tenha dobrado. D. João II optou por aceitá-los apenas temporariamente, dando-lhes um prazo de oito meses para procurarem novo asilo. Mas a solução não era tão simples. Muitos dos exilados eram pobres e, mesmo que não o fossem, os espanhóis não lhes deixavam carregar suas riquezas. A Coroa deveria, necessariamente, oferecer o transporte, e não havia navios suficientes. Apesar das intenções do rei, muitos dos refugiados permaneceram.

Morto D. João II, o problema ficou para seu filho. À semelhança de seus predecessores, D. Manuel não via muita vantagem em lutar contra os judeus mas, às pressões do clero e do povo, juntaram-se as da Coroa espanhola, que o jovem príncipe ambicionava. O casamento com a infanta Isabel, primogênita dos Reis Católicos, lhe colocaria em boa posição, mas a condição estabelecida era a expulsão dos judeus.

Diversas interpretações foram levantadas sobre a extensão da medida. D. Manuel optou pela mais rigorosa: todos os judeus que não aceitassem o batismo seriam expulsos no prazo de dez meses. Parece estranho encontrar nele uma atitude tão drástica e, simultaneamente, tão pouco prática. Mal poderia a Coroa obrigar a sair e dar condução a todos os judeus se nem mesmo com os vindos da Espanha tinha conseguido fazê-lo. Talvez, fechando todas as opções, D. Manuel esperasse uma conversão generalizada, que resolvesse de vez o problema, mas os judeus eram ciosos da sua fé e, cientes da escassa firmeza das pressões da Coroa. Poucos foram os que aceitaram a coação. Frustrado e encurralado pelas pressões, D. Manuel optou por batizar coercitivamente os menores de vinte anos e, pouco depois, até mesmo os adultos que optassem por permanecer. Assim, entre 1496 e 1498 todos os "infiéis" conhecidos foram transformados, pela força, em "novos cristãos".

Não escapava à inteligência de D. Manuel a artificialidade dessa medida. Assim, em 1497 declarou inimputáveis por vinte anos os "cristãos novos" que violassem as regras da sua nova fé. Esperava-se, com isso, dar um tempo prudencial para que os conversos se habituassem à sua nova vida. Mas os judeus eram fiéis às suas crenças, e os cristãos persistiam na intolerância. Se a Coroa se omitia, o próprio povo se bastava para fazer justiça. Durante os anos seguintes, várias massacres de judeus aconteceram em Lisboa, Évora e outras cidades portuguesas. Para piorar ainda a situação, os que não aceitaram o batismo e alguns que, tendo-o aceito, receavam represálias por sua falsa conversão, optaram por abandonar o país levando, em muitos casos, riquezas escondidas, o que, lesando à economia nacional, obrigou a Coroa a proibir, sob qualquer conceito, a saída de judeus.

Não se haviam completado ainda os vinte anos de tolerância, quando D. Manuel, em 1515, resolveu requerer de Roma o estabelecimento de um tribunal inquisitorial. Tomava como pretexto os judaizantes que entravam clandestinamente da Espanha e que, portanto, não estavam protegidos pela mencionada lei, mas nem ele nem o Papa tinham muita certeza do acertado da medida. As queixas contra a Inquisição espanhola eram freqüentes e havia fundados temores de que a portuguesa se formasse nos mesmos moldes. Por volta de 1525, D. João III insistiu no requerimento, reiterando-o, com mais convicção, em 1531. Observara, aparentemente, as vantagens que o controle desse órgão dava à Coroa espanhola e queria reproduzir o modelo em Portugal. A negociação que se seguiu é uma escura malha em que não faltam intrigas palacianas, pressões e acusações de corrupção. A Espanha, velha interessada no assunto, entrou na disputa, apoiando as pretensões portuguesas. A Santa Sé não aceitava que a reincidência dos que foram forçados a converter-se fosse julgada como apostasia, e foi preciso uma invasão de herejes luteranos - que, na verdade, não parece ter existido com a virulência que lhe foi atribuída - junto a rumores, mais ou menos fundados, da iminência de um cisma semelhante ao liderado, na Inglaterra, por Henrique VIII, para que, mais uma vez, Roma cedesse às pressões políticas e econômicas e autorizasse o estabelecimento da nova Inquisição.

A nova Inquisição demorou em adquirir uma estrutura estável. A Santa Sé resistia a entregar o controle do órgão, e D. João não aceitava menos do que o poder absoluto sobre suas decisões. Frei Diogo da Silva, confessor do rei, nomeado Inquisidor Geral em dezembro de 1531, foi destituído dez meses depois, sem ter assumido o seu posto. Em 1533 o Papa anulou as decisões, proferidas, provavelmente, pelos bispos a ele subordinados. Em 1536 foi estabelecido um tribunal de quatro membros, solução que já era, no fundo, uma concessão às pressões hispano-portuguesas, mas não satisfez o rei, autorizado a nomear apenas um dos magistrados, sendo os restantes providos pelo Papa. A controvérsia se prolongou por mais de dez anos. Em 1539, desrespeitando as instruções de Roma, D. João investiu seu irmão, o Cardeal D. Henrique, no cargo de Inquisidor Geral. Ao tentar reagir, o núncio papal foi expulso. Em 1542, o novo núncio foi impedido de entrar em Portugal, enquanto aumentavam as ameaças de cisma, arriscando envolver também à Coroa espanhola que, com Portugal, passaria a constituir uma nova Igreja, peninsular, independente de Roma. Encurralado, o Papa acabou confirmando a nomeação de D. Henrique e em 1547, após uma terceira ameaça de separação, autorizou a instalação definitiva do tribunal português.

Estrutura dos Tribunais

Com os antecedentes acima apontados é fácil deduzir que a Inquisição portuguesa nasceu nos moldes da espanhola. Baseava-se aquela nos manuais de Raimundo de Penyafort e Nicolás Eymerich, complementados pelas "Ordenanzas o Instrucciones para los Tribunales" de autoria de Frei Tomás de Torquemada, aprovadas pelas Cortes de Tarazona e por uma Junta Magna, celebrada em Sevilha em 24 de outubro de 1484. A essas fontes iniciais cabe acrescentar outras disposições, publicadas em 1498 e 1500, e um novo regimento, considerado o definitivo, promulgado em 1561.

Em Portugal, o primeiro regimento do Santo Ofício deve-se ao Cardeal D. Henrique - depois rei em substituição de D. Sebastião - e foi publicado em 1552. Outros regimentos foram elaborados, em 1613 e 1640, pelos bispos Pedro de Castilho e Francisco de Castro. O quarto e último regimento foi publicado em 1774, já no período da decadência dessa instituição. Por ser o que mais tempo permaneceu em vigor e caracterizar o período mais estável da Inquisição portuguesa, o regimento de Francisco de Castro torna-se referência necessária para o estudo da estrutura e procedimentos que iniciamos a seguir.

Cada tribunal - chegou a haver quatro, sediados em Lisboa, Évora, Coimbra e Goa - contava com "tres Inquisidores, quatro Deputados com ordenado, e sem elle os mais que nos parecer, um Promotor, quatro Notarios, dous Procuradores dos presos, e os Revedores que forem necessarios, um Meirinho, um Alcaide, e quatro Guardas no carcere secreto, um Porteiro, tres Solicitadores, um Dispenseiro, tres homens do meirinho, dous Medicos, um Cirurgião, e um Barbeiro, um Capellão, um Alcaide, e um Guarda no carcere da penitencia". O tribunal de Goa, instalado em 1561 a instâncias de São Francisco Xavier, funcionou inicialmente com uma estrutura híbrida, constituída pelo arcebispo e dois inquisidores adjuntos, adequando-se, depois, à estrutura geral instituída pelo regimento.

Por cima desses tribunais, existia o Supremo Conselho da Sancta e Geral Inquisição e, finalmente, o Inquisidor Geral do Reino de Portugal. A eles se deveria dar conta de tudo que fosse deliberado pelas diversas Cortes e não poucas questões dependiam do seu parecer para serem resolvidas.

Não houve, como na Espanha, tribunais espalhados por todas as províncias e -excetuando Goa - também não houve cortes instaladas nos domínios coloniais. No seu lugar, deveria haver "em cada um dos Logares maritimos um Visitador das Naus de estrangeiros, com Escrivão de seu cargo, um Guarda, e um Interprete; e em cada uma das Cidades, Villas, e Logares mais notaveis, um Commissario com seu Escrivão, e os Familiares que forem necessarios". Muito além das "visitas" (1591 e 1618, no Brasil; 1626, em Angola), que eram missões conjunturais, sem presença permanente, esses funcionários subalternos personificavam o poder inquisitorial nos domínios ultramarinos.

Dentre esses cargos, merecem especial consideração os "cruce signatum" ou "familiares do Santo Ofício". Funcionários leigos, sem remuneração e sem função específica na estrutura jurídico-administrativa do órgão, eram grandes colaboradores, dos quais se exigia serem "pessoas de bom proceder, e de confiança, e capacidade conhecida", devendo possuir "fazenda, de que possão viver abastadamente, e as qualidades, que conforme ao Regimento do Santo Ofício se requerem em seus Officiaes". Constituíam uma sorte de milícia informal, que podia ser convocada individual ou coletivamente pelos inquisidores, visitadores ou comissários para desenvolver atividades de vigilância, investigação ou prisão de suspeitos.

Embora não percebessem salários, podiam receber uma ajuda de custo de "quinhentos reis por dia", em compensação "pelo tempo que gastarem nas diligencias do Santo Officio", podendo levar, como ajuda, "hum homem de pé, ao qual se pagará conforme o uso da terra". Fora essas funções, remuneradas diretamente pelo Santo Ofício, um familiar podia ser incumbido de acompanhar "algum judeu de signal", verificando "que traga sempre chapéo amarello, e não se communique em segredo com a gente de nação, e só falle com aquellas pessoas, com que tiver negocio, e tanto que for noite se recolha a sua casa", serviço pelo qual os inquisidores "lhe assignarão o sallario que parecer, que o mesmo judeu lhe pagará".

Os familiares tinham hábito próprio mas, ao contrário dos religiosos, só estavam autorizados a vesti-lo em ocasiões especiais; notadamente quando fossem prender alguma pessoa ou quando estivessem participando de um auto-de-fé. Para essas solenidades, que lhes proporcionavam a máxima figuração, eram convocados todos os familiares e, se não fossem suficientes, chamavam-se outras pessoas "de limpeza conhecida, e de bons procedimentos, e as mais authorisadas que se acharem" incumbindo-as de acompanharem os penitenciados ao cadafalso.

Grande número de brasileiros pleitearam esses cargos. Fora o interesse pecuniário - provavelmente insignificante para homens que, por imposição regimental, deviam possuir "fazenda, de que possão viver abastadamente" -, era importante a confirmação da sua limpeza de sangue e dos seus bons antecedentes, confirmação essa capaz de abrir, aos seus possuidores, as portas da alta aristocracia e da burocracia estatal, além de garantir, por antecipação, que eles próprios não se tornassem suspeitos dos delitos perseguidos pela inquisição.




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