Brasão ladeado de anjos portadores de bandeiras, simbolizando a restauração.
Brasão ladeado de anjos portadores de bandeiras da Ordem de Cristo, simbolizando a restauração.
(Detalhe da folha de rosto do "Manifesto do Reino de Portugal") 
  Memória
da Justiça Brasileira - 2
  Capítulo 1

D. João de Bragança e uma Pitada de Direito Sucessório

Embora não tenham uma relação direta com a justiça brasileira, os fatos que envolveram a posse de D. João IV, como primeiro rei do Portugal "restaurado" e iniciador da dinastia de Bragança, resultam bastante interessantes para ilustrar o clima em que as suas reformas se processaram.

Independentemente da força, potencialmente envolvida na aclamação do novo soberano - força que, como se sabe, não era grande o suficiente para garantir a tranqüilidade dos revolucionários -, a restauração motivou uma ampla discussão sobre as origens do poder real, que chegaria a abalar não apenas as pretensões espanholas como também as bases gerais do conceito de monarquia.

Essas discussões, simultaneamente jurídicas, políticas e religiosas, remontavam, de fato, às origens das monarquias visigóticas. Não existia, naqueles tempos, uma concepção teocrática da monarquia. Numa Europa dividida em feudos, onde a origem do poder estava na violência e os fracos agrupavam-se em volta dos fortes para sobreviver, os primeiros monarcas eram, simplesmente, senhores mais poderosos, ao ponto de impor aos seus pares o respeito temeroso e induzi-los à colaboração contra os inimigos externos. Constituídas as monarquias, a sucessão assumiu, inicialmente, duas formas: eleição ou rebelião. Ou seja, levando em conta seu caráter federativo - ou, pelo menos, de cooperação defensiva -, a coroa era confiada, através de uma eleição explícita ou da simples aceitação da liderança natural, ao mais respeitado entre os senhores feudais. Na Inglaterra, essa característica seria institucionalizada, em 1215, pela Magna Charta Libertatum, que John Lackland concedeu, em razão das pressões dos revoltosos de Runnymede, limitando a autoridade do rei, que passaria a ser definido como "o primeiro entre seus iguais". Entretanto, a sucessão se processava através de eleições - em geral, bastante turbulentas - ou da simples usurpação da coroa pelo candidato que conseguisse nuclear os partidários mais poderosos.

Não existiam leis claras e permanentes. Os próprios senhores eram, geralmente, analfabetos, e limitavam-se a aplicar o direito consuetudinário, quando não a, simplesmente, impor a sua vontade, mais ou menos negociada com os principais vassalos. O clero - o setor mais ilustrado da sociedade e o único que possuía um número razoável de membros alfabetizados - tentava, geralmente sem sucesso, impor regras mais precisas à sucessão. Era freqüente a enunciação, nos cânones dos concílios, de regras limitativas às manobras de usurpação, limitações que deveriam valer desse momento em diante, mas que ignoravam outras similares fixadas pelos concílios anteriores e ainda desrespeitadas. "O usurpador - escreveu Gama Barros - achava sempre um concilio que lhe reconhecia a qualidade de rei, e lhe prestava a força da sua auctoridade condemnando para o futuro as usurpações, como aliás, já haviam sido condemnadas por outros concilios em cujos estatutos se comprehendia, portanto, a reprovação d’esta que era agora sanccionada".

Não faltaram esforços, por parte do clero, para conseguir uma participação mais ativa e regular nesses processos sucessórios. O cristianismo, essencialmente monoteísta, era incompatível com a divinização dos reis, que fora habitual nos antigos impérios. Além de não reconhecer mais de um Deus, Jesus tinha remarcado, em diversas oportunidades, o caráter espiritual do seu domínio, dizendo, por exemplo, "Meu reino não é deste mundo" e "Dai ao César o que é do César e a Deus o que é de Deus". Mas o clero medieval não professava o mesmo cristianismo dos apóstolos e dos mártires. Agrupado em ordens que lhe garantiam não apenas a sobrevivência como uma certa dose de poder, entrincheirado em bispados e outras dignidades que lhe proporcionavam, como representante de Deus, uma parcela apreciável da autoridade temporal ou, simplesmente, aproximando-se dos poderosos, que transformaram o simples capelão ou confessor em influente conselheiro, o eclesiástico medieval transformara-se em complemento indispensável da monarquia.

Assim, o clero passou a convalidar a autoridade dos reis. Se a religião não permitia legitimar o poder pela divinização, poderia, ao menos, propiciar a eleição daqueles que Deus desejava. Mas as eleições continuavam a ser fonte de conflitos - às vezes sangrentos - e a hereditariedade começou a insinuar-se como uma maneira de, perpetuando a autoridade, acabar com essas turbulentas crises de autoridade. Em 653, no VIII Concílio de Toledo, Recesvintus se apresentava como rei escolhido por Deus e herdeiro do seu pai. Vinha, já, reinando, ainda em vida de Chindasvintus - ele mesmo usurpador do trono - que o associara ao seu governo com o intuito de convertê-lo em sucessor natural. Dois bispos, Bráulio e Eutrópio (este último, depois, canonizado), sugeriram essa estratégia, lembrando as dificuldades até esse momento acontecidas e visando garantir a paz futura.

Mas, de direito, o princípio eletivo ainda estava em vigor. Nesse mesmo concílio foram fixadas novas normas para as futuras eleições e, de fato, Wamba, sucessor de Recesvintus, alcançou a coroa por eleição. À opinião dos prelados, que privilegiava a continuidade dinástica, opunha-se a ambição dos nobres, desejosos de conservar aberto o caminho ao trono. Entre essas duas tendências, foi-se desenvolvendo outra, mais pragmática, que conservava, externamente, o princípio eletivo, mas preparava, o quanto fosse possível, um sucessor natural. A exemplo de Chindasvintus, numerosos reis escolheram seus sucessores e a escolha dos filhos, embora não determinada em lei, ia se tornando costumeira. Entretanto, eleito ou indicado, o novo rei devia ser confirmado e prestar juramento em concílio, o que lhe garantia a aprovação humana e divina, e o obrigava a utilizar fielmente a autoridade que lhe era conferida.

A Sucessão da Coroa em Portugal

Na época da formação de Portugal, a hereditariedade era já costumeira. A tradição dos reis elegerem seus sucessores constituía uma regra não escrita e a coroa passava, normalmente, de pais para filhos ou, em ausência ou minoridade destes, para irmãos ou outros parentes próximos. Os reinos eram considerados propriedades familiares e, como tais, às vezes, divididos entre os diversos filhos. Continuava, porém, em prática o juramento dos reis, envolvendo tanto o compromisso de fidelidade, por parte dos vassalos, como o de bom governo, por parte dos novos soberanos. A Coroa do novo reino passou, quase invariavelmente, de pais a filhos primogênitos, excetuada, apenas, a sucessão de Sancho II, falecido sem descendência legítima, quando já ocupava o trono o seu irmão, Afonso III, que o depusera, em 1245, com apoio do papa Inocêncio IV. Os primeiros sucessores de Afonso Henriques - Sancho I, Afonso II e Sancho II - regularam minuciosamente, mediante testamento, a ordem sucessória. Ciente da falta de herdeiros diretos, Sancho II fizera testamento a favor do seu irmão, que, como foi mencionado, acabaria destronando-o. Já Afonso III e os reis posteriores limitaram-se a indicar como herdeiros os respectivos primogênitos.

A primeira grande crise dinástica aconteceu em 1383, como resultado da morte de Fernando I. A herdeira, Beatriz, então com dez anos, estava casada, por efeito de um tratado firmado por seu pai com D. João I, rei de Castela. A fim de limitar as pretensões do monarca castelhano, o tratado instituía como herdeiro o primeiro filho homem do casal, constituindo em regente, enquanto esse filho não nascesse e completasse catorze anos - idade mínima para cingir a coroa - à rainha viúva, D. Leonor, amplamente rejeitada por diversos setores da população. Já em 1371, um importante movimento se alçara em armas contra o casamento do rei. Leonor Teles de Menezes já era casada, o que chocava com a moral simples do povo, e estava vinculada às mais poderosas famílias, trazendo com ela uma escura rede de influências que prejudicava, principalmente, os interesses da alta burguesia. O movimento foi sufocado, mas a morte do rei veio reavivar a animosidade. Leonor Teles e seu homem de confiança, o conde de Ourém centralizaram o governo e, previsivelmente, o futuro herdeiro de Beatriz ameaçaria a independência nacional. Impotentes para agir diretamente, setores da burguesia incumbiram D. João, mestre da ordem militar de Avis e filho bastardo de D. Pedro I, de matar o conde de Ourém. Tencionavam, por esse meio, isolar Leonor, pressionando-a a aceitar uma nova linha de governo.

Mas o fato assumiu derivações inesperadas. O povo, conclamado para facilitar a fuga de D. João, fugiu ao controle dos agitadores e cercou o palácio, ameaçando incendiá-lo. D. João foi aclamado como "regedor e defensor do reino" e incumbido de substituir D. Leonor. Postulava-se, como herdeiro do trono, a um outro João, filho também de D. Pedro I, mas tido como legítimo, que estava homiziado em Castela por ter matado sua mulher, Maria Teles, irmã da rainha. Enquanto ele voltasse, o mestre de Avis seria o "defensor do reino" contra as pretensões de Castela, que, em resposta a esses acontecimentos, invadiu Portugal e cercou Lisboa, só cedendo por causa da peste negra, que dizimou o exército castelhano. Enquanto isso, no Alentejo, Nuno Alvares Pereira, jovem fidalgo a serviço de D. João, obtinha uma vitória fulminante contra o resto das forças castelhanas, inflamando as multidões com a bravura de uma resistência que ninguém acreditava possível.

Nessa situação, já em 1385, o mestre de Avis resolveu reunir em cortes os representantes das vilas que o apoiavam e alguns setores da nobreza que acreditavam nos direitos do seu irmão. Foi nessas cortes, em Coimbra, que João das Regras, jurista formado em Bolonha, levantou uma tese surpreendente: Em primeiro lugar, lembrou que Inês de Castro, mãe do pretendente, executada por ordem de D. Afonso IV, fora, até a sua morte, tida como amante do então infante D. Pedro. Somente anos depois, já coroado, D. Pedro I a proclamaria como esposa, mandando-a desenterrar e conduzindo-a a um grandioso túmulo, encimado por uma estátua jacente que a representa coroada como rainha. Não era nova a hipótese de que D. Pedro tivesse mentido por império do amor que lhe professava. Como, então, se ter certeza de que aquele matrimônio fora realmente celebrado e que, em conseqüência, o herdeiro resultante fosse legítimo?

Dando, assim, por provada a inexistência de herdeiros legítimos, João das Regras passou à segunda parte de sua teoria. Vacante o trono, a nação tinha o direito de eleger livremente um novo rei. A nobreza resistiu. Muitos deles resolveram passar ao partido contrário e apoiar as pretensões de Castela. Mas o povo reagiu entusiasticamente, e os setores mais próximos ao regente apoiaram a tese. O próprio mestre de Avis não acreditava na possibilidade de resistir a uma ação conjunta das forças castelhanas, aliadas à nobreza de Portugal, mas Nuno Alvares insistiu, conseguindo, na batalha de Aljubarrota, selar com as armas o nascimento da nova dinastia.

El Reino de los Felipes

Não teve tanta sorte, em 1580, D. Antônio, o prior do Crato, aclamado rei em substituição ao cardeal D. Henrique. Interrompida a linha sucessória pela morte de D. Sebastião, D. Henrique, filho de D. Manoel I e tio-avó do rei falecido, fora empossado no trono. Sendo clérigo e de idade avançada, era previsível que viesse a falecer sem deixar herdeiros, pelo que resolveu reunir cortes, em Almeirim, para resolver, antecipadamente, o problema. Segundo o cardeal, a sucessão era um problema jurídico que deveria ser resolvido pela nação toda. Sugeriu que as Cortes nomeassem "definidores" que analisassem os títulos dos diversos candidatos e chegassem a um parecer comum.

O infante D. João, sucessor natural de D. João III, faleceu prematuramente, deixando como herdeiro a D. Sebastião, que também morreu muito jovem e sem deixar descendência. D. João III não deixara outros descendentes. A herança deveria, necessariamente, remontar a D. Manoel I, que, além de D. João III e do cardeal rei, deixara como herdeiros Ludovico, duque de Beja, Duarte, duque de Guimarães, Isabel, rainha de Castela, e Beatriz, duquesa de Sabóia. Exceção feita do cardeal, todos eles eram, também, falecidos, situando-se o confronto entre seus respectivos herdeiros: Catarina, filha de Duarte, Emanuel, filho de Beatriz, Antônio, filho de Ludovico, e Felipe, filho de Isabel. Parece que o cardeal se inclinava, inicialmente, por Catarina, duquesa de Bragança, mas existia o critério que privilegiava a linha hereditária masculina e, embora Duarte fosse, depois de D. João III, herdeiro indiscutível, esse critério vinha escurecer os direitos da sua filha. Emanuel, filho de Beatriz, encontrava-se prejudicado, em forma inversa, por derivar seus direitos de sua mãe, também mulher e, portanto, secundária na preferência sucessória. Por outra parte, o pai era um nobre estrangeiro, o que não agradava os brios portugueses. Iguais empecilhos atingiam Felipe II de Castela, Filho de Isabel e de Carlos I. Quanto a D. Antônio, filho homem de herdeiro também masculino, levava a mácula de ser bastardo.

Tão difícil questão prolongou-se até a morte de D. Henrique, que precipitou as decisões de fato. Felipe II, dono do considerável poder que lhe proporcionava a coroa de Castela, vinha já ganhando posições junto à nobreza, empobrecida pela recente cruzada. Mesmo assim, os partidários de D. Antônio, que o consideravam a melhor alternativa para conservar a coroa em mãos portuguesas, resolveram aclamá-lo por rei, em Santarém, ação de fato à que Felipe respondeu pelas armas. D. António foi vencido, às portas de Lisboa, vendo-se obrigado a retirar-se às províncias do norte. Acuado, ainda, pelas forças castelhanas, ao mando do duque de Alba, fugiu para a Inglaterra e depois para a França, constituindo, no exílio, um trono simbólico que duraria anos. Não desinteressadamente, a França apoiava suas pretensões, visando, ao que parece, a posse do Brasil, que tanto desejara Francisco I e que D. Antônio teria prometido a Catarina de Médicis em troca do respaldo militar para reconquistar a coroa. Mas Felipe II não se deixara estar. Dono de Lisboa, pela força das armas, uniu à perseguição dos partidários de D. Antônio a diplomacia para conseguir o apoio dos outros setores. Acabou reunindo novas cortes, em Tomar, onde os representantes dos três estados o aclamaram por rei, não sem antes ter-se comprometido a respeitar forais, leis escritas e consuetudinárias e tudo o mais que os reis portugueses juravam, habitualmente, obedecer e proteger.

Sessenta anos transcorridos, em 1640, não faltavam razões para os portugueses tentarem recuperar a perdida autonomia. Embora os monarcas espanhóis tivessem, em linhas gerais, respeitado os compromissos de Felipe II, a decadência do império colonial era evidente. Atrelado aos conflitos dos Felipes, Portugal só tinha a perder, mas não era fácil justificar uma mudança de governo. Embora apoiado na força das armas, Felipe II obtivera, em Cortes, o reconhecimento do seu direito à sucessão. Podia ser tentada uma ação puramente revolucionária, mas dificilmente teria efeitos duradouros.

D. João IV e o Direito Sucessório

O único "jus regis" universalmente aceito, no século XVII, era o da sucessão familiar. A Espanha o incorporara à legislação escrita nas Partidas que Afonso X de Castela mandara compilar no século XIII. A linha estabelecida dava preferência ao primogênito, substituindo-o os outros filhos, na ordem do nascimento, e depois as filhas, os netos, as netas e, finalmente, os irmãos e irmãs do monarca falecido.

Portugal não contava com legislação escrita sobre esse problema, mas testamentos de reis e decisões de Cortes avolumavam um considerável direito consuetudinário. Não conhecemos o testamento de D. Afonso Henriques, mas, sim, os dos seus sucessores imediatos. Sancho I fez dois. No primeiro, estabelece como sucessores, genericamente, os filhos, na ordem do nascimento, e depois as filhas, na mesma ordem. No segundo, talvez por considerar a execução mais próxima e segura, personaliza a sucessão no primogênito, Afonso, legando aos filhos restantes dinheiro ou terras. Afonso II testou nominalmente, a favor do seu filho Sancho e sua descendência legítima, instituindo como substitutos os outros filhos homens e, por falta deles, a sua única filha, Leonor. Sancho II, ainda sem descendência, testou a favor do primeiro filho homem que viesse a ter de mulher legítima, também estabelecendo como substitutos os outros filhos e filhas. Na sua falta, reinariam os irmãos do rei, pela ordem do nascimento, transmitindo-se, sucessivamente, a coroa aos filhos daquele que reinasse. Finalmente, na falta de todos eles, a mesma D. Leonor, irmã do atual rei, herdaria a coroa.

Vê-se, claramente, surgir desses antecedentes um direito sucessório que privilegia a primogenitura legítima de linha masculina, mas reconhece às mulheres o direito a reinar em ausência de herdeiro homem de nível igual ou superior. Esse critério, aparentemente simples, derivava, na prática, em situações de discernimento bastante difícil. A inicialmente involuntária candidatura de D. João de Bragança reavivou a discussão em torno aos direitos de D. Catarina, titular, pelo chamado "direito de representação", da potencial herança do seu pai. O desembargador Francisco Andrade Leitão, orador na coroação de D. João, sustentou que, se a sucessão de 1580 acontecesse em vida do infante D. Duarte, ele, por ser homem, teria excluído sua irmã Isabel. "Ora - considerava -, como poderia D. Felipe herdar alguma coisa de quem já não a possuía?".

Esse argumento seria repetido insistentemente pela propaganda diplomática da Restauração. Diversas obras foram publicadas para dar sustentação aos direitos invocados pela casa de Bragança. António de Sousa de Macedo, Ouvidor da Chancelaria do Porto e embaixador em Londres, assumiu a defesa, frente à Coroa britânica, escrevendo que "fundó la Serenissima Catalina su justicia en la representacion, beneficio que introdujo el derecho para que el hijo en nuestro caso, y otros semejantes, entrando en el lugar del padre defunto lleve aquella misma herencia que el padre llevaria si viviera. Conforme a lo qual representando la Señora Catalina la persona del Infante su padre excluia al Rey Phelippe, como el Infante, si fuera vivo, excluiria por Varon a la Imperatriz Doña Isabel su hermana, y por consecuencia a su hijo D. Phelippe". Escrita em castelhano, a alegação, dirigida à Corte da Inglaterra, foi impressa em Paris e republicada em Lisboa, por ordem de D. João.

O mesmo critério defendia, em carta à Dieta de Ratisbona, Francisco de Sousa Coutinho, sustentando que "da mesma maneira que, se o Infante D. Duarte vivera, havia de excluir a Imperatriz Dona Isabel sua irmã, assim mesmo a filha dêsse Infante, a Serenissima D. Catarina, como agnada, representando a seu pai, havia de excluir ao Católico Rei, que era cognado, e representava a Imperatriz Dona Isabel, fémia".

Mas, embora lógico e bem fundamentado, o argumento era fraco. Tanto D. Isabel quanto D. Duarte eram já defuntos e, existindo um critério que privilegiasse os homens, bem poderia privilegiar D. Felipe, em prejuízo de D. Catarina. Por outra parte, era lícito aceitar que aqueles direitos - caso houvessem realmente existido - tivessem persistido através do tempo, transmitindo-se a D. Teodósio para chegar a D. João, em detrimento da direta linha sucessória que unia os monarcas castelhanos? Os Felipes tinham, a seu favor, não apenas a decisão das Cortes mas, também, o apoio de boa parte da nobreza e o respaldo dos papas, de influência decisiva na Europa setecentista.

Fator essencial - embora provavelmente apócrifo - foi a publicação dos autos das Cortes de Lamego, convocadas por Afonso Henriques em 1143, pouco depois da batalha de Ourique, em que consolidara as possibilidades de independência do novo reino. Seria - se verdadeira - a única manifestação detalhada do fundador da Coroa portuguesa sobre tão transcendente assunto. Teriam assistido a elas o arcebispo de Braga, os bispos de Viseu, Porto, Coimbra e Lamego, membros da corte de D. Afonso e representantes de dezesseis conselhos, podendo a assembléia ser tida como representativa, não apenas da vontade do rei mas, também, dos três estados que compunham a nação. Nessa oportunidade, teria D. Afonso pedido que os presentes confirmassem a aclamação de que fora objeto nos campos de Ourique. Novamente aclamado, D. Afonso perguntou se somente ele deveria ser rei ou também seu filho - seguia, nesse ponto, um procedimento usual nos primeiros tempos da monarquia, consistente em aclamar o herdeiro em vida do pai para garantir antecipadamente a sucessão -, ao que os presentes responderam, por iguall, afirmativamente. Em continuação, sempre sob a forma de respostas às bem direcionadas perguntas do rei, as Cortes iam estabelecendo as leis que deveriam reger o novo reino. Destaca-se, entre elas, do ponto de vista da época em que o documento foi revelado, uma certa particularidade da linha sucessória: Admitia-se a sucessão feminina, em ausência da masculina, mas com explícita exclusão da herdeira que casasse com estrangeiro. Em conseqüência, D. Isabel e toda a sua descendência passavam a ser, automaticamente, usurpadores do trono português. Para maior impacto, recente ainda a emancipação de Leão e efervescente o patriotismo estimulado pela vitória militar, D. Afonso perguntava, em tom de desafio: "Quereis que o rei vá ás côrtes do rei de Leão ou lhes pague tributo, ou a qualquer pessoa que não seja o Papa?".

O próprio António Brandão, que traduzira e publicara o documento, originalmente em latim, colocava reparos à sua autenticidade. Ele mesmo não tinha visto a escritura original e desconfiava da fidelidade do traslado. Não constava a ele a real existência de tais Cortes - que, no entanto, parecem ter sido realmente celebradas - e temia que setores interessados dessem ao documento mais crédito do que efetivamente merecia e, talvez, descontextualizassem trechos dele para justificar parciais alegações, razão pela qual fazia questão de publicá-lo na íntegra.

Não tardaram a cumprir-se os temores de Brandão. Espanhóis e portugueses passaram, a partir desse momento, a digladiar-se para demonstrar, respectivamente, a falsidade ou autenticidade da explosiva publicação. A crítica posterior chegou à presunção quase definitiva da falsificação, baseada, principalmente, nos anacronismos existentes no texto. Ressalvando-se às dúvidas sobre a fidelidade no traslado - que não provam, necessariamente, a inexistência do original, há palavras que não eram habituais em 1143 e não se concebe, em época tão recenada, uma reunião tão clara dos três estados, exercendo funções, organicamente, representativas. Por outra parte, parece estranho que essas decisões, sendo tão recentes, não fossem referenciadas nos testamentos de Sancho I e seus sucessores imediatos. Apesar desses reparos, os autos de Lamego conquistaram o crédito de amplos setores, atribuindo-se a eles força de lei, nas cortes da segunda metade do século XVII e nos atos legislativos do século seguinte.

Mais transcendente, nos seus efeitos colaterais, que essa interminável discussão jurídico-genealógica, foi a outra justificativa utilizada pelos defensores da Restauração. Em casos de crise - diziam eles - o povo deve ser o árbitro. Alguns, mais ousados, chegavam a postular que o poder procedia do povo e a ele correspondia respeitá-lo ou retirá-lo de que quem mal o utilizasse.

A concepção não era nova. Em 1383, uma insurreição popular deu início à dinastia de Avis. Em 1438, as Cortes de Torres Novas desconheceram o testamento de D. Duarte I, que, durante a minoridade do seu filho - o futuro Afonso V, então com seis anos -, deixava a regência à rainha-mãe, D. Leonor, princesa de Aragão. As Cortes declararam inválido o testamento por considerar que a nomeação do regente era atribuição da nação toda e empossaram como regente o Infante D. Pedro, irmão de D. Duarte. A ousadia era tanta que o arcebispo de Lisboa se negou a assinar, e os outros notáveis o fizeram, mas "com taes cautellas e pallavras, que bem parecia querer deixar a sua desposiçam fazer sempre despois, o que quysesse, sem parecer que o quebrantava".

Não foi alheia a essa concepção a afirmativa de Andrade Leitão, na coroação de D. João IV, no sentido de que a desastrada ação de Felipe IV "só bastava para notória justificação desta Real Aclamação". Também Sousa de Macedo certamente pensava desse modo quando escreveu: "Causas erã estas bastantes para elegir um Rey estraño que regiesse como Diós manda". Mas a enunciação mais explícita partiu do púlpito, quando Frei Luis de Sá, catedrático de Teologia na Universidade de Coimbra, sustentou, no seu sermão de 16 de dezembro de 1640, que "nós os vassalos nos obrigamos a sê-lo de um Rei quando o juramos, e também êle se obriga a guardar-nos nossos foros com o próprio juramento, e quebrando-os, em boa consciência, podemos não estar pelo contrato".

Não podia ser de outra maneira. Desde o final do século XVI - concidindo, portanto, com o início da dominação espanhola - Coimbra era o centro de desenvolvimento de uma corrente teológico-política que, apoiando-se no doutrinarismo escolástico e tomista do século XIII, levantava a tese da soberania popular como origem do poder. Faz-se surpreendente uma tendência dessas características no seio de um sistema monárquico, teocrático e fortemente centralizado, mas pode ser explicado pelas particulares características de Portugal e da própria Universidade. É uma constante, em qualquer época, a especial permeabilidade da juventude às novas ideologias, como também a sua irreverência diante dos poderes constituídos. Acrescente-se a isso os privilégios habitualmente concedidos à Universidade e o especial cuidado dos reis espanhóis em não irritar a nobreza e a burguesia de Portugal, cujos filhos constituíam absoluta maioria na população estudantil. Havia um caldo de cultura em que até mesmo os professores poderiam embandeirar-se das teses mais revolucionárias. Mestres eminentes como Aspilcueta Navarro e Francisco Suarez, espalharam esses conceitos, guiando um processo em que - nas palavras de Merêa - "Precisou-se e sistematizou-se a doutrina, fixaram-se os princípios, salientaram-se e relacionaram-se os aspectos essenciais, especialmente a idéia de pacto anteposta à constituição da autoridade política, e finalmente, tirando das premissas todas as conclusões lógicas, sustentou-se desassombradamente que os povos podiam depôr os reis".

Com esses precedentes, as Cortes que D. João reuniu em Lisboa, no mês de janeiro, não podiam ter grandes receios em pressupor "por causa certa em direito que ao Reino sómente compete julgar, e declarar, a legítima sucessão do mesmo Reino, quando sobre ela há dúvida entre os pretensores, [...] e eximir-se também de sua sujeição, e domínio, quando o Rei por seu modo de govêrno, se fez indigno de Reinar. Por quanto este poder lhe ficou, quando os povos, a princípio, transferiram o seu no Rei, para os governar".

D. João e seus partidários beneficiavam-se dessa corrente de pensamento e - não poucas vezes, viram-se na necessidade de lhe fazer concessões. Muitas das reformas executadas pela monarquia restaurada só se explicam por essa repentina importância alcançada pelos movimentos populares. Durante o reinado de D. João IV, foram convocadas cortes em cinco oportunidades e, pelo menos, quatro delas chegaram efetivamente a se reunir. Em 1644, ainda defendendo a coroa restaurada, que diversos governos se negavam a reconhecer, Francisco Vaz de Gouveia, lente de Cânones em Coimbra, escreveu uma obra pretensamente definitiva, do ponto de vista jurídico, em que chegava a declarar "que o poder régio dos Reis, está originalmente nos Povos e Repúblicas, e que deles o recebem imediatamente, [...] que o poder que os Povos transferiram a princípio nos Reis, para os governarem, não foi total, antes ficando-lhes habitualmente para o poderem reassumir nos casos em que precisamente lhes fôsse necessário para sua conservação" e "que os Reinos e Povos deles têem poder para negarem a obediência aos Reis intrusos sem título, ou tiranos no govêrno, e os privarem, submetendo-se a quem tiver direito legítimo de reinar".

A nova monarquia, já mais estabilizada, não precisava tanto do apoio popular como na primeira hora. Em 28 de agosto de 1645, com o pretexto da despesa que ocasionava o deslocamento dos procuradores aos locais de reunião, a Coroa ordenou consultar "à Camara e casa dos 24 se conviria mandar suspender as Cortes, ficando ao Reino a liberdade de representar o que for a bem do governo d’elle". Não conhecemos a resposta das câmaras mas se sabe que, do fim do reinado de D. João IV até 1697, houve somente seis chamados às cortes, e uma delas não parece ter-se reunido.


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