Martim Afonso de Souza funda a vila de São Vicente.
Martim Afonso de Souza, o primeiro donatário, funda a vila de São Vicente.
(Detalhe de um óleo de Benedito Calixto)
  Memória
da Justiça Brasileira - 1
Capítulo 5

Capitães, Ouvidores
e Governo Geral

Pode-se dizer que o próprio Governo-geral começou imerso numa disputa jurídica. Esta foi movida contra a Coroa pelos herdeiros do donatário da Bahia, Francisco Pereira Coutinho, que tentavam reaver os seus direitos. A fundação de Salvador e a instalação da capitania real da Bahia, base de operações do governo-geral, só foram possíveis por uma ação de emergência da Coroa. Embora subsistissem, na chamada "vila velha do Pereira", uns 50 moradores "da povoação que antes era", os franceses já tinham aparecido nela e poderiam voltar, com uma esquadra maior "por causa do brasil e algodões que nela ha", advertia o seu vizinho Pero de Campos, capitão de Porto Seguro.

O perigo era real, e atingia não somente à Bahia como a muitos outros pontos mal defendidos do litoral brasileiro. A ocupação da Bahia pela Coroa iria permitir, muito além da simples proteção da área, o estabelecimento do Governo-geral "pera dali se dar fauor, e ajuda has outras Pouoações, e se ministrar Justiça", conforme indica a carta de nomeação de Tomé de Sousa. A vaga provocada pela morte do donatário foi rapidamente aproveitada. Mas não tinham sido considerados nessa ação os direitos dos particulares envolvidos. Coutinho tinha herdeiros, em Portugal, e eles iniciaram um pleito que só terminaria em 1576. Por sentença da Casa da Suplicação, a Coroa pagou, pela metade do atual estado da Bahia, a irrisória indenização de 400$000 réis, quantia equivalente a um ano do salário do governador.

Mas, se, nesse ponto, foi o rei quem quebrou a sua própria lei, a fundação tinha, desde a sua origem, os objetivos de impor a ordem e recuperar o controle da administração da Justiça. A excessiva concentração de poder em mãos dos donatários conduzia a freqüentes arbitrariedades e, em alguns casos, nem mesmo um mínimo de ordem interna era mantido nas povoações. O próprio Pereira Coutinho, embora fosse, no dizer de Frei Vicente do Salvador, "fidalgo mui honrado, de grande fama e cavalarias na India" e viesse "com uma grande armada a sua custa", em 1546 estava, segundo Duarte Coelho, "velho e doente" e "mole para resistir ás doudyces e desmandos dos doudos e mal ensinados que fazem e causam levantamentos". Coelho, donatário de Pernambuco, denunciava ao rei essa situação, pedindo que os culpados fossem "muy bem castyguados" porque as suas ações tinham sido "a causa de se a Bahya perder". Provavelmente por causa desses mesmos desmandos, os índios, inicialmente amigáveis, reagiram violentamente, queimando os engenhos e forçando os moradores a fugir da cidade. Pero de Campos, de Porto Seguro, informava, ainda, que Pereira "se veyo aquy onde ora esta sem nunqua por nenhuma diligencia acerqua de a povoar", pressionando, simultaneamente, ao malfadado capitão da Bahia a retornar à sua cidade ou a embarcar para Portugal e prestar contas ao rei. Pereira tentou voltar e foi morto pelos índios, em Itaparica, após um naufrágio do qual Caramuru parece ter sido, mais uma vez, o único sobrevivente. Frei Vicente registra o fato, confundindo-o, provavelmente, com o de 1510, porquanto atribui a sua salvação ao namoro com uma princesa indígena.

A primeira missão de Tomé de Sousa, antes mesmo de fundar a cidade ou estabelecer formalmente o governo, era a de escarmentar os índios por essas mortes. Prefigurando o que seria, com freqüência, a justiça aplicada aos aborígenes, o regimento entregue ao governador mandava "castigar os culpados [...], destruindo-lhe suas aldeas e povoações e matando e cativando aquela parte deles que vos parecer que abasta para o seu castiguo e exempro de todos". Depois, já com a terra pacificada, deveria procurar "os principais que forão no dito alevantamento" e "per justiça enforcar nas aldeias onde erão principais". Mas Tomé de Sousa não cumpriu as ordens recebidas. Opiniões contrárias, entre elas, provavelmente, a do próprio Caramuru, dissuadiram-no de tão temerária empresa. As expedições punitivas, que ulteriormente chegou a realizar, foram motivadas por fatos do momento, sem relação alguma com os acontecimentos anteriores, e só foram empreendidas quando a nova povoação já estava consolidada.

Mais complexas, juridicamente, eram as medidas que atingiam à população branca. Se algumas capitanias estavam anarquizadas ou destruídas, outras, ainda ativas, conservavam as instituições e prerrogativas exercitadas desde a sua criação. A mais antiga, São Vicente, concentrara na mão do donatário todos os poderes. Martim Afonso de Sousa, capitão-mor, tinha alçada para julgar, no cível e no crime, até a pena de morte, inclusive, só cabendo recurso se o réu fosse fidalgo. Para auxiliar a sua administração, podia nomear tabeliães e oficiais de justiça. Com a fundação da vila e a constituição da Câmara, o julgamento em primeira instância ficou por conta dos juízes ordinários e de vintena, conservando o capitão a decisão, em grau de recurso.

Já na doação de Pernambuco a Duarte Coelho, realizada em 1534, a estrutura de governo aparece mais diversificada, podendo o capitão nomear um ouvidor que cuidasse dos negócios da Justiça. Este ouvidor tinha jurisdição, em primeira instância, nas áreas próximas da sede da capitania e, em segunda, nas mais afastadas, com alçada no cível até cem mil-réis e no crime até a morte. Novamente, garantia-se o direito a recurso por parte dos fidalgos, exceto para os crimes de heresia, traição, sodomia e falsificação, considerados tão infames que a sua comissão extinguia automaticamente todo título ou prerrogativa nobiliária.

Os mesmos privilégios concedidos aos donatários peninsulares o foram aos capitães. Sendo tais privilégios, potencialmente, os principais obstáculos que o novo governador deveria enfrentar, o próprio rei fez questão de esclarecer: "sem embarguo de pellas doaçoens por mim feitas aos Capitães das ditas terras do Brasil lhes ser concedido, que nas terras das ditas capitanias não entrem em tempo algum Corregedor, nem alçaida, nem outras alguas Justiças pera nellas usarem de jurisdicção algua, por nenhua via, nem modo que seja, nem menos sejão os ditos capitães sospensos de suas Capitanias, e jurdições dellas [...] per quanto por alguas justas causas, e Respeitos, que me a isso mouem ey por bem de minha certa ciencia por esta vez pera estes casos. E pera todo o conteudo nos Regimentos, que o dito Thomé de Sousa leua derogar as ditas doações e todo o nellas conteudo enquanto forem contra o que se conthem nesta Carta, e ditos Regimentos e Provisões".

Consoante esta carta, o regimento aludido, de autoria do Conde da Castanheira, autorizava o governador a visitar as capitanias, acompanhado do provedor-mor e do ouvidor geral. Não conhecemos o regimento outorgado ao primeiro ouvidor geral, mas Frei Vicente nos informa a respeito que o rei "quebrou os [poderes] que tinha concedido a todos os outros capitães proprietários, por no cível e no crime lhes ter concedido demasiada alçada [...] mandando que no crime nem uma tenham sem que dêem apelação para o ouvidor geral dêste estado, e no cível vinte mil réis somente, e que o dito ouvidor geral possa entrar por suas terras por correição e ouvir nelas de auções novas e velhas, o que não faziam dantes".

Outra preocupação da Coroa era a fiscalização de suas próprias rendas. Cada donatário se obrigava a remeter para Lisboa um quinto dos lucros obtidos na sua exploração, mas essa arrecadação tinha era de difícil controle. O provedor-mor, vindo também com Tomé de Sousa, tinha essa incumbência, para a qual contaria com o apoio de dois juízes, um procurador e outros auxiliares. Além das suas funções administrativas, julgava as causas relacionadas à Fazenda Pública até a quantia de dez mil-réis. Acima desse limite, reunia-se com os dois juízes para, coletivamente, chegar à sentença. Conhecia também o provedor-mor de todos os pleitos referentes a sesmarias e concessões de terras e águas, entre quaisquer partes e em qualquer capitania.

Ainda em 1549, mesmo sem a companhia do governador, que não se atrevia a abandonar a nova cidade, ainda muito indefesa, Pero Borges, o primeiro ouvidor geral, iniciou a sua primeira viagem de correição. Após percorrer o litoral baiano, seguiu pelas capitanias do sul, visitando Ilhéus e, já em 1550, Porto Seguro e São Vicente. Na volta, depois de ver-se envolvido num combate com corsários franceses, encontrou a capitania do Espírito Santo, "quase perdida com discórdias e desvarios dos homens, por não estar Vasco Fernandes [o donatário] nela e ser ido não sei onde. Saiu o ouvidor fora e consertou tudo". A informação, do capitão-mor do mar Pero de Goes, permite aquilatar a coragem e a capacidade político-administrativa do magistrado.

A viagem de Pero Borges evidenciou, no entanto, um problema menor mas não desprezível: o das culpas passadas. Muitos homens cometeram delitos no Brasil antes do estabelecimento do Governo-geral. Outros, aproveitando a não intervenção da Coroa nas capitanias, refugiaram-se nelas, fugindo da península ou das outras colônias. O próprio rei se ocupou do caso numa provisão dirigida ao governador: "indo o meu Ouvidor geral no anno passado de 1550 a fazer correição pelas villas e logares dessas Capitanias muitos dos que assi eram culpados se homisiaram e alguns se lançaram com os gentios da terra , e andam entre elles dando-lhes mau exemplo e usando de seus costumes e outros se vieram a estes reinos e se foram para as Antilhas e outras partes com receio de serem presos e castigados como por direito mereciam." A solução, contida na mesma provisão, foi um perdão geral para todos os crimes cometidos antes do Governo-geral, "não havendo parte que acuse e residindo o criminoso algum tempo nas povoações". Como de costume, excetuavam-se também os crimes mais graves como traição, sodomia, falsificação de moeda e morte de homem cristão. Encerrava-se, assim, uma difícil transição, pela qual, paradoxalmente, a Justiça brasileira nascia baseada num tripé de medidas de duvidosa legalidade: a desapropriação da capitania da Bahia, a supressão ou limitação dos direitos que o mesmo rei, D. João III, concedera anteriormente aos capitães e, finalmente, a anistia geral de quase todos os delinqüentes.

Em 1552, já numa situação mais estável e com a cidade bem fortificada, o próprio Tomé de Sousa resolveu sair em viagem pelas capitanias, levando consigo, conforme o seu regimento mandava, a Pero Borges e ao provedor-mor Antônio Cardoso de Barros. Além de cuidar da fortificação e defesa dos lugares por onde passava, o governador mandou levantar pelourinhos nas vilas e construir cadeias e casas de audiência onde não existiam. Voltando a Salvador, enviou para Portugal Pero de Goes, que comandara as duas navegações, encarregando-o de notificar ao rei de quanto fosse necessário e transmitir algumas propostas, entre as quais a de unificar num só cargo a Ouvidoria-geral e a Procuradoria-mor. Sugeria, outrossim, o povoamento do Rio de Janeiro e a instalação nele de uma segunda ouvidoria, que atendesse às necessidades de justiça das capitanias do sul. A primeira idéia foi logo posta em prática, no governo de Duarte da Costa, com o acúmulo da ouvidoria-mor por Pero Borges. A segunda, apesar da sua evidente utilidade, precisou esperar até a instalação do Governo-geral do Sul.

A insuficiência da Ouvidoria-geral para a administração da Justiça no Brasil foi declarada, pela primeira vez, numa petição dos oficiais da Fazenda de Salvador, em 1564. Postulavam eles que, sendo o ouvidor um só, era potencialmente suspeito de parcialidade, sugerindo que "nam devia ter mais alçada nesta capitania que ha que tem os capitães e que passando dela os feitos se despachassem per desembargo com o governador e juizes ordinarios com o veador mais velho desta cydade no qual vossa alteza podera acrescentar a alçada que lhe bem parecer porque sendo cinquo juizes fica fora de toda sospeta e suspeiçam e sera menos trabalho custas aos omens que mandarem ou forem com seus feitos ao reino especialmente os que ficão em prisam". Embora não se adotasse uma providência efetiva nesse sentido, Frei Vicente do Salvador registra - e, neste ponto, é fonte altamente confiável por se tratar, para ele, de fatos recentes - o funcionamento de uma junta parecida, quando, lembrando os tempos anteriores à chegada da Relação, diz que "se administrava a Justiça só pelos juizes ordinarios da terra e um ouvidor geral, que vinha do reino de três em três anos, e, quando a gravidade do caso o pedia, se lhe ajuntava o governador com o provedor-mor dos defuntos, que era letrado, e os mais que lhe parecia".



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