Brasão real de Castela, indicativo da posse territorial.
O brasão real de Castela, indicativo da posse territorial, nunca foi usado oficialmente em terras portuguesas.
(Detalhe de um mapa da época)

  Memória
da Justiça Brasileira - 1
Capítulo 4

Governo e Justiça
no Portugal Espanhol

Conhecendo ou não a carta de D. Manoel, a solução prática foi a instituição de um vice-rei português, residente em Lisboa, em torno do qual subsistiriam os órgãos de governo próprios da estrutura anterior. Por cima deles, na Espanha, o rei governava assessorado pelo Conselho de Portugal, criado em 1582. Existiam ainda outros dois conselhos, o de Itália e o das Índias, o que nos leva a pensar que fosse este um recurso próprio da Coroa espanhola para administrar os territórios distantes. Cumpriam-se, no entanto, os desejos de D. Manoel. Os membros desse conselho, um prelado, um vedor da Fazenda, um secretário, um chanceler-mor e dois desembargadores do Paço, eram portugueses, e todos os despachos eram traduzidos para o português. Tudo leva a crer, por outra parte, que esta autoridade se limitasse às grandes decisões politicas, deixando uma ampla autonomia ao vice-rei e seus órgãos de apoio. Con efeito, embora todas as provisões, alvarás, cartas régias e outros documentos fossem formalmente assinados "EU EL REI" ou simplesmente "REI", a grande maioria deles está datada em Lisboa, cidade onde ele nunca residiu. Há certos casos, como o dos registros do livro de correspondências do Desembargo do Paço, onde a razão evidente deste desencontro é a de serem transcrições do conteúdo dos documentos, registrando-se, apenas, a data e o lugar em que a cópia foi realizada. Outros documentos, no entanto, guardam completa coerência entre a data e o corpo do texto, fazendo pouco provável a interpolação pelo copista.

Um dos primeiros problemas que Felipe II - agora, "Filipe, o Primeiro" - deveria enfrentar no seu novo reino era o de entender a complexa estrutura legal preexistente, que, aliás, já tinha apresentado problemas e motivado providências dos seus antecessores no trono. Originário de códigos romanos e visigóticos, e fortemente entremesclado de cartas forais e concessões diversas, o direito aplicado em Portugal ressentia-se de uma falta de leis escritas e, principalmente, da falta de codificação das existentes. As disposições eram manuscritas e não circulavam entre todas as autoridades, salvo indicação expressa. Não existia, por outra parte, a obrigatoriedade da publicação. Antes, pelo contrário, as ordens eram encaminhadas apenas a quem deveria executá-las e existia expressa proibição de dar traslado a outros ou até de revelar o seu conteúdo às partes. A conseqüência era, freqüentemente, que as próprias autoridades ignorassem a existência de leis que outras autoridades estavam aplicando.

O primeiro a ordenar uma codificação foi D. João I, rei de 1385 a 1433. A elaboração atravessou o reinado de D. Duarte, a regência de D. Leonor, e as Ordenações foram, finalmente, promulgadas pelo recém-coroado Afonso V, em 1446. Embora ele não tivesse maior participação, passaram a ser lembradas como Ordenações Afonsinas e ele próprio como Afonso, "o Legislador". Estas ordenações vigoraram até 1521, ano em que D. Manoel promulgou as que levam o seu nome, fruto da revisão das Afonsinas e da recompilação das leis extravagantes surgidas nos 75 anos transcorridos. As Ordenações Manoelinas foram logo impressas, sendo o primeiro código no mundo a contar com esta forma de difusão.

Mais sessenta anos haviam passado quando Felipe II assumiu o controle de Portugal. Novas leis extravagantes, cartas, provisões, alvarás, acumulavam-se desordenadamente e não contribuía para esclarecer a legislação o modo atípico em que a sucessão se processara. Entre as primeiras medidas do novo rei destacou-se o estudo da situação da justiça portuguesa, encomendado ao jurista espanhol Rodrigo Vázquez de Arce, membro da Real Audiência de Granada. A sua designação para esse serviço aparece já mencionada numa carta de 14 de abril de 1579, isto é, dois anos antes de Felipe II tomar posse efetiva do trono português.

As conclusões de Vázquez foram claras e contundentes: Que aya falta de justicia en este reyno y necessidade de remediar llo confiesan todos". Depois das Ordenações Manoelinas, Duarte Nunes de Leão se ocupara em recompilar as leis extravagantes surgidas até o ano de 1569, publicação às vezes chamada de Código Sebastiânico, apesar de não ter havido participação ativa de D. Sebastião na sua elaboração. Impunha-se, no entanto, a atualização das próprias Ordenações, o que foi encomendado a uma comissão de juristas portugueses presidida por Damião de Aguiar. As novas ordenações, hoje conhecidas como Filipinas, foram aprovadas em 1595, mas a sua impressão e entrada em vigor só foram concretizadas em 1603.

Cabeça da administração in situ, o vice-rei de Portugal, substituído em alguns períodos por uma junta de governadores, contava com o apoio dos diversos órgãos que, até então, auxiliaram à Coroa portuguesa, a começar pelo Conselho de Estado, que se reunia só ocasionalmente, ao chamado do vice-rei, para assessorá-lo nas questões mais complexas da política interna e externa. Mais constante era o Desembargo do Paço, que se reunia diariamente e toda sexta feira despachava com o vice-rei. Além de exercer funções consultivas, julgava as questões que, por causa de foros especiais, superavam a alçada da Casa da Suplicação, os recursos às decisões da mesma e os conflitos de jurisdição entre ela e a Casa do Cível. Eram da competência exclusiva do Desembargo do Paço os pedidos de legitimação, restituição de fama, fintas, graças e perdões, emancipação de menores, confirmação de juízes etc.

Três tribunais julgavam recursos antes de chegar ao nível do Desembargo do Paço: a Casa do Cível, com sede em Lisboa, a da Suplicação, que acompanhava o rei, e a Relação da Índia, sediada em Goa. Logo, em 1582, atendendo a reivindicações da população do norte, Felipe II resolveu extinguir a Casa do Cível e criar uma segunda Relação, no Porto. Fora esses órgãos colegiados, ouvidores e corregedores agiam individualmente em diversas partes do reino.

A Casa da Suplicação, modelo pelo qual se regiam os outros tribunais, era a mais diretamente ligada ao poder real e inicialmente incluía as atividades do Desembargo do Paço, desmembradas, a partir de 1521, num órgão independente. Constava, em 1580, de mais de vinte desembargadores, reunidos em duas "mesas" e uma "mesa grande", que corresponderiam, aproximadamente, às "câmaras" e ao "pleno" dos tribunais atuais. Além das suas funções especificamente judiciárias, conhecia das petições de mercês, perdões e quaisquer outras solicitações ao rei, exceto nas referentes à fazenda pública, ao patrimônio da Coroa, aos crimes alheios à sua competência e às obras e contas dos conselhos.

Junto à Casa da Suplicação e ao Desembargo do Paço, existia um tribunal especial, com competência privativa em causas que envolvessem a Igreja ou os membros das ordens militares-religiosas. Era a Mesa da Consciência e Ordens, que também assessorava ao vice-rei nessas matérias. Existiam igualmente, quase independentes do poder real e diretamente vinculados à Igreja e a Roma, três tribunais do Santo Ofício, sediados em Coimbra, Évora e Lisboa. Eles obedeciam a um Conselho Geral, também com sede em Lisboa, e realizavam visitações em outras regiões de Portugal e nas colônias.

As instâncias inferiores da Justiça começavam pelo "juiz de vintena", que podia ser nomeado sempre que um aldeamento passasse dos vinte moradores. Centros urbanos mais importantes dispunham de "juízes ordinários", que eram eletivos e integravam as câmaras e conselhos municipais. Para garantir o poder real e quebrar a influência que os poderosos locais podiam exercer sobre os juízes ordinários e de vintena, existiam os "juízes de fora", nomeados pela Coroa. Todos os juízes de primeira instância, que não precisavam ser letrados, estavam submetidos à autoridade dos "corregedores", que, sim, eram formados em leis. Estavam incumbidos de percorrer a sua jurisdição, verificando o bom andamento da Justiça, tarefa que recebia o nome de "correição". Esta função era, às vezes, acumulada transitoriamente por outros magistrados. Os ouvidores e os desembargadores das Relações costumavam fazer correições periódicas nas suas áreas de atuação.

Uma justiça especial era a dos "juízes dos cavalheiros", que conheciam, em primeira instância, dos delitos cometidos por membros das ordens militares-religiosas e que deviam ser, sempre, membros de alguma delas. Não existia, no entanto, um foro privativo para os militares que não fossem nobres. Alguns territórios, tais como os que pertenciam às mesmas ordens, ao priorado de Crato, aos ducados de Aveiro e Bragança ou ao marquesado de Vila Real, estavam isentos de correição pelos magistrados da Coroa, e só podiam ser supervisionados por ouvidores nomeados pelos próprios donatários. Era uma sobrevivência dos feudos medievais, agora transformados em doações reais.

A expansão colonial derivou num aumento considerável dessas doações. A Coroa não tinha os recursos humanos e materiais para desbravar tão vastos dominios. A solução foi parcelá-los e oferecê-los em doação a nobres e militares empreendedores, com grau de capitães e funções de governo e justiça. Os ouvidores, designados pelos capitães, revisavam também as listas de cidadãos elegíveis para as câmaras, entre as quais se encontravam os candidatos a juízes de primeira instância. Esta concentração de poderes, considerada por alguns como um erro da Coroa, era uma política deliberadamente aplicada, sempre que um novo descobrimento exigisse esforços especiais.

Além dos capitães e dos ouvidores por eles designados, a administração colonial contava com um vice-rei, na Índia, capitães e governadores nomeados pela Coroa nos territórios não doados ou devolutos e o Governo-geral, instalado no Brasil em 1549, com uma relativa autoridade sobre as diversas capitanias. Esse governo era acompanhado de um ouvidor geral, que cuidava da justiça em todo o território brasileiro.



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