Leitura da sentença contra Tiradentes.
Leitura da sentença contra Tiradentes.
(Óleo de Eduardo Sá)
  Memória
da Justiça Brasileira - 2
Capítulo 8

A Inconfidência
e seus Juízes
(1ª parte)

"Lesa-majestade quer dizer traição commettida contra a pessoa do Rei, ou seu Real Stado, que he tão grave e abominável crime, e que os antigos Sabedores tanto estranhárão, que o comparávão á lepra; porque assi como esta enfermidade enche todo o corpo, sem nunca mais se poder curar, e empece ainda aos descendentes de quem a tem, e aos que com elle conversão, polo que he apartado da communicação da gente: assi o erro da traição condena o que a commette, e empece e infama os que de sua linha descendem, posto que não tenham culpa".

Assim definido nas Ordenações Filipinas, o crime de lesa- majestade abrangia uma ampla gama de situações, classificadas em "capítulos da primeira e da segunda cabeça". Entre os da primeira cabeça contavam-se a traição, a insurreição, a autoria ou cumplicidade em atentados contra o rei, contra sua família ou contra qualquer pessoa que estivesse em sua companhia ou, mesmo, a destruição de imagens do soberano, armas ou símbolos representativos do reino ou da casa real. Qualquer desses crimes deveria ser punido com a pena de "morte natural cruelmente", ou seja, execução pública por meio de torturas. Todos os bens dos justiçados passariam para a Coroa e duas gerações de descendentes ficariam "infamados para sempre, de maneira que nunca possam haver honra de cavalaria, nem de outra dignidade, nem Officio; nem possam herdar a parente, nem a estranho abintestado, nem per testamento, em que fiquem herdeiros, nem poderão haver cousa alguma, que lhes seja dada, ou deixada, assi entre vivos, como em ultima vontade, salvo sendo primeiro restituidos á sua primeira fama e stado".

Quanto aos capítulos da segunda cabeça, estavam inclusos a liberação pela força de presos já sentenciados, réus confessos ou prisioneiros de guerra, a agressão, ferimento ou morte desses presos, considerando que se encontravam sob a custódia da Coroa, a negativa de oficiais e magistrados em cederem os seus cargos e prestarem obediência aos seus sucessores nomeados pelo rei etc. Nesses crimes, relativamente menores, a lesão à autoridade real era considerada como uma agravante, acrescentando às punições normais a desapropriação dos bens dos condenados.

Outra característica específica dos crimes de lesa-majestade era ocasionar a perda das garantias que limitavam a ação da Justiça. As Ordenações indicavam que "não gozará o accusado de privilegio algum para não dever ser mettido a tormento, nem haver pena vil, porque de todo he privado. E para ser mettido a tormento, bastarão menores indicios, que onde taes qualidades não concorrerem. E as pessoas, que em outros casos não poderião ser testemunhas, nestes o poderão ser e valerão seus ditos". Mesmo assim, a disposição alertava que "se a testemunha for inimigo capital do accusado, ou amigo special do accusador, seu testemunho não será muito crido, mas sua fé deve ser mingoada, segundo a qualidade do odio, ou amizade".

Inconfidentes, ao Tempo da Restauração

Parece evidente que, para matéria de tal relevância, e, sobretudo, tão abrangente - não se limitava às potencialmente escassas agressões à pessoa do rei, mas incluía uma grande variedade de situações que, direta ou indiretamente, lesavam seus direitos - devia existir uma instância judicial específica, mas não há indício dela nas Ordenações. O primeiro magistrado com jurisdição exclusiva em crimes de lesa-majestade parece ter sido "o Dr. Pedro Fernandes Monteiro, do Conselho de El-Rei e Desembargador do Paço, presidente ou cabeça da Junta da Inconfidência".

Entendia-se por inconfidência a quebra da fidelidade devida ao rei, envolvendo, principalmente, os crimes de traição e conspiração contra a Coroa. O registro explícito é feito em 1662, já no reinado de Afonso VI, mas há referências à atividade de Fernandes Monteiro, desde o tempo de D João IV. Em 1646, o governador do Alentejo remetia à Coroa alguns papéis, potencialmente sediciosos, "com ordem de se apresentarem ao Doutor Pero Fernandes Monteyro". Mas a incumbência não era ainda explícita, como o confirma o próprio D. João IV ao referir-se ao magistrado como "o doutor Pedro Fernandes Monteiro, do conselho da minha fazenda".

Não se conhece lei ou regimento instituindo esses tribunais especiais, razão pela qual se faz difícil ter idéia certa da sua estrutura. O nome "junta" permite supor que não se tratasse de um tribunal estável, mas de uma reunião ad hoc de autoridades que, habitualmente, desenvolviam outras funções. Assim aconteceu, em diversos lugares, com as chamadas "juntas de justiça" - constituídas por governadores, ouvidores e outras autoridades das capitanias - e as "juntas do Desembargo do Paço" - integradas por desembargadores das Relações que, coletivamente, podiam julgar alguns recursos de competência privativa daquela Corte. A ambígua indicação de Sousa de Macedo - "presidente ou cabeça da Junta" - deixa transparecer que o próprio Fernandes Monteiro não tinha um cargo explicitamente determinado, assumindo essa função apenas como extensão das suas incumbências no Desembargo do Paço. Por outra parte, a responsabilidade do magistrado não parece ter-se limitado à atividade judicante. Diversos registros deixam entrever que ele encabeçava uma sorte de polícia secreta, encarregada de controlar, preventivamente, a travessia das fronteiras e as movimentações suspeitas no interior do país.

O denso mistério que envolve essa instituição pode explicar-se pelo sigilo que o assunto exigia. "A necessidade publica - explica a Deducção Chronologica e Analytica - faz preciso hum melindroso segredo de Estado a respeito de muitos dos factos que ordinariamente se contém nos Processos de inconfidência", acrescentando que , em razão desses cuidados, não passavam de dois ou três "os ministros pelos quais os Senhores Reys mandam julgar semelhantes processos".

O grande poder e a quase clandestinidade de Fernandes Monteiro justificam-se amplamente pelas condições políticas do momento. Fora a diversificada frente externa, que Portugal herdara da dominação espanhola, setores poderosos da nobreza e grande parte do clero se opunham à Restauração. Poucos meses após a coroação de D. João IV, a primeira conspiração foi descoberta. Entre os líderes, destacavam Pedro de Baeza - opulento mercador e tesoureiro da Alfândega -, o Bispo de Martíria, o Arcebispo de Braga e até mesmo o Inquisidor Geral, D. Francisco de Castro. Contra réus tão ilustres deveriam ser usadas muita tolerância e bastante diplomacia. O castigo exemplar caiu sobre os conjurados de menor importância. Para os principais, a pena limitou-se à prisão e, menos de dois anos depois, D. Francisco de Castro era solto e reintegrado ao seu cargo de inquisidor.

Isso explica as especiais características da atuação do magistrado, que se apresentam mais próximas às de uma polícia secreta. Contra os hábitos da época, que pretendiam evitar os delitos mediante a exibição de penas aterrorizantes, o juiz da Inconfidência privilegiava o policiamento preventivo e procurava antecipar-se aos fatos, impedindo que assumissem proporções que ameaçassem à estabilidade da Coroa.

Os conflitos de D. João IV se prolongaram durante o resto da sua vida. Conforme a crença da época, durante a procissão organizada para comemorar a sua coroação, o próprio Cristo despregou um braço da cruz para benzer o novo soberano. Isso não foi óbice para que boa parte do clero lhe dispensasse sistemática oposição. D. João IV nunca foi reconhecido pela Santa Sé e, apesar da sua forçada indulgência com o clero opositor, acabou sendo excomungado post mortem. Assim, Fernandes Monteiro continuaria a ser uma peça chave na estrutura do poder real. Substituído por seu filho, Roque Monteiro Paim, o cargo de juiz da Inconfidência entrou pelo reinado de D. Afonso VI e a regência de D. Pedro II, durante a qual foi descoberta outra conjuração. Estavam envolvidos membros das ordens militares, que, protegidos pelo foro eclesiástico, não podiam ser condenados sem prévia relaxação ao braço secular. Foi feita, por isso, uma consulta à Mesa da Consciência e Ordens, que se manifestou contrária à relaxação por ser de exclusiva competência do rei, como Grão-Mestre das três ordens. Conforme esse parecer, o príncipe regente não era ainda rei e, portanto, não possuía competência para resolver nessa matéria.

Pombal e os Inconfidentes

A Junta da Inconfidência subsistiu, sem nunca ter sido explicitamente regulamentada - e sem que tenhamos ciência certa da sua continuidade, posto que não se conhece registro da sua atividade durante o reinado de D. João V -, até a segunda metade do século XVIII, em que um atentado contra a vida de D. José I lhe proporcionou repentina notoriedade. A agitação - fruto, entre outras razões, da resistência às reformas orientadas pelo Marquês de Pombal e da oposição dos setores que, por causa dele, se viam marginalizados do poder - acumulava-se desde algum tempo atrás. Existiam, como precedentes, o crescente conflito com os jesuítas e a campanha difamatória contra Pombal, em 1756. O ministro agiu rapidamente através da Secretaria de Estado. Os conspiradores foram presos, julgados sumariamente e deportados para Angola.

Um ano depois, no Porto, a concessão à Companhia Geral da Agricultura dos Vinhos do Alto-Douro do monopólio da venda, na cidade, e da exportação para o Brasil originou um movimento popular de proporções. Estimulado pelos taberneiros, um exército de vadios, soldados, rameiras e escravos assaltou a casa do provedor e forçou o corregedor - em ausência do chanceler da Relação -, a decretar a abolição da Companhia. Diante da anormal situação, fixou-se uma alçada, presidida por João Pacheco Pereira de Vasconcelos, do Desembargo do Paço.

A primeira avaliação foi bastante cética quanto ao volume do movimento. O fato foi considerado uma simples "assuada" e teria acabado sem grandes punições se o ministro não resolvesse intervir, invocando às Ordenações e classificando o crime como "de lesa-majestade". A uma consulta da Mesa da Consciência e Ordens, Carvalho respondeu, pessoalmente: "Sua magestade não dá a esse Tribunal, por Sua Real Piedade, o exemplar castigo, que merece o execrando delito de se oppôr ás Reaes Leis de Sua Magestade. O mesmo Senhor Manda, que esta Consulta seja logo queimada, e riscado o Assento da mesma; e lançado no Livro dos Assentos este Aviso, para que em tempo algum os Desembargadores deste, ou outro Tribunal commettão tão enorme delicto. Assim o tenhão entendido e cumpram cegamente, pena de cahirem no Real desagrado de Sua Magestade".

Foram julgadas 478 pessoas. Trinta e dois homens e quatro mulheres foram absolvidos. Cinco mulheres e vinte homens - entre eles o juiz do povo que, doente, fora conduzido em cadeirinha à cabeça da manifestação - foram condenados à morte. Os restantes sofreram penas variadas, incluindo açoites, degredo e confisco de bens.

Não parece que, na repressão ao motim do Porto, tomasse intervenção direta a Junta da Inconfidência. A condição de "lesa-majestade" só entrou em pauta quando o processo se encontrava já bastante avançado e, apesar de influenciada pelos setores ligados ao Marquês, a sentença foi emitida e executada pelas instâncias jurídicas normais. Mas o clima de intranquilidade era grande, e não demoraria a assumir características que exigissem o exercício dessa jurisdição especial.

Em 3 de setembro de 1758, o próprio rei, D. José, foi alvejado a tiros de bacamarte, desferidos, em duas tocaias sucessivas, sobre a carruagem do seu sargento mor, Pedro Teixeira, na qual se deslocava ocultamente. As circunstâncias do atentado permaneceram propositalmente indefinidas, abonando a hipótese segundo a qual o rei estaria voltando de uma entrevista amorosa com sua amante, D. Teresa, esposa do Marquês Luis Bernardo de Távora. O fato de a carruagem pertencer ao sargento-mor permitia imaginar que o atentado estivesse dirigido contra ele, que também tinha bastantes inimigos na Corte. Quanto à versão oficial, mais cautelosa, indicava apenas que o rei adoecera durante a noite e precisara ser sangrado.

A ocorrência de um atentado só foi admitida oficialmente três meses depois, ao dar-se ordem de prisão contra os suspeitos. O decreto qualificava o delito de "horrorosíssimo insulto" que ofendia "barbara, e sacrilegamente [...] todos os principios mais sagrados dos direitos, Divino, Natural, Civil e Patrio". Aos delatores, se plebeus, oferecia títulos de nobreza; se nobres, "fóros de Moço Fidalgo, e de Fidalgo Cavalleiro com as competentes moradias". Aos que já os possuíssem garantia "Titulos de Visconde, ou de Condes conforme a graduação em que se acharem"; a todos, "outras mercês uteis, assim pecuniárias, como os Officios de Justiça e Fazenda, e de bens da Coroa, e Ordens". Advertia, ainda, contra a "falsa apprehensão de que os Denunciantes são pessoas abjectas", indicando que "este reparo, que se costuma vulgarmente fazer nas materias que dizem respeito á fazenda [...] não tem lugar nestes crimes de Conjuração contra o Principe Supremo" e que aqueles que "sabendo de semelhantes crimes, os não delatão em tempo opportuno, tem annexas as mesmas penas, e a mesma infamia, a que são condemnados os Réos destes perneciosissimos delictos".

Mas o decreto era pouco mais do que uma simples formalidade. Todos os principais envolvidos estavam já identificados e foram presos de imediato; antes, provavelmente, de tomarem conhecimento de que eram procurados. Estavam entre eles o Marquês Luis Bernardo; seu irmão, José Maria; seu pai, Francisco de Assis; e seus cunhados, Jerónimo de Ataíde e João de Almeida Portugal. A responsabilidade principal foi atribuída a D. José de Mascarenhas, Duque de Aveiro e Marquês de Gouveia, que foi também detido, junto com seu filho Martinho. Também foi presa a mãe de Luis Bernardo, dona Leonor de Távora, chamada "a Marquesa velha", por contraposição a D. Teresa, "a Marquesa nova". As outras mulheres da família foram recluídas em conventos, entre elas a própria D. Teresa de Távora.

Dessa vez, a instrução do processo foi presidida, desde o começo, pelo Des. Pedro Gonçalves Cordeiro Pereira, "do Meu Conselho, Desembargador do Paço, Deputado da Mesa da Consciencia, e Ordens, e Chanceler da Casa da Supplicação, que nella serve de Regedor, e a quem tenho nomeado Juiz da Inconfidencia", secundado pelos Secretários de Estado, Sebastião José de Carvalho e Melo, Luis da Cunha e Tomás da Costa. Em 22 de dezembro, houve sessão plenária na Relação do Porto, onde se resolveu "que o Senhor Chanceler Governador nomeasse logo hum dos Corregedores do Crime, para abrir nesta Cidade huma devassa de Inconfidencia [...] nomeando-se tambem outro Ministro do corpo da Relação, para Escrivão da devassa". O objetivo aparente era identificar possíveis cúmplices foragidos que "tiverem entrado á quatro meses a esta parte [...] tanto nos povos, como nos pórtos de Mar, que comprehendem as duas Provincias da Beira e Minho; e tambem nos pórtos seccos, que confinão com o Reino de Castella". Seria levado em conta "qualquer indicio [...] não despresando qualquer especie de prova [...] ainda de testemunhas defectuosas, singulares e socios".

A Junta da Inconfidência foi constituída oficialmente em 4 de janeiro de 1759, sendo presidida por Cordeiro Pereira, que oficiaria também como relator, e integrada por João Pacheco Pereira de Vasconcelos - o mesmo que julgara o motim do Porto -, João Marques Bacalhau, Manuel Ferreira de Lima, Inácio Ferreira Souto e José António de Oliveira Machado. A publicidade com que foi constituída e a exemplarizadora contundência das suas decisões são claros indícios de como a estrutura do poder mudara desde a época de D. João IV. A junta de D. José não precisava de ocultamentos - a não ser os referentes à honra do próprio rei - e não estava disposta a fazer concessões. Como convinha a um regime absolutista, o castigo deveria ser terrível e inapelável. Apenas dois anos atrás, a França dera exemplo desse critério, supliciando publicamente Damiens, um pobre infeliz que atentara contra a vida de Luis XV com um canivete de aparar penas. Antes de morrer, o condenado foi torturado durante quase duas horas e ainda teve seus ferimentos regados com chumbo derretido.

Se a sentença devia ser pública, o processo, pelo contrário, deveria ser rigorosamente secreto. Foi o que Pombal advertiu expressamente à Junta, poucos dias depois da sua instalação. Atendendo "à suma gravidade e delicadeza dêste importantíssimo negócio", deveria ser observado no processo "o mais inviolável e melindroso segrêdo".

Mas a constituição da junta era, também, uma formalidade. A investigação estava pronta e nem mesmo as motivações dos réus podiam ser reveladas. Importava, apenas, comprovar a culpabilidade e proferir a sentença, único elemento a ser publicado. O processo, constituído por seis volumes encadernados, permaneceria secreto, chegando a ser dado por perdido até aparecer, em 1920, na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Um dos integrantes da junta escreveria, posteriormente, que "tudo o que se continha na sentença estava provado, e purificado de toda a dúvida" porque o próprio rei possuía "provas convincentes", o que sugere a existência de provas secretas, que não podiam ser dadas à publicação.

Importava a todos demonstrar indubitavelmente a sua fidelidade ao monarca. Antes mesmo de que os réus fossem julgados, a Casa dos Vinte e Quatro, em nome dos procuradores dos mesteres e do povo de Lisboa, pediu que fossem declarados "peregrinos e estrangeiros [...] de sorte que ficassem inteiramente separados de um povo tão fiel como o da dita cidade de Lisboa". A 11 de janeiro, um dia antes de lavrar a sentença, os integrantes da junta pediram autorização para exceder as penas previstas na legislação "porque nem as Leis Pátrias até agora escritas deram, ou podiam dar toda a necessária providência para castigar uma ferocidade tam inaudita". O rei concordou.

A sentença saiu, pontualmente, no dia 12, e foi executada no dia seguinte, a quatro meses do atentado, a um mês do início oficial das investigações e a apenas oito dias da constituição da Junta. Iniciou o macabro espetáculo a execução de D. Leonor de Távora. Os algozes lhe mostraram demoradamente os instrumentos que deveriam servir para o seu suplício e o do seu marido e filhos. Poupada da tortura "por algumas justas considerações (relevando-a das maiores penas, que por suas culpas merecia)" foi amarrada a um tosco banco e degolada. Também foi atenuada a sentença do seu filho, José Maria, que, antes de ser "massolado" (destroçado a golpes de maça) foi estrangulado sobre a roda que deveria servir para expor o seu cadáver. O mesmo destino tiveram o Conde de Atouguia, o Marquês Luis Bernardo de Távora e três subordinados, envolvidos na conspiração dos seus senhores.

O Marquês velho, Francisco de Assis, condenado a ser "rompido vivo", ou seja, a sofrer em vida os golpes que quebrariam os seus ossos, enfrentou o suplício com grande coragem. Depois de se ter confessado, beijou a roda a ele destinada, deitou-se nela e se deixou amarrar. "Logo o algôs, pegou em uma massa de ferro que pesava dezoito arráteis, e batendo-lhe a primeira pancada sobre o peito, lhe foi quebrando as oito canas dos braços e das pernas, e ultimamente lhe deu a derradeira no rosto".

O Duque de Aveiro, identificado como cabeça principal da conspiração e fisicamente participante na tocaia, foi "rodado vivo, deitado sobre a lenha, em que havia de ser queimado, e á vista do alcatrão". O seu suplício "foi muito mais sensível [...] porque descarregando o algôs, por erro do braço, a primeira pancada sôbre o ventre, que devera dar sôbre o peito, para que dilaceradas logo as costelas com o vigor do golpe, quando lhe não tirasse instantâneamente a vida, ao menos, com as potências confusas para sentir menos as fracturas dos ossos, a que sem interrupção se procedia; foi necessário depois dêstes despedaçados, repetir os golpes no peito e cara, para acabar o final alento, dando bem a conhecer, pelos sentidos ais que se lhe ouviam, a violência e tirania que suportava".

O clímax do espetáculo - minuciosamente planejado em ordem de violência crescente - foi a execução de António Alves, tido como autor dos disparos que atingiram o rei. Foi "queimado vivo, descobrindo-se-lhe os Corpos já mortos acima referidos, que se achavão cobertos". Foi amarrado a um dos postes que dominavam em altura todo o cadafalso, com o corpo coberto de pedaços de breu e um saco de pez e enxofre preso ao pescoço. O narrador indica, ainda, que a morte foi especialmente lenta pela situação do vento, que soprava do norte, em rajadas. A fumaça não o sufocava e as chamas iam e voltavam, queimando-o lentamente. O terceiro participante da tocaia, José Policarpo, cunhado de António Alves, não pôde ser capturado. Foi queimado em efígie, amarrado ao segundo poste.

Todos os bens dos condenados foram confiscados, os corpos queimados e as cinzas lançadas ao mar, junto com as do próprio cadafalso. As mulheres que não foram executadas foram recluídas em conventos. Vários jesuítas, considerados instigadores da conspiração, foram presos, mas não poderiam ser executados sem que fossem relaxados ao poder secular. Neste caso, os envolvidos eram propriamente religiosos e não membros de ordens militares, de modo que nem mesmo o rei poderia fazer esse relaxamento, que cabia exclusivamente à Santa Sé. Mesmo assim, o episódio seria utilizado como pretexto para concretizar a expulsão da Companhia de Jesus, e o padre Gabriel Malagrida, confessor da Marquesa de Távora e da Condessa de Atouguia, apontado como inspirador do atentado, acabaria condenado à fogueira pelo Santo Ofício, em 20 de setembro de 1761.

Inconfidência e Rebelião na América Colonial

Não parece que o Juízo da Inconfidência tivesse grande influência no Brasil. Existia, evidentemente, o conceito de inconfidência, explicitamente aplicado à chamada "Inconfidência Mineira", mas resulta improvável que houvesse juízes da inconfidência permanentemente estabelecidos em território americano ou mesmo que, diante dos feitos que a eles competiam, se pensasse em enviar juízes da península. À distância, o conceito de "lesa-majestade" deveria parecer bem menos premente que a simples conservação da ordem administrativa, política e militar. Assim, nas conspirações e revoltas, que não foram poucas, os governadores, como autoridades políticas e militares, julgavam sumariamente e executavam os réus, geralmente sem os requintes de crueldade recomendados para os crimes de lesa-majestade. O rei estava longe e, apesar da legislação, tornava-se difícil conceber que fosse diretamente lesado por ações acontecidas na América e originadas, geralmente, em conflitos meramente regionais. Se no Porto, a escassa distância de Lisboa, a agitação foi classificada como uma simples assoada, imagine-se o que poderia acontecer nas isoladas colônias, onde os conflitos de poder entre os diversos grupos e até mesmo entre as próprias autoridades eram habituais e onde o poder militar dos governadores se aproximava ao que exerceriam sobre uma praça de guerra.

A primeira sublevação na América a merecer tratamento especial foi a encabeçada, nas colônias espanholas, por José Gabriel Condorcanqui, mais conhecido como Tupac Amaru. Em 1776, através do Visitador José Antonio de Areche, Carlos III iniciara uma drástica reforma econômica que, em pouco tempo, conseguiu elevar a arrecadação de um milhão e meio a quatro milhões de pesos. Baseada, principalmente, no aumento da pressão fiscal, essa política provocaria reações em todos os setores. Em 1780, Arequipa e La Paz foram teatro de movimentos populares vitoriosos. As conquistas obtidas - notadamente, a redução dos impostos internos - estimularam novos movimentos nas áreas não favorecidas. Cuzco, Cochabamba, Chuquisaca e outras cidades tentaram a mesma reivindicação com resultados vários. Enquanto, em algumas, os movimentos levavam à morte os cabeças das sublevações, em outras, a pressão exercida forçava concessões, que demonstravam a fraqueza das autoridades e favoreciam o crescimento da agitação.

Faltava, no entanto, um líder que desse unidade a esses esparsos movimentos locais. No Brasil, essa carência foi a principal limitação às tentativas dos séculos XVIII e XIX. Relativamente isoladas, tanto econômica como administrativamente, as capitanias se desenvolviam em forma independente e colocavam as suas reivindicações como problemas separados, que as enfrentavam isoladamente com a autoridade real. Os movimentos eram liderados pelos proprietários brancos, único setor da sociedade que contava com a organização e o poder necessários a uma ação coordenada. Pelo contrário, as colônias espanholas - e, especialmente, o Peru - estavam habitadas por uma população indígena que já fora organizada e poderosa e que, apesar dos séculos de submissão forçada, nunca perdera a consciência da sua unidade.

Essa rebeldia largamente contida foi catalizada quando José Gabriel Condorcanqui, cacique de Tungasuca, resolveu reivindicar seu sangue real, assumindo o título de José Gabriel Tupac Amaru Inca. O próprio nome era - como se diria em nossos dias - um acerto de marketing político. Tupac Amaru, o último Inca rebelde, era um símbolo do antigo esplendor. Após a morte de Atahualpa, seu irmão Manco internou-se nos vales próximos a Machu Picchu, constituindo um verdadeiro reino no exílio, que subsistiu, atravessando os reinados dos seus filhos, Sayri Tupac e Titu Cusi. Esse foco de resistência, que durou quarenta anos, só seria submetido em 1572, com a derrota do seu último líder, Tupac Amaru, que foi decapitado em Cuzco. Os espanhóis fizeram questão de exemplarizar os índios com a execução pública mas, para seu espanto, entre 12 e 15 mil deles, após assistirem à execução em silêncio, passaram dois dias e duas noites completos bradando em volta do corpo do rei morto. Depois, tal como os portugueses esperavam a volta de D. Sebastião, os incas passaram a aguardar o retorno de Tupac Amaru, cujo corpo, conforme a lenda, teria sido dividido em pedaços dispersos que, enterrados como sementes, ressurgiriam, como as plantas, para restaurar o império.

Não parece que o novo Tupac Amaru visasse, explicitamente, a independência. Nos documentos conservados, define-se "como fiel vasallo del Rey, nuestro señor", quem teria "ordenado proceda extraordinariamente contra varios corregidores y sus tenientes por legítimas causas que por ahora se reservan". Ao Bispo de Cuzco, esclarecia que "aunque hoy se me note de traidor y rebelde, infiel y tirano a nuestro monarca Carlos, dará a conocer el tiempo que soy su vasallo".

Nas suas manifestações, fazia questão de apresentar-se como "de la sangre real y tronco principal" e destacava: "La mía es la única que ha quedado de la sangre real de los incas, reyes de este reino". Poderia parecer apenas jogo político se não obrasse, na Audiencia de Lima, um processo reivindicando o reconhecimento oficial desses títulos. Desde os tempos da conquista, a Espanha reconhecia a nobreza derivada do sangue real incaico, embora assemelhando-a aos moldes europeus e subordinando-a à autoridade da Coroa de Castela. Essa aristocracia misturada resulta evidente na forma em que Condorcanqui entrou em Cuzco: "Tupac Amaru iba en un caballo blanco, con aderezo bordado de realce, su par de trabucos naranjeros, pistolas y espada, vestido azul de terciopelo, galoneado de oro, su cabriolé en la misma forma, de grana, y un galón de oro ceñido en la frente, su sombrero de tres vientos, y encima del vestido su camiseta, o unco, figura de roquete de obispo, sin mangas, ricamente bordado, y en el cuello una cadena de oro, y en ella pendiente un sol del mismo metal, insignias de los príncipes, sus antepasados".

Não resulta improvável que parte da sua rebeldia derivasse da rejeição da Real Audiencia às suas pretensões de nobreza, mas a particular situação da colônia lhe daria um alcance político e militar além de toda previsão. À data da prisão de Tupac Amaru, cinco meses depois das primeiras hostilidades, a insurreição se alastrava pela maior parte do Peru, todo o planalto boliviano e o noroeste da atual Argentina. Embora válida para o leitor atual, essa localização, baseada na delimitação de países que ainda não existiam, resulta insuficiente para avaliar a extensão do movimento. Considere-se, então, que envolvia dois virreinatos - Peru e Rio de la Plata - e três audiencias - Lima, Charcas e Buenos Aires -. Mas, muito mais expressiva, ainda, é a constatação de que a área atingida pela sublevação se ajustava como uma luva aos limites do antigo Tahuantisuyo. Era, consciente ou inconscientemente, o poder indígena que voltava, ameaçando afogar em sangue os herdeiros de uma dominação igualmente sangrenta. Diante da magnitude da conflagração, foram deslocadas forças militares especiais e o próprio Visitador Areche assumiu o julgamento dos rebeldes, pronunciando uma sentença que ficaria como a mais bárbara a ser executada na América Latina.

A estratégia de Areche privilegiava, principalmente, "la noticia de la ejecución de la sentencia y su muerte, evitando con ella las varias ideas que se han extendido entre casi toda la nación de los indios, llenos de supersticiones, que los inclinan a creer la imposibilidad de que se le imponga pena capital por lo elevado de su carácter, creyendole del tronco principal de los Incas, como se ha titulado, y por eso dueño absoluto y natural de estos dominios y su vasallaje". Precisava, em conseqüência, fazer público o castigo, que seria executado com requintes de crueldade. Antes de ser morto, o réu deveria assistir às execuções da sua mulher, dos seus filhos - um deles com menos de 11 anos -, do seu tio, do seu cunhado e dos principais chefes da insurreição. Depois, "se le cortará por el verdugo la lengua, y después amarrado o atado por cada uno de los brazos y pies con cuerdas fuertes, y de modo que cada una de éstas se pueda atar, o prender con facilidad a otras que prendan de las cinchas de cuatro caballos; para que, puestos de ese modo, o de suerte que cada uno de éstos tire de su lado, mirando a otras cuatro esquinas, o puntas de la plaza, marchen, partan o arranquen a una voz los caballos, de forma que quede dividido su cuerpo en otras tantas partes, llevándose éste, luego que sea hora, al cerro o altura llamada de Picchu, a donde tuvo el atrevimiento de venir a intimidar, sitiar y pedir que se le rindiese esta ciudad, para que de allí se queme en una hoguera que estará preparada, echando sus cenizas al aire, y en cuyo lugar se pondrá una lápida de piedra que exprese sus principales delitos y muerte, para sólo memoria y escarmiento de su execrable acción".

A sentença prosseguia enumerando os locais onde as partes restantes seriam exibidas: a cabeça em Tinta, um braço em Tungasuca e outro em Carabaya, uma perna em Chumbivilcas e outra em Lampa. Distribuição similar seria feita com os corpos da sua esposa, dos seus filhos e dos principais líderes da sublevação. Em cada um desses lugares, seria lida a sentença, e essa leitura seria repetida anualmente, para eterna memória. Todas as propriedades dos réus seriam desapropriadas e as suas terras arrasadas e semeadas com sal para nunca mais darem fruto. Todos os descendentes ficariam infames e privados de receber qualquer donativo ou herança. Os autos promovidos por Condorcanqui para o reconhecimento da sua ascendência seriam recolhidos "quemándose públicamente por el verdugo en la plaza pública de Lima, para que no quede memoria de tales documentos".

A decisão assumia, ainda, características de legislação comum, estabelecendo limitações a futuras ações de reconhecimento de títulos nobiliários por parte dos índios, excluindo os caciques do governo das suas comunidades, proibindo os índios de utilizarem roupas ou insígnias da nobreza incaica, etc. Os índios não poderiam usar luto nem usar instrumentos musicais significativos dele, nem intitular-se "incas" e seriam forçados a vestir-se como espanhóis e falar castelhano. Finalmente, proibia a posse e fabricação de armas de fogo e mandava recolher as que se encontrassem em uso nas "haciendas, trapiches y obrajes de estas provincias".

Embora a decisão já seja suficientemente terrorífica, a descrição detalhada da sua execução a supera largamente em brutalidade: Após o enforcamento dos outros réus - exceto o filho menor, que, poupado no último instante, foi "pasado por debajo de la horca" e condenado à prisão perpétua na África - Micaela Bastidas, mulher de Tupac Amaru, subiu ao cadafalso, onde "a presencia del marido, se le cortó la lengua y se le dio garrote" em um "torno de fierro que a este fin se había hecho y que jamás habíamos visto por acá". O anônimo cronista relata, ainda, que "padeció infinito, porque, teniendo el pescuezo muy delgado, no podía el torno ahogarla, y fue menester que los verdugos, echándole lazos al pescuezo, tirando de una y otra parte, y dándole patadas en el estómago y pechos, la acabasen de matar". Quanto a Tupac Amaru, após descrever os preparativos do esquartejamento, o narrador lembra: "No sé si porque los caballos no fuesen muy fuertes, o porque el indio en realidad fuese de fierro, no pudieron absolutamente dividirlo, después que por un largo rato lo estuvieron tironeando, de modo que lo tenían en el aire, en un estado que parecía una araña". O próprio Areche, que assistia ao suplício das janelas da Igreja da Companhia, resolveu abreviar-lhe a agonia, mandando o algoz cortar-lhe a cabeça

Mas, apesar dos esforços do Visitador, o exemplo foi infrutífero. O mesmo narrador, apesar de branco, o admite ao registrar que "a hora de las 12, en que estaban los caballos estirando al indio, se levantó un fuerte refregón de viento, y tras éste un aguacero, que hizo que toda la gente, y aun las guardias, se retirasen a toda prisa. Esto ha sido la causa de que los indios se hayan puesto a decir que el cielo y los elementos sintieron la muerte del Inca, que los españoles inhumanos e impíos estaban matando con tanta crueldad".

Primeiros Movimentos Brasileiros

Em contraste com as colônias espanholas, o Brasil não contava com uma base indígena coesa. Nenhum grande império florescera antes da chegada dos portugueses e as dispersas comunidades foram prontamente dominadas ou destruidas, exceção feita das que se internaram nos territórios mais inacessíveis e, por isso mesmo, se encontravam marginadas de qualquer processo político. Quanto à população negra, muitos de cujos integrantes já conheceram, na África, estruturas políticas de alta complexidade, encontrava-se completamente desarraigada. Misturavam-se, nas senzalas, muçulmanos de um nível cultural relativamente elevado - os chamados "malês", que, já na época imperial, chegariam a protagonizar algum movimento digno de nota -, com membros de populações tribais, incapazes de qualquer projeto político de largo alcance. Os quilombos, expressão constante e onipresente da resistência negra, obedeciam, apenas, a um propósito de autodefesa. Surgiam, geralmente, de maneira espontânea, pela reunião dos escravos foragidos, e procuravam, no máximo, reconstituir, em lugares afastados da cobiça dos brancos, os modos de vida e de organização que conheceram na África. Não consta - mesmo em experiências bem sucedidas como a dos Palmares - que pretendessem impor qualquer tipo de estrutura à sociedade como um todo.

Limitados, também, foram os movimentos brancos do século XVII e da primeira metade do XVIII. Beckman, Filipe dos Santos e outros líderes visavam, apenas, a solução de conflitos regionais e conjunturais, sem contestar abertamente a autoridade da Coroa portuguesa. A rigor, o único movimento decididamente separatista foi o de Amador Bueno, em São Paulo, favorecido pela constituição plurinacional dessa colônia fronteiriça e pela transitória anarquia provocada pela Restauração ainda não consolidada. Prematuramente frustrada pela renuncia do líder escolhido, a tentativa revolucionária não chegou a motivar ações repressivas de grandes proporções. Rebelde e altiva por natureza, São Paulo continuaria a criar preocupação, limitando-se, porém, a conflitos setoriais: paulistas contra jesuítas, Pires contra Camargos, mineradores contra "emboabas". Todos esses conflitos acabariam controlados por soluções mais político-militares do que jurídicas.

Tal como os paulistas, os maranhenses ligados a Manuel Beckman começaram por expulsar os jesuítas. Exigiam, também, a extinção da Companhia do Maranhão, criada na época da Restauração a instâncias do padre Antônio Vieira, que, desvirtuada nas suas finalidades, se convertera em um instrumento de exploração por parte da Coroa. Ela controlava o comércio, desvalorizando as exportações de açúcar e majorando os preços do sal, da pólvora e dos escravos africanos. Os jesuítas impediam a escravização dos índios, tornando ainda mais difícil obter mão de obra barata. O movimento foi sufocado, e Beckman condenado à morte pelo governador.

O mesmo aconteceu em Vila Rica, em 1720. Era intenso o desvio de ouro em pó e a Coroa, visando dificultar o contrabando, mandou estabelecer casas de fundição, que transformassem o ouro em barras, ainda perto das áreas de extração. Vários mineradores se insubordinaram e Filipe dos Santos, líder da rebelião, foi morto e esquartejado por ordem do Visconde de Assumar.



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