Combate entre índios e bandeirantes.
Combate entre índios e bandeirantes.
(Detalhe de uma gravura de Jean Baptiste Debret)
  Memória
da Justiça Brasileira - 2
Capítulo 3

A difícil fronteira sul

Instalado o Governo Geral na Bahia, o primeiro foco de civilização, iniciado no sul pelos capitães donatários, iria decrescendo, relativamente, em importância. No Rio de Janeiro, as incursões francesas forçaram a intervenção do governador Mem de Sá e, a partir desse momento, a posição estratégica desse porto motivaria um interesse permanente por parte das autoridades. Não acontecia o mesmo nas localidades interioranas que, afastadas tanto dos centros do poder português como das ambições coloniais estrangeiras, ficavam praticamente entregues à sua própria sorte.

Destacava entre elas a capitania de São Vicente, que começara pela vila homônima, fundada por Martim Afonso de Sousa em 1532. Situada quase na linha determinada pelo Tratado de Tordesilhas, constituía uma extensa e mal traçada área de fronteira. Ninguém se esforçara em demarcar oficialmente os limites que derivavam desse acordo. A ocupação portuguesa tinha um caráter essencialmente marítimo, e a larga faixa de selva punha limites à expansão espanhola.

Jesuítas e Bandeirantes

Nesse território virgem se estabeleceram os jesuítas, em 1554. Depois de tentar, sem muito sucesso, uma experiência missionária nos arredores de Salvador, os padres Nóbrega e Anchieta, buscavam uma área afastada dos interesses dos brancos. Trilhavam, em definitivo, a senda que iria culminar na utopia social e religiosa das selvas Paraguaias e Amazônicas.

Mas a distância não era suficiente e o projeto, ainda não muito claro. Tal como acontecera com outros assentamentos religiosos, o Colégio de São Paulo virou polo de atração de imigrantes e moradores dispersos, que encontravam nas suas proximidades uma proteção contra os perigos do país. Já em 1562 a vila contava com um Conselho Municipal e terminava as muralhas grosseiras que deveriam defendê-la dos índios, que, de objetivo principal da sua fundação, viraram uma ameaça para a sua existência. Essa inversão se completou em 1640, quando, às vésperas da coroação de D. João IV, os jesuítas foram sumariamente expulsos do seu colégio.

Era o final de um longo conflito. O labor missionário conflitava, inevitavelmente, com os interesses da população. Afastados da costa e dos principais centros de poder, desprovidos de riquezas fáceis, sem escravos negros e pouco inclinados a trabalharem nas lavouras e na criação de gado, os paulistas preferiam organizar expedições à caça dos índios, cuja escravidão estava proibida, mas não podia ser efetivamente controlada. Acabaram especializando-se nessa atividade e convertendo-se em fornecedores, não apenas para suas próprias fazendas mas para todas as regiões vizinhas.

Os protestos dos jesuítas tinham mais eficácia de caráter moral do que jurídica, posto que a lei mal podia controlar o que acontecia na vila e, menos ainda, nas expedições aos sertões, mas as suas acusações conseguiam, pelo menos, irritar e colocar em posição incômoda cidadãos que, em outros aspectos, eram vizinhos respeitados, donos de terras, produtores, e até mesmo "homens bons", membros da administração municipal. Os reiterados conflitos conduziram, em 1640, a uma reunião dos procuradores de todas as câmaras da Capitania, que se pronunciou pela expulsão pura e simples dos molestos vizinhos. Na reunião, acontecida em São Vicente, foi redigida uma ata, dirigida à Câmara de São Paulo, que foi aberta e lida na sessão de 2 de julho, provocando aclamações dos presentes. A seguir, juízes, vereadores e público dirigiram-se ao Colégio e intimaram o reitor a abandonar a vila. Não se efetivando a saída dos padres, continuaram as pressões. Por duas vezes, em 7 e 10 de julho, o prazo foi ampliado, não sem mostrar expressivamente que essa paciência não poderia ser mantida por muito tempo. Protestavam os vereadores que, se agiam dessa maneira, não era "por persuadição do demonio ou odio ou maquerença nem vingança mais que somente por defenderem suas fazendas, onras e vidas e de suas mulheres e filhos, como tudo provariam largamente ante juiz competente".

Os jesuítas abandonaram a vila em 13 de julho, iniciando, de imediato, uma série de ações para que lhes fossem restituídos os seus direitos. Não lhes faltavam títulos para isso. Além de serem fundadores e proprietários do Colégio, as atividades escravagistas que originaram o conflito eram absolutamente ilegais. Mas não era fácil impor a lei contra a vontade da maioria - senão a totalidade - da população. Fresca estava ainda a lembrança da aclamação de Amador Bueno de Rivera, que só não chegara a concretizar-se como revolução porque a rejeição da coroa pelo candidato escolhido esvaziou prematuramente o movimento. O cisma, frustrado, era ainda mais alarmante ao considerar-se que evidenciava uma forte influência castelhana nessa mal traçada área de fronteira.

A causa se alastrou por vários anos e não haveria chegado a uma solução se alguns líderes paulistas não se empenhassem em obter uma saída política. Resultou dessas negociações o compromisso real de "conceder aos moradores de São Paulo perdão geral de todas e quaisquer culpas que tivessem cometido, ainda que tenham partes, reservando-lhes o direito para demandar em o cível e dano; com declaração que o que lhes concedo não há de ter efeito senão depois de restituídos os padres da companhia, porque com esta tenção lhes mando perdoar e não de outra maneira".

Era uma concessão excessiva, mas nem assim os padres seriam permitidos de retornar. As negociações se prolongaram, ainda, durante vários anos. Em 1653, frustrada a primeira tentativa, os setores paulistas interessados na solução do conflito solicitaram a intervenção do Des. João Velho de Azevedo, ouvidor geral do Rio de Janeiro, que foi enviado em correição para remediar os desmandos. Desde 1608, o ouvidor do Rio possuía autoridade revisional sobre as capitanias do Espírito Santo e São Vicente, e essa intervenção deveria ter acontecido logo que os jesuítas foram expulsos, mas não era prudente tentar uma ação em São Paulo sem contar com o apoio das lideranças paulistas que houvessem incorrido em censuras. Os próprios jesuítas comprometiam-se a providenciar, no menor prazo possível, as assinaturas do rei e da Ordem "para que assim fiquem os sucessores do dito padre provincial e mais prelados que agora são e ao diante forem, obrigados a guardar todas estas condições". Conclui-se dessas negociações que a composição política superava não apenas à lei mas à própria religião. A pressão dos paulistas conseguira até mesmo o levantamento das censuras eclesiásticas que, com todo direito, foram impostas contra eles.

Fora os paulistas, quem saiu desses episódios bastante fortalecido foi o ouvidor geral, que, além de supervisionar a eleição das novas autoridades municipais, aproveitou para fazer uma extensa correição na capitania toda. A satisfação dos paulistas ficou largamente explicitada nas cartas da Câmara. Ao "seu conselho, prudência e cristandade" atribuíam ter concluído o conflito "com paz, uniformidade e satisfação de todos". Por esses méritos, pediam ao governador que fosse "servido agradecer-lhe por carta não só no que isto obrou que foi muito mas o ter introduzido outra vez a justiça e inteireza nesta terra que tão esquecida estava dela". Mas não seria o governador quem reconheceria esses serviços. Assim o indicaria o próprio D. João IV, ao declarar: "fui servido de aprovar os procedimentos que João Velho de Azevedo, ouvidor da capitania do Rio de Janeiro, teve na correição com que foi a essa vila e capitania de São Vicente e resoluções que tomou, por tudo ser conforme à justiça e bom governo, e muito de serviço de Deus e meu, e de anular os que em contrário teve depois José Urtiz de Camargo, enviado pelo conde de Castelo Melhor".

Pires e Camargos

Nem por isso acabariam os conflitos. Ódios mais persistentes, fortemente enraizados na comunidade paulista, eram os que enfrentavam as famílias Pires e Camargo. O estopim fora a morte, em 1652, de Leonor de Camargo Cabral e Antônio Pedroso de Barros, acusados de adultério por seu matador, Alberto Pires, marido de Leonor. A vingança dos Camargos resultou na morte do assassino, e a reação dos Pires acabou de consolidar o conflito, liderado, por um lado, por João Pires, Fernão Dias Pais e a mãe de Alberto Pires, dona Inês Monteiro de Alvarenga. O bando contrário era liderado por Fernão de Camargo - apelidado de "o Tigre" -, João Ortiz de Camargo, Domingos Barbosa Calheiros e outros. O episódio vinha a coroar uma longa série de conflitos que já levara, em 1641, a vida de Pedro Taques, líder regional assassinado pelo "Tigre". De um e outro lado, os nomes envolvidos representavam as principais lideranças da tumultuosa epopéia bandeirante.

Não apenas familiares mas ligados fortemente à disputa da liderança local, os conflitos tomaram claro cunho político quando, na abertura dos pelouros de 1651, Fernão Dias Pais foi eleito 1º juiz ordinário, em substituição a Amador Bueno de Rivera, enquanto, para 2º juiz, era escolhido o seu acérrimo oponente, José Ortiz de Camargo.

A difícil convivência se prolongou durante todo esse ano sem conflitos políticos de maior relevância. Parece, até, que os dois rivais se esforçavam por deixar as suas rixas fora da Câmara. O conflito iria estourar, num outro âmbito, entre o ouvidor da capitania de São Paulo, Paulo de Amaral, e o 2º juiz, tomando o resto da Câmara, com Dias Pais à cabeça, o partido do ouvidor. Marginalizado, Ortiz de Camargo apelou à sua amizade com o governador, conseguindo dele a sua nomeação como ouvidor, em substituição a Amaral, que completava o seu triênio. Simultaneamente, os pelouros de 1652 indicaram como juízes Barbosa Calheiros e Jerônimo de Camargo, o que representava o triunfo total dos Camargos na luta pela condução política de São Paulo.

Foi nesse contexto que aconteceu o assassinato de Leonor Cabral, proporcionando feições shakespearianas às inicialmente políticas lutas de Pires e Camargos. As mútuas retaliações tiveram a sua expressão na administração municipal quando Barbosa Calheiros e Jerônimo de Camargo se negaram, em 1º de janeiro de 1653, a dar posse às autoridades escolhidas para esse período. Alegaram que as eleições foram fraudulentas e negaram-se a abrir os pelouros, prolongando indefinidamente seus próprios mandatos. Inútil era apelar para o ouvidor da capitania, irmão de Jerônimo de Camargo. Liderados por Dias Pais, os Pires apelaram para a vizinha capitania do Rio de Janeiro, conseguindo que o ouvidor geral, João Velho de Azevedo, fosse enviado em correição. Ficou evidente, nessas circunstâncias, a utilização política do apoio prestado aos jesuítas. Escudados na restituição dos inacianos - objetivo que, evidentemente, lhes garantiria o apoio da Coroa - os Pires conseguiram que Azevedo arrombasse as portas da Casa da Câmara, queimasse as listas achadas nos pelouros e, como recurso de pacificação, simplesmente nomeasse uma nova administração municipal que, em definitivo, acabaria por selar a volta dos jesuítas. Simultaneamente, o ouvidor de São Paulo foi destituído, e João Velho iniciou a devassa contra os abusos dos Camargos.

Era evidente que José Ortiz de Camargo não ficaria indiferente àquele atropelo em sua jurisdição. Apesar de João Velho ter tomado a precaução de envolver, nas suas reformas, pessoas de ambos os lados, Ortiz pediu e obteve, do conde de Castelo Melhor, a anulação dos atos do ouvidor geral. Com a autoridade assim restaurada, apresentou-se em São Paulo, acompanhado de "muita gente branca armada além do gentio em armas", exigindo ser reempossado no seu cargo de Ouvidor da Capitania. Mas o armamento dos Pires não lhes ficava atrás. A batalha parecia inevitável quando os jesuítas, encabeçados pelo padre Simão de Vasconcelos, conseguiram chegar a uma solução negociada. O Ouvidor seria reempossado mas, em troca, comprometer-se-ia a respeitar os capítulos de correição deixados por João Velho.

Até que ponto esses capítulos seriam efetivamente respeitados era difícil garantir, mas, antes disso, uma outra mudança viria a alterar os rumos do conflito. O governador completara seu mandato e seu sucessor, o conde de Atouguia, não parecia disposto a continuar apoiando os Camargos. João Velho de Azevedo voltou a São Paulo e o ouvidor foi novamente destituído, sendo nomeado, em substituição, Miguel de Quevedo Vasconcelos. A devassa foi reaberta e a carta do rei, confirmando os atos de João Velho e anulando os de João Ortiz, encerrou o episódio, frustrando, ao menos no momento, as ambições políticas dos Camargos.

A partir de então, ficou evidente que o conflito ultrapassava os limites da capitania. Ao envolvimento já freqüente do Ouvidor Geral agregava-se o dos governadores e, a partir de 1654, o da Relação, reinstalada depois de vinte e oito anos de inatividade. A devassa que fora reaberta contra os Camargos colocava seus principais líderes sob a ameaça da pena de morte e, "remetidos os autos para a Bahia, foram grandes os temores de futuras ruínas e total destruição da nobreza de São Paulo".

Diante do curso que os acontecimentos estavam assumindo, as duas parcialidades perceberam a necessidade de cuidar dos respectivos interesses no centro das decisões. Assim, além do Procurador da Câmara, Pires e Camargos passaram a ter seus próprios procuradores na Bahia. Pela parte dos Camargos, ninguém melhor que José Ortiz "que já sabia manejar as dependencias nas duas vezes que havia hido àquella cidade". Do lado contrário, a representação foi encomendada a Francisco Nunes de Siqueira "que alem de ter o merecimento de bom gramatico Latino, estava bastante instruido na Lição dos livros fôrences e ordenações do Reino".

Mas os alcances políticos do conflito iam além dos aspectos jurídicos. Cabeças principais dentre os Camargos deveriam cair se as leis fossem rigidamente aplicadas e, por pouco que a devassa fosse estendida aos Pires, a lista de execuções duplicaria facilmente. No entanto, apesar das incidências do conflito, ambos contendores conservavam um poder de fogo que, a despeito das baixas sofridas, só fazia crescer, alimentando-se da própria rivalidade. Uma força militar, enviada da Bahia ou do Rio de Janeiro, deflagraria uma carnificina. Prudentemente, Atouguia preferiu negociar com os procuradores e, através deles, fez chegar cartas pessoais aos principais líderes, chamando-os à reflexão e procurando uma solução negociada. Simultaneamente, ordenava que "se visse esta matéria na Relação do Estado com toda a circunspeção que sua importância e qualidade pediam".

Como as circunstâncias exigiam, a Relação elaborou um parecer mais político que jurídico. Sugeriu que se apaziguassem os ânimos, alterando a forma de eleição para que Pires e Camargos compartilhassem igualitariamente o governo da vila. A matéria encontrava-se fartamente regulamentada pelo Título LXVII do Livro I das Ordenações Filipinas, razão pela qual tanto o parecer como a resolução conseqüente poderiam ser tachados de inconstitucionais, o que não obstou que o governador concordasse plenamente e providenciasse a sua execução.

Mas num aspecto não havia acordo. A Relação insistia no cumprimento das ações penais em curso, enquanto o governador considerava imprescindível a concessão de uma ampla anistia. Os condenados à pena capital "eram os principais membros da família dos Camargos, sentenciados à revelia". Além disso, e apesar de ter apoiado as suas decisões, o governador duvidava da isenção de Velho de Azevedo na condução da devassa, iniciada, como todas as suas intervenções anteriores, à instância dos Pires. Por outra parte, não podia esquecer que fora Alberto Pires quem, assassinando sua mulher e o amante, iniciara as violências que conduziriam à situação atual. Mas, acima de todas essas considerações, pairava um dado objetivo que não podia ser ignorado: Negar aos condenados a anistia, pretendendo executar as decisões judiciais, seria "abrir-se as portas à sua desesperação", o que seria muito perigoso, considerando-se que, ainda que menos numerosos, os Camargos "constituíam a família paulista de mais qualidade e poder na Vila". Em resumo, uma ação irreflexivamente legalista poderia iniciar um banho de sangue.

A decisão do governador foi levada pelos procuradores e registrada na Câmara de São Paulo em 26 de dezembro de 1655. Ficava, assim, estabelecido que "daqui em diante só sirvam cada ano na Câmara da dita vila, tantos oficiais de um bando como do outro". Regulava-se minuciosamente o novo rito eleitoral: "chamará o ouvidor da capitania com o escrivão da Câmara daquela vila na forma da ordenação os homens bons e o povo dela ao conselho e lhes requererá que nomeie cada um, seis homens para eleitores três da banda dos Pires e três dos Camargos, não sendo os cabeças dos bandos, antes os mais zelosos e timoratos e tanto que todos os votos forem tomados escolherá para eleitores de cada bando os três que mais votos tiverem entre todos. Estes seis fará apartar em três partes um Pires com Camargo e lhes ordenará que façam os seus três róis como é estilo a saber: seis para juízes, três de um bando e três do outro, nove para vereadores, quatro de um bando quatro do outro e um neutral, e três para procuradores do concelho, um Pires, outro Camargo e outro neutral e assim se usará para os mais ofícios se os houverem na Câmara e se costumam fazer por eleição". Regulava-se, ainda, a apuração das pautas e a preparação dos pelouros que "se meterão em um saco e de lá tirarão por sortes um para cada ano". Os mesmos critérios seriam aplicados à eleição dos almotacés, ressaltando-se que, com essas providências, ficaria "sem ocasião de dúvida esta nova forma de eleição que inviolavelmente se guardará na Câmara daquela vila".

Simultaneamente, mesmo contrariando o parecer da Relação, o governador concedia a controvertida anistia, destacando que "tendo perdão das partes como confio o hei por concedido também em nome de sua majestade a todos os de uma e outra família que estiverem culpados nas referidas devassas e em especial aos Camargos". Paralelamente, justificava-se, perante a Coroa, indicando que agia por considerar "sossegadas as ofensas com as mortes que havia de parte a parte e as dúvidas da fazenda com o direito reservado para as determinar à justiça".

A Longa Controvérsia

Mas nem com essas providências, os conflitos ficariam definitivamente sanados. Terminado o governo de Atouguia, a continuidade dos incidentes levaria ainda o seu sucessor, Francisco Barreto de Menezes, a pedir o deslocamento de paulistas ao Recôncavo baiano, com a dupla finalidade de pacificar os índios ali sublevados e afastar os belicosos contendentes do teatro das suas disputas. Em troca, eles receberiam os índios aprisionados, capturados em "guerra justa". A ação, realizada em 1658, sob a chefia de Domingos Barbosa Calheiros, teve o efeito contrário, concentrando as lideranças dos Camargos na Bahia e permitindo a tomada de novas posições pelos Pires, que ficaram majoritariamente em São Paulo.

A ordem continuava visivelmente alterada. As obras públicas, abandonadas. O Caminho do Mar, que ligava São Paulo ao porto de Santos, se achava num estado tão calamitoso que um particular solicitou da Câmara autorização para consertá-lo, por conta própria. As sessões da Câmara - que já não eram freqüentes - cessaram completamente em 17 de agosto, só voltando a acontecer, em 24 de dezembro, "por estarem as couzas mais amoderadas e consoltaram os moradores desta villa se fizesse a eleisan de amigavel composisan pera pas e quietasan deste povo e republica". Diante do recrudescimento das hostilidades, Barreto de Menezes resolveu reiterar a provisão de Atouguia, para que o governo municipal fosse dividido entre os dois bandos, ordenando "que na mesma conformidade, se guarde e cumpra inviolavelmente sem duvida, alteração, nem interpretação alguma". Simultaneamente, anunciava o envio de um desembargador sindicante, que deveria controlar a situação.

Entrou o ano de 1659 sem que a situação fosse controlada. João Velho de Azevedo foi substituído por Pedro de Mustre Portugal, que logo se viu obrigado a cuidar dos conflitos. Evidentemente, os paulistas estavam aprendendo a lidar com sutilezas legais. Forçados, pelo alvará de Barreto, a observar a provisão de Atouguia, resolveram impugnar-se mutuamente, aproveitando o fato de que a eleição, assim organizada, derivava facilmente na eleição conjunta de parentes, que, até o quarto grau, era vedada pelas Ordenações. Sem abandonar o Rio de Janeiro, Mustre Portugal respondeu em nome do rei, confirmando a eleição "sem embargo do dito parentesco que hei por suprido por assim convir a meu real serviço e boa expedição da minha justiça".

Nesse ano, Salvador Correia de Sá assumiu o governo geral da Repartição do Sul e, investido dessa autoridade, empossou António Ribeiro de Moraes como o novo Capitão-Mor de São Vicente. Por sua vez, Mustre Portugal empossava como Ouvidor a António Lopes de Medeiros. Renovadas as autoridades da capitania com pessoas das quais, por serem alheias àquela história de conflitos, podia esperar-se uma maior isenção, o ouvidor geral resolveu tentar uma intervenção definitiva. Assim, no dia de Ano Novo, data da renovação das autoridades municipais, reuniu em São Paulo a todas as lideranças políticas, militares e religiosas da capitania e, após presidir a abertura dos pelouros e, mesmo havendo algum parentesco entre os eleitos, confirmar os resultados "por ser linha transversal e em grao remoto", dirigiu um enérgico apelo a todos para "buscar o meio mais suave pera debaixo dele se conseguir a dita paz e onião ellegendose pera o dito ifeito tantas pessoas de hua familia e bando como de outra pera tratarem da conveniencia e concordata que se deve tomar assentindo os perllados das relligoins por serviso de Ds. de sua magestade e pera assim poder elle dito ouvidor geral ademenistrar iustisa as partes e ouvir a todos de hua e outra parsialidade de seu direito e iustisa sem aver alterasois nem tumultos neste povo". Caso contrário, "deixaria tudo por mão e se requolheria a cabessa da comarqua e daria conta a sua magestade do estado desta cilla pera mandar e dispor o que mais comvier o seu real servisso".

Mustre Portugal permaneceu em São Paulo mais de um mês, durante o qual se entrevistou com os líderes de ambas as partes, conseguindo reuni-los novamente no dia 25 de janeiro - aniversário da fundação da cidade - para selarem um verdadeiro tratado de paz. Assinaram, entre outros, Fernão Dias Pais, José Ortiz de Camargo e Henrique da Cunha Gago, comprometendo-se a cessarem as hostilidades. "E logo o dito ouvidor Geral em presença de mim escrivão e das mais pessoas retro declaradas fez dar as mãos a huus e outros para mayor firmeza e estabilidade da paz e união que desde hoje em diante prometem guardar e observar entre si".

Não parece que esse documento tenha resolvido magicamente todas as pendências mas, pelo menos, conseguiu acalmar os ânimos e comprometer os responsáveis, possibilitando a iniciação de ações que permitissem consolidar definitivamente a paz. Pouco depois, o empreendimento de novas bandeiras e a aparição de dissidências internas em cada bando, unidos acabariam esvaziando o conflito.

A longa controvérsia, que durou mais de vinte anos, levou numerosas vidas, provocou, em diversas oportunidades, o abandono da administração pública e o comprometimento da atividade econômica, e acabou envolvendo não apenas o governo municipal como também as autoridades superiores, a nível da Capitania de São Vicente, Repartição do Sul, Governo Geral e Tribunal da Relação. Até mesmo a Coroa precisou pronunciar-se em diversas oportunidades. O caso, resenhado por Pedro Taques e estudado à luz de documentos originais por Affonso de Taunay, é claramente demonstrativo de que, na época, a justiça dependia muito mais do senso comum e da composição política do que da aplicação das leis.


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