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Característica distintiva e principal diferença entre o projeto elaborado pela Constituinte e a Constituição outorgada em 1824 é a presença do Poder Moderador. Esta novidade, baseada nas idéias de Benjamin Constant, foi aplicada com certa liberdade na definição e estruturação dos poderes do Império. A noção do equilíbrio entre poderes já se encontrava latente nas Cortes e nos chamados "Três Estados", que caracterizavam a participação das diversas classes nas monarquias européias. Porém, quem teorizou pela primeira vez sobre a importância desse equilíbrio para a salvaguarda dos direitos e a continuidade das instituições foi o inglês John Locke, baseado nos desenvolvimentos contidos na Magna Carta, nos documentos que a complementam e, principalmente, na experiência direta e indireta da Revolução Inglesa. Exilado por várias vezes, porém sempre preocupado com as incidências do conflito na sua pátria, Locke elaborou um sistema de idéias que diferenciava quatro poderes: legislativo, executivo, federativo e de prerrogativa. O primeiro reside no Parlamento, estabelece as leis fundamentais e deve ser eleito pelo povo. Ele pode ser descontínuo, mas as suas leis devem ser executadas com continuidade. Isso requer um segundo poder, permanente, que execute as leis positivas no interior do país (executivo) e outro, também permanente, que o faça nos contatos com os outros países, conduzindo a paz, a guerra e o comércio exterior (federativo). Finalmente, o poder de prerrogativa é aquele que permite ao governante decidir nos casos não previstos em lei. Embora diferenciando-os, na sua essência, Locke atribui esses três poderes à pessoa do rei, limitado pela Constituição, razão pela qual os quatro poderes originais ficam, na prática, reduzidos a apenas dois. Os juízes, na concepção de Locke, não constituem um verdadeiro poder político. Como controlar a conduta desses órgãos de poder? O legislativo, sendo de provimento temporário ao menos, no caso dos "comuns" estava sujeito ao controle do voto. Quanto ao rei, só prestava contas a Deus, podendo apenas em casos extremos ser afastado por insurreição popular. Essa limitação foi atacada por Montesquieu, propondo que os juízes, além de resolverem pleitos entre particulares, efetuassem o controle da constitucionalidade dos atos dos poderes de Locke, passando, assim, a constituírem um terceiro poder: o Judiciário. É nesta visão que está baseada a Constituição dos Estados Unidos, aplicação prática dos princípios de Montesquieu e modelo das Constituições democráticas posteriores. Essas eram as referências mais próximas dos revolucionários da França. As deliberações e propostas organizativas oscilavam entre os modelos inglês e americano, mas a sangrenta anarquia que seguiu à deposição de Luís XVI levou alguns pensadores a procurarem novas formas de conciliar a proteção dos direitos com a paz e a continuidade dos governos. Em vésperas da revolução, Sieyès respondera a esse problema distinguindo a titularidade da soberania do seu exercício e separando o Poder Constituinte dos Poderes Constituídos. O Poder Constituinte garantia a unidade e permanência do Estado, enquanto os poderes constituídos especialmente, o Legislativo deviam acomodar a direção política às circunstancias históricas, de acordo com a orientação dos eleitores. Mais tarde, durante o Consulado, Sieyès tentou recriar esse poder neutro desaparecido com a extinção da monarquia mediante a articulação de um Colégio de Conservadores, incumbido de designar os Cônsules e outros altos órgãos do Estado, bem como de impulsionar a reforma da Constituição. Nesta mesma linha se enquadrava a criação de um Júri Constitucional, a cujo cargo devia ficar o controle da constitucionalidade das leis e, portanto, a salvaguarda da ordem institucional. Porém, faltava a esses órgãos a legitimidade do poder do monarca, que, no dizer de Clermont-Tonnerre, se diferenciava das atribuições executivas por estar sustentado nas lembranças e nas tradições religiosas. Combinando as visões de Sieyès y Clermont-Tonnerre, Constant fazia a distinção entre o "poder régio" e o "poder ministerial". "O poder ministerial escrevia , embora emanado do poder real, tem uma existência separada deste último: e a diferença é essencial e fundamental entre a autoridade responsável e a autoridade investida de inviolabilidade". A distinção entre ambos os poderes era, para ele, "a chave de cúpula de qualquer organização política", querendo, com isso, significar que, à semelhança da pedra superior de uma cúpula a última que é colocada na construção e que coroa a obra arquitetônica, permitindo o equilíbrio e a compensação das forças, o rei representa o equilíbrio de todas as forças da sociedade, devendo, portanto, ser superior a todas elas. O Ministério ou Governo devia exercer o poder executivo ou ministerial, um poder ativo, enquanto o rei, como chefe do Estado, devia limitar-se a exercer, não um poder passivo, mas sim um poder neutro, cujas atribuições consistissem mais num direito de impedir do que num direito de fazer. Assim, numa monarquia constitucional, os ministros seriam responsáveis pelos atos do rei, residindo neles a função executiva e a direção da política. Já o monarca teria a seu cargo a nomeação e destituição dos ministros, a dissolução da Câmara eletiva, a convocatória de eleições, a nomeação dos Pares e a sanção das leis. Na visão de Constant, o monarca estava acima da política, encarnando a unidade e permanência do Estado soberano. Por isso, ele deveria ser "uma entidade à parte, superior às diversas opiniões", sem outro interesse senão o de manter a ordem e a liberdade, configurando-se como um ser "inacessível a todas as paixões que esta condição a de autoridade eleita faz nascer e a todas aquelas que a perspectiva de voltar a encontrar-se nela sustenta necessariamente no coração dos agentes investidos de um poder momentâneo". Assim, a não responsabilidade do rei, unida à responsabilidade do Ministério, permitiria mudanças ilimitadas na orientação política sem que disso derivasse a quebra das instituições tão freqüentemente observada no período revolucionário. Os Poderes na Constituição do Império Não foi exatamente essa a aplicação dos princípios de Constant à Constituição de 1824. Precisando de um governo forte e bastante centralizado, o Poder Moderador e a chefia do Executivo foram concentrados no imperador, o que dava a esse cargo uma dimensão muito mais atuante e até potencialmente despótica. Por outra parte, o caráter de imperador não era bem o de um monarca supervisionador, situado acima das decisões do dia-a-dia. D. Pedro era o líder de um país em formação e, tanto por herança do absolutismo quanto por seu caráter francamente temperamental, dificilmente iria se restringir a uma atitude contemplativa e revisora. O estabelecimento da divisão de poderes é tema do Título III da Constituição: "Art. 9. A divisão, e harmonia dos Poderes Politicos é o principio conservador dos Direitos dos Cidadãos, e o mais seguro meio de fazer effectivas as garantias, que a Constituição offerece.
Observa-se, em tais enunciados, uma explícita ênfase nos "Direitos dos Cidadãos" e nas "garantias, que a Constituição offerece". Entretanto, a definição de atribuições dos diversos poderes evidencia o interesse em centralizar as decisões e limitar a pluralidade de manifestações, que os redatores viam com certo receio, até justificadamente derivado das recentes experiências internas e externas. Embora caracterizados como "delegações da Nação", os poderes tenderiam a perpetuar-se às expensas do livre jogo político. O Poder Moderador está definido no Capítulo I, do Título 5º, indicando: "Art. 98. O Poder Moderador é a chave de toda a organisação Politica e é delegado privativamente ao Imperador como Chefe Supremo da Nação, e seu Primeiro Representante para que incessantemente vele sobre a manutenção da Independencia, equilibrio, e harmonia dos mais Poderes Politicos." Consoante os princípios de Constant, a Constituição estabelece: "Art. 99. A Pessoa do Imperador é inviolavel, e Sagrada: Elle não está sujeito a responsabilidade alguma." Em contrapartida, encontra-se no Capítulo VI, do mesmo título, ao definir as responsabilidades do Ministério: "Art. 133. Os Ministros de Estado serão responsaveis
E, para afastar qualquer dúvida, o mesmo capítulo estabelece: "Art. 135. Não salva aos Ministros da responsabilidade a ordem do Imperador vocal, ou por escripto." Quanto às atribuições do Poder Moderador, a Constituição estabelece as seguintes: "Art. 101. O Imperador exerce o Poder Moderador
"O Imperador consta no Art. 102 é o Chefe do Poder Executivo, e o exercita pelos seus Ministros de Estado". "O Poder Legislativo estabelece o Art. 13 é delegado á Assembléa Geral com a Sancção do Imperador". No parecer de Godofredo Autran, insuspeito por ter escrito e lecionado em plena vigência da Constituição imperial, "Dizer-se que o poder legislativo é delegado á assembléa com a sancção do Imperador, é estabelecer o principio de que o Imperador faz parte do poder legislativo". Fecha-se, assim, o cerco às instituições. A figura do Imperador permeia todas elas. Mais que uma "chave de cúpula", imóvel e superior na manutenção do equilíbrio das forças sociais, o poder do imperador se estava tornando, simplesmente, uma "chave", capaz de abrir e fechar todas as portas. O Poder Representativo O receio do desbordo das manifestações populares é claramente visível na composição do Poder Legislativo prevista na Constituição. Estruturado em duas câmaras, ele aproxima-se mais ao modelo britânico do que ao americano. Enquanto a Camara dos Deputados "é electiva, e temporária" (Art. 35), o Senado "é composto de Membros vitalícios" (Art. 40). Porém, não existindo, como na Inglaterra, uma corte de pares decantada pelo tempo, o Senado deveria ser constituído "por eleição Provincial". As eleições eram indiretas, "elegendo a massa dos Cidadãos activos em Assembléas Parochiaes os Eleitores de Provincia, e estes os Representantes da Nação, e Província" (Art. 90). Essa eleição, em degraus, tende a proporcionar um maior controle do processo eleitoral, evitando as surpresas que uma eleição direta poderia acarretar. Embora o Art. 91 conceda o direito de votar, nas eleições primárias, a todos "os Cidadãos Brazileiros, que estão no gozo de seus direitos políticos" e ainda os "estrangeiros naturalisados", o 92 exclui desse direito: "I. Os menores de vinte e cinco annos, nos quaes se não comprehendem os casados, e Officiaes Militares, que forem maiores de vinte e um annos, os Bachareis Formados, e Clerigos de Ordens Sacras.
Nas eleições secundárias, a restrição aumenta. O Art. 94 acrescenta as seguintes exclusões: "I. Os que não tiverem de renda liquida annual duzentos mil réis por bens de raiz, industria, commercio, ou emprego.
Para serem deputados, além dos excluídos nas restrições anteriores, excetuam-se (Art. 95): "I. Os que não tiverem quatrocentos mil réis de renda liquida.
Para o cargo de senador, conforme o Art. 45, exige-se como requisitos: "I. Que seja Cidadão Brazileiro, e que esteja no gozo dos seus Direitos Politicos.
Finalmente, para o caso dos senadores, o Art. 43 especifica que os candidatos escolhidos serão encaminhados "em listas triplices, sobre as quaes o Imperador escolherá o terço na totalidade da lista". Essa gradação de filtros visa, claramente, excluir do processo político as classes inferiores, vistas pelos constituintes como os setores mais instáveis e mais permeáveis às pregações revolucionárias. Assuntos Polêmicos Polêmica não faltou à Assembléia Constituinte de 1823. Com fundamento, ou sem ele, os deputados gastaram inúmeras horas em debates nem sempre relevantes. À exceção dos que anteriormente participaram das Cortes de Lisboa, muitos deles eram inexperientes e perdiam-se facilmente em questiúnculas de pontos e vírgulas como a que, logo no início da análise do Projeto em comissão, sugeria substituir o nome Projeto de Constituição por Projeto da Constituição, alegando que "de" era uma preposição genérica e "da" denotava um objeto específico no caso, a Constituição do Império a ser elaborada. A discussão acabou abruptamente com a lacônica e incisiva intervenção de Costa Barros: "Sr. Presidente, com esta pequena duvida, que nada vale, já lá vão cinco minutos perdidos. Não digo mais nada". Logo a seguir, no Preâmbulo, implorava-se "os Auxilios da Sabedoria Divina". A sugestão de substituir "da Sabedoria Divina" por "da Trindade Santissima, Padre Filho, Espirito Santo" deflagrou um ardoroso debate teológico que só acabaria com uma fórmula conciliatória: O texto ficava inalterado. Porém, antes dele, seria inserida a frase "Em nome da Santissima Trindade", inserção essa que, apesar da substituição do Preâmbulo em conseqüência da outorga, iria permanecer na Constituição de 1824. Bem mais crítico era o tema da liberdade religiosa, que gerava discrepâncias até mesmo entre os constituintes de mentalidade mais avançada. Não se tratava apenas da liberdade de consciência. A esmagadora maioria da população professava fervorosamente a religião católica e a própria legitimidade da monarquia estava entremeada de considerações religiosas. Antônio Carlos, ardoroso defensor da liberdade de pensamento, fundamentou: "Temos neste paragrapho outro direito individual, a liberdade religiosa, isto é, a liberdade de adorar cada um, um Ente Supremo pela fórma que melhor lhe parece. Este direito é tão sagrado, quê eu creio que nem deveria entrar no catalogo dos direitos garantidos porque a relação da creatura com o creador está fóra do alcance politico.
Mais papistas que o Papa, diversos deputados se levantaram para contestá-lo. Surpreendentemente, foi um sacerdote que assumiu a defesa do texto proposto por Antônio Carlos: "Sr. Presidente, apezar de tudo quanto acaba de dizer o nobre deputado, eu reputo e reputarei sempre a liberdade religiosa, um dos direitos mais sagrados, que pode ter o homem na sociedade. Reputo direito sagrado, porque estou certissimo, que a consciência é um santuario onde poder nenhum humano tem direito de penetrar.
Outros sacerdotes fizeram eco e, juntando-se aos liberais mais recalcitrantes, possibilitaram com seus discursos e votos a aprovação do artigo questionado. A liberdade religiosa foi reconhecida, na Constituição de 1824, através do parágrafo 5º da declaração de direitos contida no artigo 179: "Ninguem póde ser perseguido por motivo de Religião, uma vez que respeite a do Estado, e não offenda a Moral Publica". Entretanto, na organização constitucional do Império prevaleceria a religião oficial, formalmente instituída no Título I: "Do Imperio do Brazil, seu Territorio, Governo, Dynastia, e Religião", que assim reza: "Art. 5º. A Religião Catholica Apostolica Romana continuará a ser a Religião do Imperio. Todas as outras Religiões serão permittidas com seu culto domestico, ou particular em casas para isso destinadas, sem fórma alguma exterior de Templo". Outra discussão memorável surgiu ao tratar-se do Capítulo I, do Título 2: "Dos membros da sociedade do Imperio do Brazil". Vergueiro propôs a substituição de "membros da sociedade" por "cidadãos", no que França alertou sobre a necessidade de se fazer a distinção entre "brasileiros", entendida essa palavra como todos os nascidos no Brasil incluindo-se, assim, tanto os índios como os negros, ainda escravos de "cidadãos brasileiros", indicando essa expressão apenas os que gozassem dos direitos civis e políticos. Respondeu, corajosamnte, Montezuma, fazendo votos para que "Emquanto aos crioulos captivos, Deus queira que quanto antes purifiquemos de uma tão negra mancha as nossas instituições politicas: Deus queira que em menos de um anno estirpemos do coração do estado o cancro tão virulento e mortifero". A Constituição de 1824 recolheu a expressão proposta por Vergueiro, sem fazer menção alguma ao tema da escravidão, que, apesar de algumas leis de efeito apenas paliativo, iria permanecer sem solução até a promulgação da Lei Áurea, em 13 de maio de 1888. Atualização e Reforma Conforme o Art. 178, "É só Constitucional o que diz respeito aos limites, e attribuições respectivas dos Poderes Politicos, e aos Direitos Politicos, e individuaes dos Cidadãos. Tudo, o que não é Constitucional, póde ser alterado sem as formalidades referidas, pelas Legislaturas ordinárias". Essa clara delimitação do campo da constitucionalidade foi um acerto dos constituintes de 1824 e possibilitou a sobrevivência da Constituição através da Regência e do Segundo Império. Certamente, teria durado ainda mais se o Império não fosse extinto e proclamada a República. O texto prevê, também, a passagem do tempo e o surgimento de novas necessidades: "Art. 174. Se passados quatro annos, depois de jurada a Constituição do Brazil, se conhecer, que algum dos seus artigos merece reforma, se fará a proposição por escripto, a qual deve ter origem na Camara dos Deputados; e ser apoiada pela terça parte delles.
De fato, a Constituição do Império não sofreu grandes reformas. Em 12 de agosto de 1834, a Regência Trina Permanente, com base em projeto elaborado pela Câmara dos Deputados, "competentemente autorizada para reformar a Constituição do Imperio", pôs em vigor uma série de reformas de cunho liberal e descentralizador através do Ato Adicional, extinguindo o Conselho de Estado, transferindo para as províncias os poderes policial e militar e permitindo-lhes elegerem suas Assembléias Legislativas. Em 12 de maio de 1840, faltando poucos meses para ser decretada a maioridade de D. Pedro II, a reação conservadora amparada no Art. 15, § VIII, da Constituição, que facultava à Assembléia Geral interpretar as leis conseguiu aprovar a Lei de Interpretação do Ato Adicional, restringindo novamente os poderes provinciais e fortalecendo o poder central do Império. Fora essas duas alterações substanciais, o acervo normativo do Império foi atualizado unicamente pela via de leis ordinárias. Declaração de Direitos À diferença das primeiras Constituições Francesas, a brasileira não se inicia por uma Declaração de Direitos. Os constituintes preferiram colocá-la no final. Sob o título "Das Disposições Geraes, e Garantias dos Direitos Civis, e Politicos dos Cidadãos Brazileiros", essa declaração enumera: "Art. 179. A inviolabilidade dos Direitos Civis, e Politicos dos Cidadãos Brazileiros, que tem por base a liberdade, a segurança individual, e a propriedade, é garantida pela Constituição do Imperio, pela maneira seguinte
Esta declaração de direitos, relegada ao fim da Constituição, mergulhada entre as Disposições Gerais e entremeada de assuntos específicos, como a extinção das corporações de ofício e a elaboração dos novos Códigos, evidencia o escasso interesse que os constituintes prestaram ao tema. Contudo, se comparado à situação anterior à Independência, o Artigo 179 constitui um avanço considerável na direção do pleno reconhecimento dos direitos humanos.
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