Relação de despesas na Capitania da Bahia (fragmento).
Relação de despesas na Capitania da Bahia: Governador e Relação (fragmento).
(Do "Livro que dá Rezão do Estado do Brasil")
  Memória
da Justiça Brasileira - 1
Capítulo 10

Os Primeiros Quinze Anos:
Uma Grande Incógnita

Onde estão os registros dos primeiros quinze anos da Relação do Brasil? Aparentemente, em lugar nenhum. Até mesmo Stuart Schwartz, o pesquisador que mais tempo e recursos dedicou à obtenção de dados sobre o primeiro tribunal, se limita a inferir possíveis ações por comparação com registros de períodos posteriores. Praticamente, toda a documentação existente na Bahia foi destruída durante a ocupação holandesa de 1624. A que restou em Portugal, se conseguiu sobreviver à ação do tempo, espera ainda a oportunidade de ser achada e interpretada.

Vários dos instrumentos legais imediatos à data da instalação podem ser considerados como emendas ou adições ao regimento. Em 18 de setembro de 1610, o rei concordava que o governador do Brasil "possa, em meu nome, passar Alvarás, para os culpados em alguns crimes se poderem livrar por procurador". Autorizava, também, a "passar Alvarás de busca a Carcereiros", fazer "fintas para obras publicas dos Concelhos, até quantia de cem mil réis", "entregar fazendas de ausentes, até quantia de dozentos mil réis", seguir apelações e agravos "sem embargo de se não appellar ou aggravar em tempo" e provar "pela prova de Direito commum, contractos até quantia de cem mil réis", atribuições que seriam exercidas "na forma em que, pelo Regimento da Relação das ditas partes lhe é concedido". O critério geral parece ter sido o de aumentar a alçada e relativizar as decorrências de prazos em razão das grandes distâncias existentes, não somente entre o Brasil e as cortes superiores mas, também, de um ponto a outro do próprio Brasil.

No mesmo ano de 1610, em 22 de novembro, a Coroa proibiu aos desembargadores casarem no Brasil. Esta medida contrariava uma resolução anterior que obrigava a todo funcionário nomeado pelo rei a casar dentro de um ano da sua designação. Tentava, provavelmente, evitar que os magistrados contraíssem vínculos com a sociedade colonial, enfraquecendo a sua autoridade e comprometendo a sua fidelidade às decisões de Lisboa. Mesmo assim, dois desembargadores, Antão de Mesquita de Oliveira e Manoel Pinto da Rocha, receberam permissão especial para casar.

Em 21 de março de 1611, o procurador da Coroa foi autorizado a demandar no Brasil. Em 14 de setembro ficou determinado que a remessa a Lisboa do dinheiro dos defuntos e ausentes fosse feita em ouro "quando não houvessem Letras seguras, por que se enviassem". Em 21 do mesmo mês foi resolvido o primeiro conflito de jurisdição com a Justiça eclesiástica. A hipótese era a de que o juiz da Coroa e Fazenda "se entremette em fazer sequestros e inventarios das fazendas das pessoas que se prendem pelo Santo Oficio [...] fundado no Regimento da Relação, que ordena que o Juiz de minha Coroa e Fazenda sirva também do Fisco". A informação evidencia que, mesmo não acontecendo, naqueles dias, uma visita oficial da Inquisição, ela continuava agindo na colônia. O problema foi resolvido mediante uma delicada composição, esclarecendo que a ação era, realmente, da incumbência do magistrado, mas deveria excluir "às confiscações feitas por sentença dos Inquesidores". Conservar-se-ia, no entanto, a competência que nessa matéria tinha o juiz do Fisco da Casa da Suplicação; o da Bahia só poderia intervir a mando daquele ou da própria Inquisição.

Os conflitos de jurisdição com autoridades eclesiásticas não eram novidades, e a chegada da Relação não iria terminar com eles. Antes, a presença de um corpo de magistrados representantes da Coroa, letrados e até, alguns deles, formados em Direito Canônico, se constituia em ameaça à posição de liderança que desfrutavam os bispos no Brasil. Ocupava esse cargo, em 1609, D. Constantino Barradas, que já protagonizara diversos enfrentamentos com o governador Diogo Botelho e com o ouvidor geral Antônio da Siqueira, por achar que os fundos de viúvas e órfãos estavam sendo desviados para fins militares. Logo de início, a Relação tomou conhecimento de uma queixa iniciada por uma irmandade pernambucana contra os abusos do bispo. Decidiu contra ele mas não conseguiu que ele obedecesse à sentença. Em 1610, o desembargador Pedro de Cascais, interinamente a cargo da Provedoria-mor, foi excomungado por atrasar o pagamento dos salários do clero. Recorreu à Relação, que foi novamente desobedecida.

Fora o recurso da excomunhão, mais freqüente e menos justificado do que poderia se imaginar, a reação mais usual de parte do clero parece ter sido a simples desobediência. Schwartz sintetiza, adequadamente, esta situação, dizendo que "a Relação não tinha meios eficazes de coagir as autoridades eclesiásticas. A Relação podia promulgar decretos e interferir nas cortes eclesiásticas mas não exercia autoridade última sobre o bispo. O apelo a Portugal era um processo demorado e, enquanto este se arrastava, o prelado podia se recusar a obedecer as ordens do Tribunal [...] Na verdade, a Relação e o bispo faziam parte de burocracias diferentes, cada uma com seus objetivos e padrões próprios". A Coroa, normalmente, colocava-se a favor dos seus ministros. Algumas vezes chegou até a proferir decisões rigorosas, como em 31 de julho de 1612, quando, conforme informação de Andrade e Silva, "foi determinado que os Vigarios Geraes do Brazil, não cumprindo a terceira Carta Rogatoria do Juizo da Corôa, fossem emprazados, para virem, na primeira embarcação, dar pessoalmente, na Mesa do Desembargo do Paço, a razão do seu procedimento". No entanto, as mais das vezes, a ação do poder central limitava-se a tentar uma composição entre os perigosos litigantes, resguardando, quanto fosse possível, a própria autoridade. Assim, em carta régia de 3 de outubro de 1615, lemos: "se responderá á carta do Bispo, dizendo-lhe o que se ordena, para que o tenha intendido - e ao Governador se encarregará que advirta aos Desembargadores que nas differenças com os Ecclesiasticos procedam com muito tento e justificação, procurando que ellas se escusem, quanto, sem damno da minha jurisdição, fôr possivel".

Outra fonte constante de conflitos era o relacionamento com o procurador-mor da Fazenda, Sebastião Borges, que viera acabar com o interinato de Pedro de Cascais. Embora fosse funcionário experiente, Borges não tinha formação jurídica, o que o colocava em desvantagem para argumentar diante da Relação. Em compensação, era proprietário do seu cargo e esperava ficar muito tempo nele, o que o impulsionava a defender ciosamente a sua autoridade.Seria prolixo demais detalhar todos os casos em que ambas as instituições se contendiam. Baste dizer que, a julgar pelos documentos conservados, a Coroa observou, neste aspecto, a mesma conduta conciliatória que, em linhas gerais, distinguiu o reinado de Felipe III. Pelo regimento de 1609, incumbia ao juiz dos feitos da Coroa, Fazenda e Fisco conhecer "de todas as appellações e aggravos", tanto dos provedores da Fazenda quanto do provedor-mor, nos "casos que não couberem em sua alçada". Esclarecia-se, porém, que "o sobredito se intenderá nos casos que se tratarem entre partes sómente; porque quanto ao que tocar á arrecadação de minha Fazenda, se cumprirá em tudo o Regimento que tenho dado ao dito Provedor-mor".

Pouco depois de assumir o cargo, Borges negou-se a reconhecer o contrato de coleta dos dízimos assinado por Pedro de Cascais. Recorrendo o interessado à Relação e confirmado o contrato por ela, Borges negou-se ainda a dar-lhe cumprimento, alegando estar falto de aconselhamento legal para tomar uma decisão. A Relação resolveu decretar a sua suspensão no cargo e aplicar-lhe uma multa. O caso chegou a Lisboa. O rei, concordando com a exceção estabelecida no regimento, repreendeu a Relação por interferir nos negócios da Fazenda, dando-se "por muito deservido". No entanto, menos de um mês depois, um novo alvará mandava " que o Provedor-mór da Fazenda do Brazil, posto que não fosse letrado, devassasse dos Officiaes de Fazenda, Alfandega, etc. e remettesse as devassas ao Juízo dos Feitos da Relação"54. Esta falta de preparo em assuntos legais seria novamente considerada em 1614, quando, por carta régia de 21 de abril, "foi determinado que, tendo o Provedor-mór da Fazenda Real da Bahia duvidas sobre contas de almoxarifes, se lhe nomeassem dous Desembargadores da Relação, para com elles decidir na Casa dos Contos".

Poderia parecer, por estas linhas, que a desconfiança inicial cederia lugar a um início de cooperação, mas não aconteceu assim. Depois daquele litígio pelo contrato dos dízimos, o novo contrato, outorgado por Borges em 1613, foi questionado pela Relação. No mesmo ano, a Relação dele dissentiu no julgamento de um agravo sobre um contrato de tráfico de escravos. Em 1614 o procurador da Coroa, Afonso Garcia Tinoco, mandou descarregar uma remessa de pau brasil, já autorizada pelo provedor-mor. O resultado foi uma nova advertência, proibindo "tomar-se conhecimento, na Relação da Bahia, dos negócios respectivos á arrecadação da Fazenda Real".

Mais amigáveis eram as relações com os governadores. Não se registram grandes conflitos e, várias vezes, o chanceler ocupou interinamente o posto de governador. Um potencial conflito entre ambos poderes insinuou-se em 1612, quando o ouvidor geral, Manoel Pinto da Rocha, foi incumbido de conduzir uma investigação sobre o filho de Diogo de Menezes, acusado de seduzir a mulher de um advogado. Tanto o rapaz como seus irmãos tinham fama de mulherengos e desordeiros. Não há menção de julgamento formal. A conduta dos jovens se acalmou e a Coroa, muito à sua maneira, encerrou o caso mandando "que d’aqui em diante nenhum Viso-Rei da India, nem Governador das partes ultramarinas, leve, nem consinta ir ás ditas terras de seus Governos, em quanto nellas estiverem, filho algum seu; nem os taes seus filhos vão ás ditas partes, e terras, enquanto seus pais estiverem nellas governando".

Também a Câmara parece ter reagido favoravelmente à presença da Relação. Pelo menos é isso que se depreende de uma carta de 7 de março de 1610 - justamente um ano depois da instalação do tribunal - onde tece elogios à figura de Gaspar da Costa "de cujo zelo, inteireza e diligencia pende por a maior parte o remedio de tudo e a reputação da própria casa". Gaspar da Costa era, de fato, o suporte principal do primeiro quadro de desembargadores. Único, dentre eles, que já fora membro da Relação do Porto e da Casa da Suplicação, ele deveria ser a mão experiente que, como primeiro chanceler, guiaria os primeiros passos da Relação do Brasil.

Essa esperança foi frustrada pelo seu falecimento, em 1611. Ruy Mendes de Abreu foi quem, no seu lugar, dirigiu os destinos da Relação de 1611 a 1620. Durante esse lapso de tempo foi, em diversas ocasiões, governador interino, substituindo sucessivamente a Gaspar e Luís de Sousa, nos períodos, aparentemente longos e freqüentes, que estes passavam em Olinda. As necessidades geradas pela guerra passaram, aparentemente, a constituir uma motivação apenas secundária. Os governadores se acomodaram em Olinda, então mais desenvolvida e confortável do que a própria Salvador, e, às ordens de voltar à capital, respondiam com a alegação de não ter já casa nela para morar, o que, no fundo, era verdade. Aproveitando a constante ausência dos governadores, a Relação despachava regularmente nas dependências a eles reservadas, o que, de quebra, indica até que ponto o interinato de Mendes de Abreu era quase permanente na Bahia. Essa situação foi oficialmente reconhecida na carta régia de 26 de agosto de 1620 que, considerando "que por se fazer a Relação do Estado do Brazil nas casas em que costumavam morar os Governadores delle, lhes não fica bastante commodidade nellas para sua vivenda", dispõe que "com o dinheiro das despesas da dita Relação se façam e acrescentem de novo nas casas della os aposentos que forem necessarios para o Governador viver e se fazer conjuntamente nellas a mesma Relação". Esta carta contraria, ou, pelo menos, relativiza, a afirmação de Frei Vicente do Salvador, no sentido de que Luís de Sousa, quando governador, fizera "uma formosa casa contígua com as suas pera se fazer nela relação, que até então se fazia em casas de aluguel". Luís de Sousa foi substituído por Diogo de Mendonça Furtado em 1621 e, no máximo, poderia ter começado a construção.

O mesmo Frei Vicente, testemunha direta desse período da história baiana, registrou assim as reações da população civil em face do tribunal seiscentista: "Não deixou de haver pareceres do povo (coisa mui anexa a novidades), dizendo uns que fôssem bem vindos os desembargadores, outros que êles nunca cá vieram. Porém, depois que tiveram experiência da sua inteireza no julgar, e expediência nos negócios que dantes um so não podia ter, não sei eu quem pudesse queixar-se com razão". Menos complacente foi Campos Moreno - caso tenha mesmo sido ele o anônimo autor do Livro que dá Rezão do Estado do Brazil. Ele anotou: "Nesta cidade se tem a Relação por cousa pezada, e não muito conviniente, assy pella natureza dos pleitos pello pouco q’há que fazer nelles, como pela quantidade de letras, que se ficarão anhadindo aos muitos estudantes , cleriguos, e frades, q’ahy há Bispo, e Cabido, que tudo fas h~u numero, q’a seu respeito o mais não hé nada, senão a terra nova e remota, e fronteira". O autor exprime, assim, a visão do homem comum, do não-letrado e, principalmente, a dos militares, que consideravam a terra mais carente de espadas do que de penas.

O mesmo livro relaciona as despesas da capitania, expondo assim, impensadamente, uma das causas possíveis dessa rejeição. O orçamento da Justiça, que em tempos de Ambrósio Siqueira era de 663 mil-réis, aumentara, em 1611, a 4.954 mil-réis. Não considera esta conta que só o governador - incluído no total, mas já existente antes da instalação do tribunal - levava 1.200. Mesmo assim, os salários dos magistrados, que variavam entre 410, para o chanceler, e 300, para os desembargadores extravagantes, estavam entre os mais altos da colônia, perdendo apenas para o governador e o bispo. O total da capitania, calculado pelo mesmo autor, ascendia a 18.740, o que também envolve uma apreciação falsa: A Relação era um órgão da Coroa, com jurisdição em todo o Estado do Brasil, não sendo coerente imputar as suas despesas a uma capitania isoladamente.

Mesmo questionáveis, estes argumentos chegaram aos ouvidos do rei, juntando-se às queixas do bispo, do provedor-mor e outros. Em 17 de julho de 1618, a Coroa resolveu atalhar a situação, respondendo a uma consulta do Desembargo do Paço "que ella [a Relação] se conserve, na mesma forma em que se fundou; e que os sugeitos que houverem de servir nella, sejam aprovados, e de muita satisfação, e sendo possivel, tenham já administrado Justiça em outros cargos, e mostrado sua sufficiencia e inteireza". O mesmo critério foi reiterado em 11 de setembro, dispondo que "se declarem as informações que ha no procedimento, letras e sufficiencia de cada um dos Desembargadores que de presente servem n’aquella Relação, e as rações que ha para os tirar, considerando se alguns poderão ficar, demais de Antão de Mesquita, e quaes devem ser". Quanto aos novos a designar, mandava-se que "para evitar a confusão que causa tratar-se de tantos logares juntos, em uma só consulta, se proponham para cada um os sugeitos que se oferecerem, em consultas separadas, declarando expressamente as qualidades de limpeza de geração, letras e procedimentos de vida e costumes".

Na verdade, a Relação encontrava-se mesmo desfalcada. Fora o falecimento de Gaspar da Costa, alguns desembargadores adoeceram ou obtiveram licença para voltar a Europa, como Jácome Bravo, que alegou a necessidade de prestar assistência à sua esposa, motivando com a sua atitude uma disposição da Coroa no sentido de que todos os desembargadores nomeados para as colônias levassem suas esposas com eles. A carência de magistrados era tão grande, que os condenados ficavam longos períodos nas cadeias, esperando que fosse reunido o número de votos que as Ordenações exigiam para a confirmação das sentenças de morte. Excepcionalmente para a Relação do Brasil, este número foi reduzido a dois, por alvará de 29 de outubro de 1616.

A preocupação que essa situação provocava ficou evidente, em 1620, pela freqüência com que aparecia mencionada na correspondência real. Em 28 de julho desse ano, foram nomeados João de Sousa Cardenas, Diogo de São Miguel Garcez e "Pedro Casqueiro da Rocha, Juiz de Fóra da cidade de Faro", figura que veremos aparecer com destaque nos anos seguintes. Ainda a respeito da nomeação de Sousa Cardenas, destaca-se, em 6 de outubro, "o muito que importa que a administração da Justiça; em partes tão remotas se encarregue a pessoas de letras e confiança". Finalmente, em 1621, sete novos desembargadores chagaram à Bahia, acompanhando o governador designado, Diogo de Mendonça Furtado.

Qual era o saldo que os primeiros desembargadores deixavam à sua partida? Fora os diversos conflitos que tumultuaram a gestão, mais imputáveis à imprecisa delimitação de competências do que a falhas pessoais, o período apresenta um balanço bastante resgatável, embora não corresponda rigidamente ao que dele se esperava. Não era possível, por exemplo, que dez homens desarraigados da sua pátria se mantivessem absolutamente alheios, durante doze anos, à vida da terra onde passaram a morar. O conceito de "juiz de fora", expressão do poder real, superior e alheio aos interesses regionais, era aplicável a funcionários que, lá em Portugal, ficavam no cargo por períodos limitados e estavam perto dos seus lugares de origem o suficiente para visitar, periodicamente, o seu núcleo familiar e social. Os desembargadores vindos para o Brasil ficaram nos seus cargos muito além dos três anos previsíveis, com enormes distâncias impedindo qualquer contato com a península, que não o epistolar, mesmo assim, lento e irregular. Submetidos a condições atípicas, os magistrados optaram por integrar-se à terra onde moravam, alguns até pelo casamento, como Antão de Mesquita e Oscar Pinto da Rocha, que desposaram duas senhoras da aristocracia pernambucana. Não deve ser vista nestas uniões uma simples vontade de enriquecimento. A riqueza das herdeiras do açucar, normalmente desprovida de brasões, via-se compensada e complementada pelas letras e a condição fidalga dos magistrados. Era, no fundo, o único equilíbrio possível para uma união marital dos desembargadores na colônia. Outros magistrados resolveram investir em atividades produtivas, como Pero de Cascais, que virou empresário baleeiro. Não devia ser alheio a tais investimentos o desembargador Balthezar Ferraz, único supérstite do primeiro grupo de desembargadores que chegara à Bahia, em 1588, como conseqüência da frustrada tentativa de instalação do primeiro tribunal. Em 1609, Ferraz era já um abastado proprietário, de considerável influência na capital do Brasil.

Os membros da Relação compensavam estas pequenas violações, mormente consentidas pela própria Coroa, com uma preocupação mais particularizada pelos interesses e pela vida social e econômica da colônia. Fora Garcia Tinoco, por duas vezes relacionado com os problemas do comércio de pau brasil, Antão de Mesquita tomou também posição sobre uma incursão francesa à procura dessa madeira que fora interceptada em Porto Seguro. Mesquita propôs, também, a liberação da cultura do gengibre, proibida no Brasil a fim de garantir o preço da produção na Índia, sugerindo, apenas, colocar a sua comercialização sob monopólio estatal. Combateu, também, a apropriação indébita de terras da Coroa, chegando a enfrentar por esse motivo, poderosos latifundiários.

Outro ponto que revelou a combatividade dos primeiros desembargadores foi a realização das correições, devassas e residências que, embora não fossem realizadas com a freqüência prevista no regimento - aliás, absolutamente impossível pelo reduzido número de magistrados e a imensidão do território - revelaram bastante habilidade política e, até, militar. As correições eram, em Portugal, atribuição dos ouvidores, mas o regimento da Relação incumbiu aos desembargadores realizá-las, a mando do governador. Além das correições regulares, os desembargadores eram ocasionalmente encarregados a proceder devassas sobre fatos específicos e residências das autoridades que terminavam os seus mandatos. A acolhida dispensada pela população variava. A correição era, em geral, de interesse específico da Coroa, tendendo a fiscalizar o correto cumprimento das suas leis. Embora esse cumprimento fosse, teoricamente, útil à população, a fiscalização lesava, não poucas vezes, interesses locais, provocando a revolta dos moradores. As residências, que avaliavam a atuação dos governadores, ouvidores e outros funcionários graduados, eram melhor recebidas por permitirem à população expressar as suas queixas mas, com freqüência, as autoridades investigadas deixavam partidários suficientes para tumultuar o ritmo das investigações. Por outro lado, os desembargadores não podiam evitar, durante as viagens, o tomar conhecimento de problemas de caráter geral, o que os levava a adotar providências que atingiam os usos e privilégios vigentes nas capitanias, principalmente nas do sul, onde se chocavam com a natureza rebelde e independente da população. Explícitos representantes do poder central, os visitantes ganhavam, em conseqüência, perigosos inimigos. Assim aconteceu com Jácome Bravo, que, em 1616, sofreu vários atentados contra a vida, quando tentava pôr limite às entradas de paulistas à caça de índios, e com Sousa Cardenas, expulso violentamente do Rio, em 1624, por baixar um novo imposto, destinado à fortificação da Bahia e de Pernambuco. Provavelmente, os moradores não chegavam a entender que a queda dessas duas praças ocasionaria inevitavelmente a de todo o Brasil. No entanto, não é impossível que a rejeição envolvesse um desejo consciente de enfraquecer, pelo apoio aos invassores, os laços de dependência que os sujeitavam ao controle da Coroa.

Outras vezes, os próprios investigados é que reagiam violentamente para poupar-se ao castigo previsto. Assim procedeu Afonso de Albuquerque, governador do Rio de Janeiro, mandando prender o ouvidor, o presidente da câmara e, até, o guarda que acompanhava a Jácome Bravo. Enquanto isso, o próprio Bravo era excomungado pelo prelado Matius Aborim, que apoiava ao governador. Desmandos como esses obrigaram a intensificar as medidas de proteção pessoal. Cada desembargador era, normalmente, acompanhado por um meirinho e um escrivão. Bravo, prevendo a resistência que iria encontrar, levou também quatro guardas, o que não bastou para garantir a sua tranquilidade. A sua missão era particularmente difícil, por ser a primeira intervenção do poder central depois da extinção do Governo Geral do Sul. A sensibilidade regional estava à flor da pele. Antão de Mesquita, mais prevenido ou melhor conhecedor das particularidades do Brasil, visitou as turbulentas capitanias, em 1619, levando uma escolta de doze homens. Missões previsivelmente mais complexas podiam motivar uma maior diversidade de funções. Afonso Garcia Tinoco visitou as capitanias do norte, em 1612, levando consigo dois magistrados de menor graduação, dois escrivães, um meirinho e seis guardas.


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